É preciso olhar além da proibição dos celulares, diz a presidente do Instituto Palavra Aberta, Patrícia Blanco, especialista em educação midiática. Ela argumenta que, apesar de a lei aprovada no Congresso no fim de 2024 trazer a correta mensagem de que não deve haver uso recreativo dos dispositivos na escola, não se pode achar que é uma questão resolvida.
“Se regular é preciso, educar é urgente”, afirma, em entrevista ao Estadão. Precisa desenvolver as habilidades necessárias para o uso seguro e responsável da tecnologia, para que os estudantes entendam como funcionam os algoritmos, para que crianças e jovens criem maturidade e autonomia no uso. E a escola é um espaço importante para essa discussão.”
Ela afirma temer que esse debate seja “empurrado para baixo do tapete” com a proibição dos celulares nas escolas e fique apenas para responsabilidade dos pais, que não estão necessariamente preparados para isso.
Mais de 90% dos adolescentes de 15 a 17 anos e 67% dos de 9 e 10 anos no País já têm celular próprio, diz a pesquisa TIC Kids Online Brasil, feita pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br). “Eles já estão usando fora da escola. Precisa mostrar as consequências, falar sobre o impacto, trazer a discussão sobre riscos.”
Patrícia também diz que discorda da comparação entre celular e cigarro, por causa do vício inerente aos dois. “É uma comparação simplista. O celular com internet tem coisas positivas e o cigarro não tem nenhuma”, afirma. “Há muita coisa positiva sendo criada a partir do domínio da tecnologia, das ferramentas de produção e difusão de informação. Claro que há o problema de saúde mental, mas também tem de olhar a metade cheia do copo.”
Como você avalia a proibição dos celulares nas escolas, aprovada no Congresso e na Assembleia Legislativa de São Paulo?
Vejo de duas formas. A primeira delas é organizar o uso do dispositivo nas escolas. Cada uma pensava de um jeito, cada rede também, então cria uma regra única. Agora está proibido o uso de dispositivo eletrônicos com acesso à internet durante o período escola. Tem também o lado positivo de restaurar o poder do professor em dizer: não é hora de usar o celular em sala de aula. Fica claro que não tem espaço na escola para uso recreativo do dispositivo. Mas tem de olhar o que vem depois da proibição. As pesquisas mostram que a frequência de uso do celular se dá muito mais fora do ambiente escolar, a população de 9 a 17 anos usa em casa. Cmo é que a gente vai tratar a questão do uso seguro, consciente, responsável do dispositivo, fora do ambiente da escola? As famílias estão preparadas para esse desafio?
Leia Também:
Acredita que a responsabilidade vai acabar indo só para as famílias?
É uma responsabilidade compartilhada. Mas pelo fato de a escola ser um local de educação, ela poderia introduzir a temática do uso seguro consciente do dispositivo, com intencionalidade pedagógica, ao longo do tempo. Quando tira isso totalmente da escola e transfere exclusivamente para ser debatido no ambiente familiar, pode perder a oportunidade de tratar dessa temática, que faz parte da vida de todo mundo. O celular é inerente à tecnologia. Tem de olhar a proibição como primeiro passo. Mas não pode deixar de pensar o que a gente pode fazer agora para possibilitar o desenvolvimento das habilidades necessárias para o uso seguro e responsável da tecnologia. E a escola pode ser um espaço muito importante para essa discussão. Faz parte da Base Nacional Comum Curricular (a BNCC, documento do Ministério da Educação que define os objetivos de aprendizagem para todas as escolas do País, em todos os níveis do ensino básico) o desafio de educar a sociedade para o uso seguro da tecnologia.
Você acha que vai haver essa discussão nas escolas?
Quando proíbe qualquer dispositivo ligado à internet, o risco é empurrar para debaixo do tapete um tema. Simplesmente saiu da minha mão; não preciso mais falar. Essa é a reflexão que precisa fazer, para apoiar a escola, o professor, para que ele tenha instrumentos para trazer essa temática independentemente se tem um dispositivo na mão ou não. Para tratar do tema dentro das necessidades de se educar para o século 21. Se regular é preciso, educar é urgente.
As pesquisas mostram também que a maioria das crianças e adolescentes já tem celular próprio a partir dos 9 anos. A gente não está preparando para esse uso. A gente está dizendo só ‘ok, tira da escola’. Sim, ele distrai na aula, tem efeito viciante. Mas a gente vai criar espaços para que haja a introdução da educação midiática, para que os jovens que cada vez mais cedo têm acesso a dispositivos possam criar maturidade, desenvolver autonomia? Estamos preparando para um uso responsável, seguro, ético da tecnologia, para a utilização da inteligência artificial? Para entender o que está por trás dos algoritmos? Ensinando o que é uma informação que precisa ser checada, um conteúdo publicitário, um conteúdo orgânico?
E não dá para ensinar isso tudo sem usar o aparelho?
Um ponto importante é que a criança e o jovem já estão usando o celular sem ter habilidade necessária para analisar criticamente o uso. Lógico que existem diversos instrumentos que você pode utilizar offline, jogos, cartas em que você introduz o desenvolvimento da análise crítica. Mas precisa também pegar o dispositivo e fazer com que ele tenha essa habilidade digital. Por exemplo, pedir para que aluno fazer uma pergunta em um buscador e interpretar a resposta, para entender a questão do algoritmo. Mostrar que o primeiro resultado pode ser uma publicidade, e nem sempre é o mais correto ou melhor, pode ver que no dispositivo de uma pessoa o resultado é diferente do da outra. São exercícios de análise crítica do resultado que mostram que o algoritmo é baseado nas suas escolhas, no seu histórico de navegação e isso você não consegue fazer sem o dispositivo. Quando fala sobre a arquitetura do ambiente digital, precisa do digital, senão vai falar só em teoria.
Você falou que a responsabilidade também tem de ser compartilhada com os pais. Qual deve ser a participação deles?
Os pais e as mães precisam pensar: meu filho tem autonomia para já ter um celular com 5 ou 6 anos? Precisa de celular próprio? Quais são os controles de acesso que estou restringindo? Tem uma navegação segura? Sei fazer o controle parental? Cada família é uma, tem seu contexto, tem questões de maturidade da criança, que é diferente em determinadas idades. O ponto é que a proibição na escola não tira a responsabilidade de educar para o uso e isso precisa ser algo dividido. É compartilhado entre o governo que dá regra, a escola que educa, famílias que buscam uma navegação mais segura, que entendem também o seu papel de checar, acompanhar a navegação do seu filho. Uma ação coletiva mesmo.
O que acha dos movimentos que pedem que não se dê celulares próprios antes dos 14 anos?
Não concordo em colocar uma idade mínima sem considerar as peculiaridades, as diferenças e a necessidade de cada família, de regiões. Há famílias que precisam do dispositivo para acompanhar porque a criança fica muito tempo sozinha, pega transporte público. Há outras em que a criança precisa de atenção especial por questões de desenvolvimento, de saúde. Traçar uma idade pode ser um balizador para dizer que vamos tentar segurar o máximo que puder. Mas não dá para achar que se esperar até os 14 anos a criança estará pronta, sem nunca ter tido nenhum tipo de acesso, nunca ter desenvolvido ao longo do tempo essa maturidade para ganhar autonomia aos poucos.
E o que acha da proibição de redes sociais para menores de 16 anos aprovada na Austrália?
As pesquisas mostram que crianças de 9 a 11 já têm perfil próprio na rede, ou seja, burlam as regras das plataformas, que só permitem acima de 13. As plataformas não fazem o devido controle etário. Qualquer criança com mais habilidade digital coloca lá que nasceu em 1971 e consegue criar o seu perfil. Precisa ter regramento do controle etário, mas também entendimento da família que um perfil de adolescente precisa de acompanhamento. Com relação à Austrália, é preciso saber se a proibição vai empurrar esses jovens para entrar na deep web (camada da internet visível só com navegadores especiais, onde muitas vezes há crimes e compartilhamento de pornografia) para perfis falsos. Claro que temos que ter a proteção absoluta para crianças e adolescentes, mas eles precisam ser educados para o desenvolvimento da autonomia e da habilidade. A questão da proibição pode trazer a vontade de quebrar a regra, de burlar. É melhor educar.
Acha que é paradoxal a mensagem de demonização das tecnologias ao mesmo tempo que se diz também às novas gerações que o futuro será digital e eles precisam estar preparados para isso?
É preciso educar para o uso da tecnologia. Ou você desenvolve essas habilidades ou está totalmente excluído. Vai aumentar ainda mais o gap (lacuna) entre quem tem educação digital e midiática de quem não tem. O mercado de trabalho tem toda a discussão sobre as profissões do futuro, das que não existirão mais. E todas são baseadas em programação, computação, resolução de problemas, no uso do digital, da tecnologia. E aí a gente está dizendo: vamos proibir. Nessa discussão de que os riscos são muito maiores do que os benefícios há uma inversão. Precisa olhar os benefícios para proteger dos riscos. Não pode é deixar que a discussão sobre o uso seguro seja tão intensa a ponto de bloquear tudo, de não tratar do assunto da forma como se deveria, com a seriedade e a profundidade que deveria.
Quais são esses benefícios?
Uma vez que todos somos produtores e disseminadores de conteúdo a partir de ferramentas tecnológicas, a habilidade de usar bem essas tecnologias faz com se desenvolva a auto expressão, a fluência digital, a participação mais ativa na sociedade. Há protagonismo jovem nesse ambiente digitalizado, com a participação cidadã. Sem leitura crítica, sem fluência digital, não participo da vida democrática. O inverso é totalmente verdadeiro: se tenho habilidade crítica, a fluência digital e as habilidades para analisar e produzir conteúdo, participo melhor desse ambiente. Veja as campanhas de doação, jovens se mobilizando para limpeza da escola, para fortalecer redes de apoio das minorias, combater a violência, movimento antiarmas, antirracista, para inclusão. Tem muita coisa positiva sendo criada a partir do domínio da tecnologia, das ferramentas de produção e difusão de informação. Claro que há o problema de saúde mental, mas também tem de olhar a metade cheia do copo.
Os professores estão preparados para fazer essa educação?
Isso é muito irregular. Há núcleos de qualificação que estão muito desenvolvidos. E tem outros que ainda sofrem com aquele medo de usar a tecnologia. Já diminuiu, mas ainda precisa de muita formação. O Educamídia (programa do Instituto Palavra Aberta) foi justamente pensado para formar o professor, não só para levar o conteúdo para o aluno, mas para ele mesmo ser formado. A gente percebeu que existia carência na formação desse professor e principalmente dos que estavam já no chão da escola há mais tempo. Não tinham tido nenhum tipo de educação digital e midiática. A gente tem discutido muito sobre a necessidade da mudança dos currículos dos cursos de pedagogia e de licenciaturas em geral, porque o professor já tem de sair com essa capacidade. Não dá mais para ter só o laboratório de informática ou de robótica na escola. Todo mundo tem de entender de tecnologia, do mundo digital, de educação midiática.
E como as plataformas de internet poderiam colaborar nesse processo de educação?
As plataformas poderiam, de forma mais intensa, ensinar como fazer o controle parental, o tipo de navegação segura para cada idade. Ter uma atitude mais proativa nesse sentido. Elas têm lá o programa e tal, só que quando você entra no site, até chegar ao controle parental é difícil. Há agora esse lançamento da conta de adolescente do Instagram, que começa em janeiro no Brasil, com bloqueios e monitoramento dos pais, é um caminho para isso, mas tem de ter divulgação ampla, eventos, campanhas publicitárias para ensinar o uso.
O que acha da comparação entre celular e cigarro, pelo questão do vício?
Não gosto nada da afirmação de que o celular é o novo cigarro. É uma comparação simplista. O celular com internet tem coisas muito positivas e o cigarro não tem nenhuma. Além disso, há mais de 20 anos é a proibida a publicidade do cigarro, da venda para menores de 18 anos. E quantos jovens estão começando a fumar? É preciso mostrar as consequências, falar sobre o impacto, sobre riscos. Se proibir resolvesse, não tinha mais fumante em porta de escola, não tinha vape (cigarro eletrônico) que está sendo vendido mesmo proibido. O celular vicia, mas principalmente se não tem o uso consciente. O celular virou o vilão do uso da tecnologia. O vilão anterior era o vídeo game; e o anterior, a TV. E tudo isso a gente aprendeu a usar, ver o lado positivo, desenvolveu a habilidade crítica para poder fazer bom uso.
Mas agora há os algoritmos, que têm maior poder viciante, que levam a polarização, ao extremismo…
Se você não é educado para isso, se não está alerta a essas questões, você de fato acaba se viciando. Tudo isso é muito recente para só olhar a metade vazia do copo. Tem de olhar também a parte cheia e o que a gente pode melhorar nas habilidades de uso seguro e responsável para que não deixe que só o lado negativo afete a gente.