‘Cada um sente, sofre e reage de um modo diferente’, diz professora que deixou carreira após ataque


Jussara Melo lecionava na Escola Raul Brasil, alvo de um ataque em 2019 que terminou com dez pessoas mortas. Ao ‘Estadão’, ela relembra recuperação e reflete sobre medidas necessárias

Por João Ker
Atualização:

Aos 59 anos, a professora Jussara Melo abandonou a carreira na sala de aula, onde ensinava Espanhol, após o ataque na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, na Grande São Paulo. Em 2019, dois estudantes invadiram o local, mataram oito pessoas e se mataram em seguida.

Jussara relembra o período de recuperação diante do trauma sofrido. “Quando ouvia o som de um helicóptero ou sirene, tinha crises violentas de pânico. Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida”, afirma.

O ataque da semana passada em uma escola na Vila Sônia, na zona oeste da capital paulista, reacendeu o debate sobre medidas necessárias para coibir a recorrência de episódios dessa natureza. “A primeira coisa é o atendimento psicológico individualizado para aqueles alunos que necessitem”, diz a professora.

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Leia abaixo o relato completo feito ao Estadão:

“Quando consegui voltar para casa naquele dia 13 de março de 2019, já era quase noite. O máximo que consegui foi ir até o estacionamento e buscar meu carro. O caminho para casa foi estranho, me senti um zumbi ao volante.

Mas o primeiro mês foi o mais difícil. Quem tentava falar comigo para ouvir sobre o atentado, eu contava em detalhes. Precisava me esvaziar daquilo. Mas quem buscou me convencer a voltar para a sala de aula não obteve sucesso. Eu entrava em crise e começava a chorar.

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Não saí de casa por muitos dias. Quando ouvia o som de um helicóptero ou sirene, tinha crises violentas de pânico. Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida. Eu me culpava por ter sobrevivido a tudo aquilo e outros não.

Eu não quis retornar ao trabalho porque não concordava com o modo que o governo nos tratou naquela época. O importante era voltar para a escola, diziam, “juntos seríamos mais fortes”. Mas eu não aceitei aquelas mortes, fiquei decepcionada comigo mesma por não ser tão forte como meus outros colegas e não entendia isso. Até que conheci a repórter Carla Fiamini, que me apresentou à minha psicóloga Sandra Mara. Só através das terapias semanais consegui me estabilizar emocionalmente.

Ataque à escola em 2019 deixou 10 mortos Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO - 09/03/ 2020
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Eu só tinha uma certeza: que não voltaria mais à Escola Raul Brasil. Aquela seria minha última aula.

Não sei se ocorreu com as outras vítimas o que aconteceu comigo em relação aos cuidados “pós-massacre”. No meu caso, eu sabia que não conseguiria participar de terapias em grupos, como ocorreram, pois não queria que me vissem no estado que eu me encontrava. Fiquei um mês sem nenhum atendimento psicológico, só repetindo a mesma história várias vezes aos meios de comunicação. Era uma espécie de pedido de socorro, pois sozinha eu não estava conseguindo resolver.

Por parte do governo, não houve nenhuma oferta para custear meu tratamento psicológico. Terapias em grupo, no meu caso, não surtiriam nenhum efeito. Pelo contrário, quando eu ouvia falar sobre o quê e como estavam fazendo isso, minha revolta e medo só cresciam. Com a ajuda dos meios de comunicação, consegui que autorizassem as licenças prêmios que eu tinha direito. Também entrei com o pedido de aposentadoria, pois já tinha tempo e idade necessários para isso.

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Logo depois do ataque, a Comissão de Pais me procurou. Disseram que seria feita uma reforma na escola e eles precisavam saber como torná-la mais segura para seus filhos. Naquela época, era isso o que mais os preocupava. O que senti é que, no geral, falar sobre aquele assunto causava um desconforto muito grande. Por isso, me afastei da comunidade escolar, pois eu ainda queria falar.

O que senti é que, no geral, falar sobre aquele assunto causava um desconforto muito grande. Por isso, me afastei da comunidade escolar

Professora Jussara Melo

Acho que a comunidade escolar se uniu pra seguir em frente. Precisavam voltar para a sala de aula, mesmo que cada um tivesse que sufocar tudo aquilo. Não tinham outra opção.

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Psicologicamente, acredito que cada um trilhou seu próprio caminho. Com o tempo, percebemos que a cura é individual. Toda aquela mobilização também vai diminuindo e o ano letivo tinha que ser cumprido.

Antes, quando eu assistia na TV aos ataques em escolas dos Estados Unidos, via aquilo apenas como telespectadora. Hoje, consigo entender a dor, o medo e acima de tudo me preocupo com o “depois” - as pessoas que sobreviveram, principalmente as crianças, pois sei que esta conta um dia chega se não tiverem um acompanhamento psicológico digno.

Cada um sente, sofre e reage de um modo diferente. Cada um tem seu próprio tempo para recomeçar. Antecipar e normalizar isto é desumano.

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Cada um sente, sofre e reage de um modo diferente. Cada um tem seu próprio tempo para recomeçar. Antecipar e normalizar isto é desumano.

Professora Jussara Melo

A prevenção é sempre a melhor opção. Sabemos o que precisa ser feito, mas para isso acontecer a sociedade precisa entender como a Educação está doente.

Cobram dos professores tantas coisas, com uma burocracia imensa. As escolas hoje em dia funcionam como depósitos de alunos: quanto mais tempo ficarem ali melhor será para os pais, que precisam trabalhar. Seria ótimo para todo mundo se o ambiente escolar fosse saudável, mas sabemos que não é.

É preciso investimento.

Comunidade escola ainda convive com o trauma na Raul Brasil, em Suzano, na Grande São Paulo Foto: FELIPE RAU/ESTADÃO - 14/03/2019

A primeira coisa é o atendimento psicológico individualizado para aqueles alunos que necessitem. O psicólogo logado na escola pode encaminhar este aluno para profissionais qualificados. E a família deve cumprir também a parte dela - devemos valorizar as conquistas dos nossos filhos.

A segurança precisa ser reforçada “para ontem”. Além dos inspetores, é preciso que cada unidade escolar tenha sua própria guarda. Neste momento, não há outra forma de coibir esses ataques.

A escola precisa voltar a ser atrativa, propiciando além de atividades pedagógicas, outras que aproximem a comunidade escolar.

A escola precisa voltar a ser atrativa, propiciando além de atividades pedagógicas, outras que aproximem a comunidade escolar.

Professora Jussara Melo

E, por último, mas não menos importante - o combate ao bullying escolar, ao racismo, à intolerância religiosa e a qualquer coisa que possa extrapolar ou ferir o psicológico do outro.”

Aos 59 anos, a professora Jussara Melo abandonou a carreira na sala de aula, onde ensinava Espanhol, após o ataque na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, na Grande São Paulo. Em 2019, dois estudantes invadiram o local, mataram oito pessoas e se mataram em seguida.

Jussara relembra o período de recuperação diante do trauma sofrido. “Quando ouvia o som de um helicóptero ou sirene, tinha crises violentas de pânico. Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida”, afirma.

O ataque da semana passada em uma escola na Vila Sônia, na zona oeste da capital paulista, reacendeu o debate sobre medidas necessárias para coibir a recorrência de episódios dessa natureza. “A primeira coisa é o atendimento psicológico individualizado para aqueles alunos que necessitem”, diz a professora.

Leia abaixo o relato completo feito ao Estadão:

“Quando consegui voltar para casa naquele dia 13 de março de 2019, já era quase noite. O máximo que consegui foi ir até o estacionamento e buscar meu carro. O caminho para casa foi estranho, me senti um zumbi ao volante.

Mas o primeiro mês foi o mais difícil. Quem tentava falar comigo para ouvir sobre o atentado, eu contava em detalhes. Precisava me esvaziar daquilo. Mas quem buscou me convencer a voltar para a sala de aula não obteve sucesso. Eu entrava em crise e começava a chorar.

Não saí de casa por muitos dias. Quando ouvia o som de um helicóptero ou sirene, tinha crises violentas de pânico. Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida. Eu me culpava por ter sobrevivido a tudo aquilo e outros não.

Eu não quis retornar ao trabalho porque não concordava com o modo que o governo nos tratou naquela época. O importante era voltar para a escola, diziam, “juntos seríamos mais fortes”. Mas eu não aceitei aquelas mortes, fiquei decepcionada comigo mesma por não ser tão forte como meus outros colegas e não entendia isso. Até que conheci a repórter Carla Fiamini, que me apresentou à minha psicóloga Sandra Mara. Só através das terapias semanais consegui me estabilizar emocionalmente.

Ataque à escola em 2019 deixou 10 mortos Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO - 09/03/ 2020

Eu só tinha uma certeza: que não voltaria mais à Escola Raul Brasil. Aquela seria minha última aula.

Não sei se ocorreu com as outras vítimas o que aconteceu comigo em relação aos cuidados “pós-massacre”. No meu caso, eu sabia que não conseguiria participar de terapias em grupos, como ocorreram, pois não queria que me vissem no estado que eu me encontrava. Fiquei um mês sem nenhum atendimento psicológico, só repetindo a mesma história várias vezes aos meios de comunicação. Era uma espécie de pedido de socorro, pois sozinha eu não estava conseguindo resolver.

Por parte do governo, não houve nenhuma oferta para custear meu tratamento psicológico. Terapias em grupo, no meu caso, não surtiriam nenhum efeito. Pelo contrário, quando eu ouvia falar sobre o quê e como estavam fazendo isso, minha revolta e medo só cresciam. Com a ajuda dos meios de comunicação, consegui que autorizassem as licenças prêmios que eu tinha direito. Também entrei com o pedido de aposentadoria, pois já tinha tempo e idade necessários para isso.

Logo depois do ataque, a Comissão de Pais me procurou. Disseram que seria feita uma reforma na escola e eles precisavam saber como torná-la mais segura para seus filhos. Naquela época, era isso o que mais os preocupava. O que senti é que, no geral, falar sobre aquele assunto causava um desconforto muito grande. Por isso, me afastei da comunidade escolar, pois eu ainda queria falar.

O que senti é que, no geral, falar sobre aquele assunto causava um desconforto muito grande. Por isso, me afastei da comunidade escolar

Professora Jussara Melo

Acho que a comunidade escolar se uniu pra seguir em frente. Precisavam voltar para a sala de aula, mesmo que cada um tivesse que sufocar tudo aquilo. Não tinham outra opção.

Psicologicamente, acredito que cada um trilhou seu próprio caminho. Com o tempo, percebemos que a cura é individual. Toda aquela mobilização também vai diminuindo e o ano letivo tinha que ser cumprido.

Antes, quando eu assistia na TV aos ataques em escolas dos Estados Unidos, via aquilo apenas como telespectadora. Hoje, consigo entender a dor, o medo e acima de tudo me preocupo com o “depois” - as pessoas que sobreviveram, principalmente as crianças, pois sei que esta conta um dia chega se não tiverem um acompanhamento psicológico digno.

Cada um sente, sofre e reage de um modo diferente. Cada um tem seu próprio tempo para recomeçar. Antecipar e normalizar isto é desumano.

Cada um sente, sofre e reage de um modo diferente. Cada um tem seu próprio tempo para recomeçar. Antecipar e normalizar isto é desumano.

Professora Jussara Melo

A prevenção é sempre a melhor opção. Sabemos o que precisa ser feito, mas para isso acontecer a sociedade precisa entender como a Educação está doente.

Cobram dos professores tantas coisas, com uma burocracia imensa. As escolas hoje em dia funcionam como depósitos de alunos: quanto mais tempo ficarem ali melhor será para os pais, que precisam trabalhar. Seria ótimo para todo mundo se o ambiente escolar fosse saudável, mas sabemos que não é.

É preciso investimento.

Comunidade escola ainda convive com o trauma na Raul Brasil, em Suzano, na Grande São Paulo Foto: FELIPE RAU/ESTADÃO - 14/03/2019

A primeira coisa é o atendimento psicológico individualizado para aqueles alunos que necessitem. O psicólogo logado na escola pode encaminhar este aluno para profissionais qualificados. E a família deve cumprir também a parte dela - devemos valorizar as conquistas dos nossos filhos.

A segurança precisa ser reforçada “para ontem”. Além dos inspetores, é preciso que cada unidade escolar tenha sua própria guarda. Neste momento, não há outra forma de coibir esses ataques.

A escola precisa voltar a ser atrativa, propiciando além de atividades pedagógicas, outras que aproximem a comunidade escolar.

A escola precisa voltar a ser atrativa, propiciando além de atividades pedagógicas, outras que aproximem a comunidade escolar.

Professora Jussara Melo

E, por último, mas não menos importante - o combate ao bullying escolar, ao racismo, à intolerância religiosa e a qualquer coisa que possa extrapolar ou ferir o psicológico do outro.”

Aos 59 anos, a professora Jussara Melo abandonou a carreira na sala de aula, onde ensinava Espanhol, após o ataque na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, na Grande São Paulo. Em 2019, dois estudantes invadiram o local, mataram oito pessoas e se mataram em seguida.

Jussara relembra o período de recuperação diante do trauma sofrido. “Quando ouvia o som de um helicóptero ou sirene, tinha crises violentas de pânico. Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida”, afirma.

O ataque da semana passada em uma escola na Vila Sônia, na zona oeste da capital paulista, reacendeu o debate sobre medidas necessárias para coibir a recorrência de episódios dessa natureza. “A primeira coisa é o atendimento psicológico individualizado para aqueles alunos que necessitem”, diz a professora.

Leia abaixo o relato completo feito ao Estadão:

“Quando consegui voltar para casa naquele dia 13 de março de 2019, já era quase noite. O máximo que consegui foi ir até o estacionamento e buscar meu carro. O caminho para casa foi estranho, me senti um zumbi ao volante.

Mas o primeiro mês foi o mais difícil. Quem tentava falar comigo para ouvir sobre o atentado, eu contava em detalhes. Precisava me esvaziar daquilo. Mas quem buscou me convencer a voltar para a sala de aula não obteve sucesso. Eu entrava em crise e começava a chorar.

Não saí de casa por muitos dias. Quando ouvia o som de um helicóptero ou sirene, tinha crises violentas de pânico. Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida. Eu me culpava por ter sobrevivido a tudo aquilo e outros não.

Eu não quis retornar ao trabalho porque não concordava com o modo que o governo nos tratou naquela época. O importante era voltar para a escola, diziam, “juntos seríamos mais fortes”. Mas eu não aceitei aquelas mortes, fiquei decepcionada comigo mesma por não ser tão forte como meus outros colegas e não entendia isso. Até que conheci a repórter Carla Fiamini, que me apresentou à minha psicóloga Sandra Mara. Só através das terapias semanais consegui me estabilizar emocionalmente.

Ataque à escola em 2019 deixou 10 mortos Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO - 09/03/ 2020

Eu só tinha uma certeza: que não voltaria mais à Escola Raul Brasil. Aquela seria minha última aula.

Não sei se ocorreu com as outras vítimas o que aconteceu comigo em relação aos cuidados “pós-massacre”. No meu caso, eu sabia que não conseguiria participar de terapias em grupos, como ocorreram, pois não queria que me vissem no estado que eu me encontrava. Fiquei um mês sem nenhum atendimento psicológico, só repetindo a mesma história várias vezes aos meios de comunicação. Era uma espécie de pedido de socorro, pois sozinha eu não estava conseguindo resolver.

Por parte do governo, não houve nenhuma oferta para custear meu tratamento psicológico. Terapias em grupo, no meu caso, não surtiriam nenhum efeito. Pelo contrário, quando eu ouvia falar sobre o quê e como estavam fazendo isso, minha revolta e medo só cresciam. Com a ajuda dos meios de comunicação, consegui que autorizassem as licenças prêmios que eu tinha direito. Também entrei com o pedido de aposentadoria, pois já tinha tempo e idade necessários para isso.

Logo depois do ataque, a Comissão de Pais me procurou. Disseram que seria feita uma reforma na escola e eles precisavam saber como torná-la mais segura para seus filhos. Naquela época, era isso o que mais os preocupava. O que senti é que, no geral, falar sobre aquele assunto causava um desconforto muito grande. Por isso, me afastei da comunidade escolar, pois eu ainda queria falar.

O que senti é que, no geral, falar sobre aquele assunto causava um desconforto muito grande. Por isso, me afastei da comunidade escolar

Professora Jussara Melo

Acho que a comunidade escolar se uniu pra seguir em frente. Precisavam voltar para a sala de aula, mesmo que cada um tivesse que sufocar tudo aquilo. Não tinham outra opção.

Psicologicamente, acredito que cada um trilhou seu próprio caminho. Com o tempo, percebemos que a cura é individual. Toda aquela mobilização também vai diminuindo e o ano letivo tinha que ser cumprido.

Antes, quando eu assistia na TV aos ataques em escolas dos Estados Unidos, via aquilo apenas como telespectadora. Hoje, consigo entender a dor, o medo e acima de tudo me preocupo com o “depois” - as pessoas que sobreviveram, principalmente as crianças, pois sei que esta conta um dia chega se não tiverem um acompanhamento psicológico digno.

Cada um sente, sofre e reage de um modo diferente. Cada um tem seu próprio tempo para recomeçar. Antecipar e normalizar isto é desumano.

Cada um sente, sofre e reage de um modo diferente. Cada um tem seu próprio tempo para recomeçar. Antecipar e normalizar isto é desumano.

Professora Jussara Melo

A prevenção é sempre a melhor opção. Sabemos o que precisa ser feito, mas para isso acontecer a sociedade precisa entender como a Educação está doente.

Cobram dos professores tantas coisas, com uma burocracia imensa. As escolas hoje em dia funcionam como depósitos de alunos: quanto mais tempo ficarem ali melhor será para os pais, que precisam trabalhar. Seria ótimo para todo mundo se o ambiente escolar fosse saudável, mas sabemos que não é.

É preciso investimento.

Comunidade escola ainda convive com o trauma na Raul Brasil, em Suzano, na Grande São Paulo Foto: FELIPE RAU/ESTADÃO - 14/03/2019

A primeira coisa é o atendimento psicológico individualizado para aqueles alunos que necessitem. O psicólogo logado na escola pode encaminhar este aluno para profissionais qualificados. E a família deve cumprir também a parte dela - devemos valorizar as conquistas dos nossos filhos.

A segurança precisa ser reforçada “para ontem”. Além dos inspetores, é preciso que cada unidade escolar tenha sua própria guarda. Neste momento, não há outra forma de coibir esses ataques.

A escola precisa voltar a ser atrativa, propiciando além de atividades pedagógicas, outras que aproximem a comunidade escolar.

A escola precisa voltar a ser atrativa, propiciando além de atividades pedagógicas, outras que aproximem a comunidade escolar.

Professora Jussara Melo

E, por último, mas não menos importante - o combate ao bullying escolar, ao racismo, à intolerância religiosa e a qualquer coisa que possa extrapolar ou ferir o psicológico do outro.”

Aos 59 anos, a professora Jussara Melo abandonou a carreira na sala de aula, onde ensinava Espanhol, após o ataque na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, na Grande São Paulo. Em 2019, dois estudantes invadiram o local, mataram oito pessoas e se mataram em seguida.

Jussara relembra o período de recuperação diante do trauma sofrido. “Quando ouvia o som de um helicóptero ou sirene, tinha crises violentas de pânico. Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida”, afirma.

O ataque da semana passada em uma escola na Vila Sônia, na zona oeste da capital paulista, reacendeu o debate sobre medidas necessárias para coibir a recorrência de episódios dessa natureza. “A primeira coisa é o atendimento psicológico individualizado para aqueles alunos que necessitem”, diz a professora.

Leia abaixo o relato completo feito ao Estadão:

“Quando consegui voltar para casa naquele dia 13 de março de 2019, já era quase noite. O máximo que consegui foi ir até o estacionamento e buscar meu carro. O caminho para casa foi estranho, me senti um zumbi ao volante.

Mas o primeiro mês foi o mais difícil. Quem tentava falar comigo para ouvir sobre o atentado, eu contava em detalhes. Precisava me esvaziar daquilo. Mas quem buscou me convencer a voltar para a sala de aula não obteve sucesso. Eu entrava em crise e começava a chorar.

Não saí de casa por muitos dias. Quando ouvia o som de um helicóptero ou sirene, tinha crises violentas de pânico. Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida. Eu me culpava por ter sobrevivido a tudo aquilo e outros não.

Eu não quis retornar ao trabalho porque não concordava com o modo que o governo nos tratou naquela época. O importante era voltar para a escola, diziam, “juntos seríamos mais fortes”. Mas eu não aceitei aquelas mortes, fiquei decepcionada comigo mesma por não ser tão forte como meus outros colegas e não entendia isso. Até que conheci a repórter Carla Fiamini, que me apresentou à minha psicóloga Sandra Mara. Só através das terapias semanais consegui me estabilizar emocionalmente.

Ataque à escola em 2019 deixou 10 mortos Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO - 09/03/ 2020

Eu só tinha uma certeza: que não voltaria mais à Escola Raul Brasil. Aquela seria minha última aula.

Não sei se ocorreu com as outras vítimas o que aconteceu comigo em relação aos cuidados “pós-massacre”. No meu caso, eu sabia que não conseguiria participar de terapias em grupos, como ocorreram, pois não queria que me vissem no estado que eu me encontrava. Fiquei um mês sem nenhum atendimento psicológico, só repetindo a mesma história várias vezes aos meios de comunicação. Era uma espécie de pedido de socorro, pois sozinha eu não estava conseguindo resolver.

Por parte do governo, não houve nenhuma oferta para custear meu tratamento psicológico. Terapias em grupo, no meu caso, não surtiriam nenhum efeito. Pelo contrário, quando eu ouvia falar sobre o quê e como estavam fazendo isso, minha revolta e medo só cresciam. Com a ajuda dos meios de comunicação, consegui que autorizassem as licenças prêmios que eu tinha direito. Também entrei com o pedido de aposentadoria, pois já tinha tempo e idade necessários para isso.

Logo depois do ataque, a Comissão de Pais me procurou. Disseram que seria feita uma reforma na escola e eles precisavam saber como torná-la mais segura para seus filhos. Naquela época, era isso o que mais os preocupava. O que senti é que, no geral, falar sobre aquele assunto causava um desconforto muito grande. Por isso, me afastei da comunidade escolar, pois eu ainda queria falar.

O que senti é que, no geral, falar sobre aquele assunto causava um desconforto muito grande. Por isso, me afastei da comunidade escolar

Professora Jussara Melo

Acho que a comunidade escolar se uniu pra seguir em frente. Precisavam voltar para a sala de aula, mesmo que cada um tivesse que sufocar tudo aquilo. Não tinham outra opção.

Psicologicamente, acredito que cada um trilhou seu próprio caminho. Com o tempo, percebemos que a cura é individual. Toda aquela mobilização também vai diminuindo e o ano letivo tinha que ser cumprido.

Antes, quando eu assistia na TV aos ataques em escolas dos Estados Unidos, via aquilo apenas como telespectadora. Hoje, consigo entender a dor, o medo e acima de tudo me preocupo com o “depois” - as pessoas que sobreviveram, principalmente as crianças, pois sei que esta conta um dia chega se não tiverem um acompanhamento psicológico digno.

Cada um sente, sofre e reage de um modo diferente. Cada um tem seu próprio tempo para recomeçar. Antecipar e normalizar isto é desumano.

Cada um sente, sofre e reage de um modo diferente. Cada um tem seu próprio tempo para recomeçar. Antecipar e normalizar isto é desumano.

Professora Jussara Melo

A prevenção é sempre a melhor opção. Sabemos o que precisa ser feito, mas para isso acontecer a sociedade precisa entender como a Educação está doente.

Cobram dos professores tantas coisas, com uma burocracia imensa. As escolas hoje em dia funcionam como depósitos de alunos: quanto mais tempo ficarem ali melhor será para os pais, que precisam trabalhar. Seria ótimo para todo mundo se o ambiente escolar fosse saudável, mas sabemos que não é.

É preciso investimento.

Comunidade escola ainda convive com o trauma na Raul Brasil, em Suzano, na Grande São Paulo Foto: FELIPE RAU/ESTADÃO - 14/03/2019

A primeira coisa é o atendimento psicológico individualizado para aqueles alunos que necessitem. O psicólogo logado na escola pode encaminhar este aluno para profissionais qualificados. E a família deve cumprir também a parte dela - devemos valorizar as conquistas dos nossos filhos.

A segurança precisa ser reforçada “para ontem”. Além dos inspetores, é preciso que cada unidade escolar tenha sua própria guarda. Neste momento, não há outra forma de coibir esses ataques.

A escola precisa voltar a ser atrativa, propiciando além de atividades pedagógicas, outras que aproximem a comunidade escolar.

A escola precisa voltar a ser atrativa, propiciando além de atividades pedagógicas, outras que aproximem a comunidade escolar.

Professora Jussara Melo

E, por último, mas não menos importante - o combate ao bullying escolar, ao racismo, à intolerância religiosa e a qualquer coisa que possa extrapolar ou ferir o psicológico do outro.”

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