No mundo todo, educadores e instituições de ensino têm discutido a proibição de celulares. Aqui no Brasil, o Ministério da Educação (MEC) anunciou que está trabalhando para aprovar ainda neste ano um projeto de lei que vete o uso de celulares nas escolas públicas e particulares a partir de 2025. A medida é uma resposta a pesquisas que mostram os efeitos nocivos das telas no desenvolvimento de crianças e adolescentes e também atende à reivindicação de famílias do País todo.
“Começamos com um grupo de mães da escola, preocupadas com o que víamos nas pesquisas científicas. Surgiu interesse de famílias de outras escolas e acabamos formando um comitê. Na primeira reunião, tínhamos representantes de 16 Estados”, afirma Camila Bruzzi, cofundadora do Movimento Desconecta e uma das participantes do Meet Point que o Estadão promoveu nesta quinta-feira, 24, para discutir como lidar com os celulares e as redes sociais em casa e nas escolas.
A proposta do Desconecta é que as famílias de cada escola possam se unir para adiar a entrega do celular aos filhos até que eles tenham 14 anos. O acesso às redes seria restrito até pelo menos os 16 anos. “Queremos postergar para um momento em que o adolescente esteja mais preparado e menos suscetíveis a influências”, diz Camila.
De fato, tanto estudos científicos como a prática clínica têm trazido à tona os malefícios desse uso precoce e exagerado das telas. “A situação é bem assustadora. Além de gerar mais ansiedade e pensamentos ruins, eles estão perdendo habilidades e possibilidade de se comunicar, de estar entre eles e entre adultos”, afirma o hebiatra Felipe Fortes.
O médico, que também é integrante da equipe do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente da UERJ, explica que a adolescência é um período de intensa formação cerebral e que a exposição a experiências variadas potencializa as habilidades cognitivas e emocionais. Isso inclui, por exemplo, contatos presenciais com amigos, tempo na natureza, leitura, ócio e até momentos no videogame.
Com o uso do celular, no entanto, boa parte desse tempo é utilizado em um monotema, que é a tela. “E, no meio de tudo isso, os vídeos curtos são o grande problema, o funil mais grave. O adolescente fica ali sem interagir, sem se relacionar, sem exercer o senso crítico.”
Com o tempo, isso gera um “apagamento neuronal”, quando literalmente há o apagamento de feixes nervosos que o cérebro não utiliza. “Os jovens estão começando a perder habilidades cognitivas e emocionais.”
Uso controlado
Diante dessas evidências, é importante que a sociedade desenvolva estratégias assertivas e que não sejam radicais, até porque vive-se uma nova realidade que é a virtualidade das relações e a vivência mediada pela tecnologia.
“O controle é ineficaz do ponto de vista educacional. A privação, contenção ou supervisão pura e simples não geram resultado efetivo”, afirma Raul Alves de Souza, integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem) da Unesp e da Unicamp.
Souza defende a importância de que haja critérios e métodos intencionais e sistemáticos para educação sobre o uso do celular e das redes sociais, tanto no contexto escolar como no familiar.
Um princípio importante, explica, é compreender que a aprendizagem vem com a vivência, com a relação estabelecida. No caso do celular e das redes, isso significa acompanhar essa exposição e fazer a intervenção adequada para apontar e corrigir usos inapropriados. Que não são poucos.
Principalmente após a pandemia, as pesquisas mostram que quanto maior o tempo de exposição a elas, maior o risco desses adolescentes se colocarem em problemas de convivência virtual como o cyberbullying e o sexting (envio e recebimento de fotos, mensagens e vídeos sexualmente explícitos). “Ele vai ter contato, seja aos 12, aos 14 ou aos 17 anos. Precisamos educar para essa convivência virtual.”
‘Rolê mais violento’
No dia a dia da prática clínica, o que o hebiatra Felipe Fortes observa é que o grande desafio das famílias é saber como agir de forma a respeitar a transgressividade saudável e típica da adolescência mas, ao mesmo tempo, proteger o jovem dos riscos.
“Na adolescência, transgredir é construtor de saúde mental porque a gente começa a se individualizar, a se identificar com os iguais. Mas, quando o tema são redes sociais, esse rolê é muito mais violento. O adolescente precisa de bordas, de limites.”
Fortes relata atender adolescentes em “frangalhos emocionais” após consumir conteúdos em redes sociais. O acesso a pornografia é um exemplo. Os estudos mostram que, se a criança tem um celular na mão, o contato com pornografia é de oito anos para meninos e de nove para meninas.
“E ele nem procurou. O algoritmo vai levando. Ele pesquisa por exemplo ‘bunda’, porque tem oito anos. Daí vai indo, indo, indo e daqui a pouco está vendo sexo com animais, necrofilia. Ele chega chorando no consultório e pergunta ‘como eu faço para desver’? E não tem mais como desver.”
E, nesse ponto, dizem os especialistas, entra a questão mais importante para a sociedade: a regulação das redes, com a responsabilização das big techs. “Por mais que se faça curadoria de tempo e de conteúdo, se não houver regulação, a luta contra dispositivos e algoritmos vai ser muito difícil de ser travada”, diz Raul Alves de Souza, do Gepem.
Os próximos eventos do Reconstrução da Educação serão:
- Dia 31/10 - Pais “helicópteros” e a superproteção
- Dia 6/11 - Como educar crianças antirracistas
- Dia 8/11 - Desinformação e fake news: Como promover uma educação midiática
- Dia 18/11 - Evento presencial Reconstrução da Educação, no Museu do Ipiranga