Muito do que sabemos está nos livros. Uma outra parte está no pensar, fazer e dizer de pessoas que não foram convidadas para o banquete dos letrados(as). Mais que isto: pessoas e grupos que tiveram seus conhecimentos invalidados ou apropriados.
No caso da população negra, a filósofa Sueli Carneiro chamou de “epistemicídio negro” a construção estereotipada da inferioridade intelectual das pessoas pretas, que estariam mais aptas aos trabalhos braçais, em contraposição a uma suposta superioridade branca para a produção de conhecimentos elaborados.
Opor-se a esse pensamento, obviamente, não é tarefa exclusiva da academia. As bibliotecas em geral e as bibliotecas comunitárias em particular, ao colocar livros nas mãos de trabalhadores(as) e de seus filhos(as), conectando o presente a saberes ancestrais e ao afrofuturismo, contribuem para barrar o processo perverso de distorção das identidades e da episteme das pessoas pretas.
Neste breve texto, destaco o potencial da curadoria das bibliotecas no enfrentamento do racismo que estrutura a sociedade brasileira. Na curadoria está a escolha dos livros que devem ou não ser adquiridos e a definição das prateleiras que ocuparão: se nas estantes principais ou nos depósitos esquecidos. A curadoria indicará quais autores(as) são imprescindíveis nas programações das bibliotecas por serem universais; e quais dependerão da sobra de recurso ou das efemérides, por serem “específicos”, “regionais”.
No exercício de curadoria e gestão, de bibliotecas grandes ou pequenas, são definidos os cachês e as condições de produção dos(as) convidados(as). Há um poder de escolha e esta pode ser uma escolha que reduza desigualdades, pode ser uma escolha antirracista, como as bibliotecas comunitárias buscam fazer.
As bibliotecas comunitárias são espaços nascidos por iniciativa de indivíduos ou coletivos que enfrentam o epistemicídio negro com ações educativas, poéticas e políticas.
O País carece de um levantamento atualizado das bibliotecas comunitárias, porém há alguns números: a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC) conta com 115 unidades organizadas em 11 redes locais; a Expedição Vaga Lume é constituída por 95 bibliotecas comunitárias distribuídas em 22 municípios da Amazônia Legal; recentemente, o edital de Pontos de Leitura do Ministério da Cultura (MinC) contemplou 300 bibliotecas comunitárias dentre 810 iniciativas. E, certamente, muitas outras seguem ignoradas pelos dados oficiais.
Situadas nas bordas e áreas mais profundas do País, em territórios de maioria negra, indígena, periférica, suas existências físicas já são uma ação antirracista, transformam territórios e vidas de jovens e mulheres negros, como revelou a pesquisa “Um Brasil que lê: bibliotecas comunitárias e resistência cultural na formação de leitores”.
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Em São Paulo, a Rede LiteraSampa reúne 19 bibliotecas comunitárias das cidades de São Paulo, Guarulhos, Santo André e Mauá. Desde sua criação em 2010 realiza o LiteraSampAfro: encontro com autores(as) negros(as) e suas obras.
Já passaram por lá: Ana Maria Gonçalves, Akins Kintê, Cidinha da Silva, Conceição Evaristo, Elizandra Souza, Josias Marinho, Kiusam Oliveira, Marcelo D’Salete, Mirta Portillo, Luís Silva (Cuti), Oswaldo de Camargo, Velia Vidal.
Nestes encontros, em rodas, leituras de mundo e de palavras são compartilhadas. Empresta-se a voz para que as histórias cheguem a mais pessoas. Nestes espaços, livros de autorias negra, até pouco tempo ausentes das compras oficiais, se espalham pelo chão, criam raízes na comunidade e, de lá, se movem por vitrines de livrarias e palcos de eventos literários do país e do mundo. Com a literatura negra, o Brasil fica maior.