‘CNPq usou um parecer misógino para recusar a minha bolsa’, diz pesquisadora e mãe de duas filhas


Órgão repudiou trecho citando gestações que considerou ‘preconceituoso’ e prometeu tomar medidas; caso levanta discussão sobre desigualdade e dificuldade de ascensão na carreira de mães pesquisadoras

Por Leon Ferrari
Atualização:

“O proponente não teve projetos de pesquisa financiados pelo CNPq, como universal, nem projetos individuais Fapesp após seu ingresso na UFABC. Não realizou pós-doc no exterior. Provavelmente suas gestações atrapalharam essas iniciativas, o que poderá ser compensado no futuro”, diz um dos pareceres ad hoc emitidos em resposta ao pedido de bolsa produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico feito pela professora e pesquisadora Maria Carlotto, de 40 anos. Ela atua na Universidade Federal do ABC, na Grande São Paulo.

Se antes estava decepcionada por não ter sido aprovada, quando se ateve aos detalhes das justificativas para tanto, foi tomada pelo choque. ”Eu não acredito que eles deixaram isso passar”, pensou ela, que tem duas filhas – uma de 1 ano e outra de 2. Maria, que já escrevia um recurso ao resultado final preliminar, com base em outras inconsistências que lhe incomodaram, parou tudo. “Falei: ‘não, isso aqui não pode passar’”, afirmou ao Estadão.

Na terça-feira, 26, Maria publicou no X, antigo Twitter, um desabafo. “Vontade de chorar”, escreveu. A postagem recebeu mais de 600 compartilhamentos e 3 mil likes, e gerou um posicionamento do CNPq, que classificou o trecho da avaliação como “preconceituoso” e disse que tomará as medidas cabíveis. Na nota, a agência de fomento também citou seu trabalho em prol da igualdade, que inclui extensões de períodos de bolsa e de avaliação em decorrência de maternidade.

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No edital de seleção de Maria, inclusive, havia um “critério especial para pesquisadoras”, para aquelas que declarassem licença-maternidade no período considerado para o julgamento. Ter pós-doutorado ou projeto com bolsa Universal – um outro incentivo do CNPq para pesquisa – não é critério para a avaliação, conforme a própria agência destacou na nota de esclarecimento.

Sede do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em Brasília, no DF. Foto: Carlos Cruz/CNPq

Segundo o CNPq, o “juízo” não foi corroborado pelo comitê assessor responsável pelo julgamento final - que usa os pareceres ad hoc para formular a decisão, mas não necessariamente precisa considerá-los. É assegurado o sigilo da autoria dessas avaliações. No caso de Maria, houve dois pareceres. O outro era favorável à cessão da bolsa a ela.

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Para Maria, o julgamento final parece desconsiderar “completamente”, em suas palavras, o parecer favorável, enquanto chega a repercutir trechos – com erros de digitação, inclusive –, da avaliação negativa – não o excerto que traz o posicionamento preconceituoso. O Estadão teve acesso ao conteúdo completo das avaliações.

“Recebi um parecer que o próprio CNPq reconhece que é inapropriado, preconceituoso. Só que ele fala ‘não, esse juízo não foi levado em consideração’, mas o parecer foi porque ele sustenta a reprovação da minha bolsa. Usaram um parecer misógino (misoginia é o ódio direcionado a mulheres) para recusar a minha bolsa. Isso é um absurdo.”

Faltou, segundo ela, 0,2 ponto para que fosse aprovada. “Não é sobre mim, sobre a minha bolsa, é sobre um sistema que precisa mudar.” Historicamente, mulheres são minoria entre os bolsistas de produtividade, conforme mostra o movimento Parent in Science, que reúne cientistas brasileiros que são pais e mães, e tabula e divulga os dados do CNPq.

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A reportagem entrou em contato com a agência para mais esclarecimentos, mas não obteve retorno.

Maria, mãe e cientista

Mato-grossense de nascença, Maria já residia em Bauru quando decidiu cursar Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP), onde, mais tarde, também conquistou os títulos de mestre e doutora em Sociologia. Durante o doutorado, realizou um estágio na Université de Paris IV-Sorbonne, na França.

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Meses após receber o título de doutora em 2014, foi selecionada em concurso para ser professora da Universidade Federal do ABC. Lá, dá aulas nos cursos de Ciências e Humanidades e de Relações Internacionais, e no Programa de Pós-graduação em Economia Política Mundial, que ajudou a fundar. Ela também coordena o grupo de estudos Neoliberalismo, Democracia e Mudança Estrutural do Espaço Intelectual Brasileiro.

Maria Carlotto é professora da UFABC, pesquisadora e mãe de duas filhas. Foto: Adriana Vichi

A tese de doutorado de Maria recebeu menção honrosa no Prêmio Capes, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, na área de Sociologia. A dissertação de mestrado virou livro – Veredas da mudança ciência brasileira: Discurso, Institucionalização e Práticas no Cenário – e recebeu o Prêmio Marcel Roche para jovens pesquisadores da Associação Latino-América de Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (Esocite).

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“Achava, ingenuamente, que tinha muitas chances nesse edital. Não era só eu, porque outras pessoas depois me falaram que, quando saiu a lista, estranharam que o meu nome não estava lá”, conta.

Maria sentia-se confiante pois, embora sua produtividade tenha caído no período das licenças, jamais cessou. “Já tinha coisas em andamento.”

Bolsa de produtividade

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As bolsas de produtividade do CNPq, oferecidas desde a década de 1970, são uma importante forma de apoio à pesquisa e de reconhecimento de cientistas que se destacam em sua área. Existem cinco níveis de bolsas, que vão do nível 2 (inicial) até o nível 1A (máximo), passando pelos níveis 1D, 1C e 1B. Além disso, existem as bolsas do nível Sênior. Essas, para além do retorno monetário, como destaca Maria, têm um valor simbólico e podem significar a abertura de portas na carreira de um profissional.

As bolsas são distribuídas por Comitês de Assessoramento (CAs). Para o julgamento final, eles levam em consideração os pareceres ad hoc, o projeto de pesquisa apresentado e, sobretudo, a produtividade desse professor/pesquisador. Isso inclui publicações e orientações de mestrado e doutorado, por exemplo, durante um determinado período de tempo – no caso de Maria, cinco anos.

O edital deste ano apresentou o “critério especial para pesquisadoras”, que, segundo o seu anexo, “teve o objetivo de promover a equidade entre homens e mulheres na ciência e tecnologia”. Na prática, esse critério inclui dois anos a cada licença-maternidade na janela de avaliação da produtividade. Para tanto, é preciso que a cientista informe a data de nascimento ou adoção na proposta ou a data de licença-maternidade no Currículo Lattes. Na avaliação de Maria, por exemplo, como teve duas filhas, o período de análise precisou ser de nove anos.

Gênero

“Faço questão de dizer que não é sobre a minha bolsa. Pode até ser que o julgamento final seja esse mesmo, quando sou comparada aos outros pesquisadores. Não estou questionando isso”, diz Maria. O que a incomoda é ver um parecer preconceituoso dentro do julgamento de sua proposta. E a exposição do seu caso nas redes sociais, explica, é para destacar que não é algo isolado, mas sim um problema sistêmico. “Meu caso ganhou evidência, mas isso já aconteceu com outras mulheres. Isso é uma coisa recorrente (na comunidade científica).”

Especialmente nos últimos anos, a luta de mães pesquisadoras tem sido evidenciada. Essa discussão é cruzada por outro debate que, inclusive, foi tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) neste ano: o trabalho “invisível” das mulheres. Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, elas dedicaram 9,6 horas por semana a mais do que os homens nos afazeres domésticos ou no cuidado de pessoas. Essa sobrecarga, segundo especialistas e estudos, tem impacto na trajetória que enfrentam no mercado de trabalho e, entre outros fatores, resulta num cenário que não nos é incomum, no qual homens são maioria em cargos de liderança e destaque.

Para se ter uma ideia, as mulheres representam a maioria (54,2%) das matrículas em cursos stricto sensu (mestrado e doutorado), de acordo com a base de dados da Capes relacionados ao ano de 2021. A mesma base mostra que o cenário se inverte quando se observam os professores desses cursos, em que os homens prevalecem (57%).

Segundo o Parente in Science, a participação de mulheres em bolsas de produtividade, a que Maria concorria, quase não teve alteração expressiva em 20 anos. Foi de 33,4% em 2004, e de 35,6% em 2023.

De acordo com o movimento, as mulheres submetem menos pedidos de bolsa produtividade do que homens, mas isso, por si só, não explica o cenário desigual. Ao analisar a taxa de aprovação de homens e mulheres, que considera os pedidos deferidos dentre aqueles submetidos, elas (41% em 2021) apresentam menor taxa de sucesso do que os eles (45,7%).

Outro ponto que chama a atenção é que a sub-representação das mulheres no quadro geral das bolsas diminui com o aumento dos níveis das bolsas, de acordo com o Parent in Science. É o que os especialistas chamam de “efeito tesoura”.

É à luz de dados como esses que ativistas e especialistas destacam a necessidade de um olhar sensível para o tema e de incentivos para mães pesquisadoras. O critério especial para pesquisadoras, que aparece no edital para a bolsa de produtividade, é louvável e está no caminho certo, avaliam.

Porém, Maria acha que é preciso avançar ainda mais. Ela conta, por exemplo, que durante todo parecer é tratada como “o proponente”, mesmo sendo possível deduzir que ela se identifica como mulher. “Existe uma tensão que não está resolvida no CNPq, que é consideramos as questões de gênero, mas a gente finge que existe uma neutralidade que na verdade não existe.”

Por outro lado, ela questiona o letramento das pessoas e levanta a necessidade de um procedimento de inviabilização de pareceres. “Tem coisas que são básicas.” Na nota de esclarecimento, o CNPq afirma que “instruirá seu corpo de pareceristas para maior atenção na emissão de seus pareceres”.

Vale ressaltar que a chegada do parecer e o período de recurso coincidem com o período de férias escolares. Não é a primeira vez que isso acontece, de acordo com Maria. “As crianças a gente deixa aonde?”

Agora, a luta de Maria é também para que essas questões não sejam lidas de forma individual em prol de políticas que efetivamente promovam a igualdade. “Muitas mulheres são destruídas nesse processo, e o que nos fortalece é tratar isso coletivamente, politicamente, como uma demanda de todas nós mulheres.”

“O proponente não teve projetos de pesquisa financiados pelo CNPq, como universal, nem projetos individuais Fapesp após seu ingresso na UFABC. Não realizou pós-doc no exterior. Provavelmente suas gestações atrapalharam essas iniciativas, o que poderá ser compensado no futuro”, diz um dos pareceres ad hoc emitidos em resposta ao pedido de bolsa produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico feito pela professora e pesquisadora Maria Carlotto, de 40 anos. Ela atua na Universidade Federal do ABC, na Grande São Paulo.

Se antes estava decepcionada por não ter sido aprovada, quando se ateve aos detalhes das justificativas para tanto, foi tomada pelo choque. ”Eu não acredito que eles deixaram isso passar”, pensou ela, que tem duas filhas – uma de 1 ano e outra de 2. Maria, que já escrevia um recurso ao resultado final preliminar, com base em outras inconsistências que lhe incomodaram, parou tudo. “Falei: ‘não, isso aqui não pode passar’”, afirmou ao Estadão.

Na terça-feira, 26, Maria publicou no X, antigo Twitter, um desabafo. “Vontade de chorar”, escreveu. A postagem recebeu mais de 600 compartilhamentos e 3 mil likes, e gerou um posicionamento do CNPq, que classificou o trecho da avaliação como “preconceituoso” e disse que tomará as medidas cabíveis. Na nota, a agência de fomento também citou seu trabalho em prol da igualdade, que inclui extensões de períodos de bolsa e de avaliação em decorrência de maternidade.

No edital de seleção de Maria, inclusive, havia um “critério especial para pesquisadoras”, para aquelas que declarassem licença-maternidade no período considerado para o julgamento. Ter pós-doutorado ou projeto com bolsa Universal – um outro incentivo do CNPq para pesquisa – não é critério para a avaliação, conforme a própria agência destacou na nota de esclarecimento.

Sede do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em Brasília, no DF. Foto: Carlos Cruz/CNPq

Segundo o CNPq, o “juízo” não foi corroborado pelo comitê assessor responsável pelo julgamento final - que usa os pareceres ad hoc para formular a decisão, mas não necessariamente precisa considerá-los. É assegurado o sigilo da autoria dessas avaliações. No caso de Maria, houve dois pareceres. O outro era favorável à cessão da bolsa a ela.

Para Maria, o julgamento final parece desconsiderar “completamente”, em suas palavras, o parecer favorável, enquanto chega a repercutir trechos – com erros de digitação, inclusive –, da avaliação negativa – não o excerto que traz o posicionamento preconceituoso. O Estadão teve acesso ao conteúdo completo das avaliações.

“Recebi um parecer que o próprio CNPq reconhece que é inapropriado, preconceituoso. Só que ele fala ‘não, esse juízo não foi levado em consideração’, mas o parecer foi porque ele sustenta a reprovação da minha bolsa. Usaram um parecer misógino (misoginia é o ódio direcionado a mulheres) para recusar a minha bolsa. Isso é um absurdo.”

Faltou, segundo ela, 0,2 ponto para que fosse aprovada. “Não é sobre mim, sobre a minha bolsa, é sobre um sistema que precisa mudar.” Historicamente, mulheres são minoria entre os bolsistas de produtividade, conforme mostra o movimento Parent in Science, que reúne cientistas brasileiros que são pais e mães, e tabula e divulga os dados do CNPq.

A reportagem entrou em contato com a agência para mais esclarecimentos, mas não obteve retorno.

Maria, mãe e cientista

Mato-grossense de nascença, Maria já residia em Bauru quando decidiu cursar Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP), onde, mais tarde, também conquistou os títulos de mestre e doutora em Sociologia. Durante o doutorado, realizou um estágio na Université de Paris IV-Sorbonne, na França.

Meses após receber o título de doutora em 2014, foi selecionada em concurso para ser professora da Universidade Federal do ABC. Lá, dá aulas nos cursos de Ciências e Humanidades e de Relações Internacionais, e no Programa de Pós-graduação em Economia Política Mundial, que ajudou a fundar. Ela também coordena o grupo de estudos Neoliberalismo, Democracia e Mudança Estrutural do Espaço Intelectual Brasileiro.

Maria Carlotto é professora da UFABC, pesquisadora e mãe de duas filhas. Foto: Adriana Vichi

A tese de doutorado de Maria recebeu menção honrosa no Prêmio Capes, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, na área de Sociologia. A dissertação de mestrado virou livro – Veredas da mudança ciência brasileira: Discurso, Institucionalização e Práticas no Cenário – e recebeu o Prêmio Marcel Roche para jovens pesquisadores da Associação Latino-América de Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (Esocite).

“Achava, ingenuamente, que tinha muitas chances nesse edital. Não era só eu, porque outras pessoas depois me falaram que, quando saiu a lista, estranharam que o meu nome não estava lá”, conta.

Maria sentia-se confiante pois, embora sua produtividade tenha caído no período das licenças, jamais cessou. “Já tinha coisas em andamento.”

Bolsa de produtividade

As bolsas de produtividade do CNPq, oferecidas desde a década de 1970, são uma importante forma de apoio à pesquisa e de reconhecimento de cientistas que se destacam em sua área. Existem cinco níveis de bolsas, que vão do nível 2 (inicial) até o nível 1A (máximo), passando pelos níveis 1D, 1C e 1B. Além disso, existem as bolsas do nível Sênior. Essas, para além do retorno monetário, como destaca Maria, têm um valor simbólico e podem significar a abertura de portas na carreira de um profissional.

As bolsas são distribuídas por Comitês de Assessoramento (CAs). Para o julgamento final, eles levam em consideração os pareceres ad hoc, o projeto de pesquisa apresentado e, sobretudo, a produtividade desse professor/pesquisador. Isso inclui publicações e orientações de mestrado e doutorado, por exemplo, durante um determinado período de tempo – no caso de Maria, cinco anos.

O edital deste ano apresentou o “critério especial para pesquisadoras”, que, segundo o seu anexo, “teve o objetivo de promover a equidade entre homens e mulheres na ciência e tecnologia”. Na prática, esse critério inclui dois anos a cada licença-maternidade na janela de avaliação da produtividade. Para tanto, é preciso que a cientista informe a data de nascimento ou adoção na proposta ou a data de licença-maternidade no Currículo Lattes. Na avaliação de Maria, por exemplo, como teve duas filhas, o período de análise precisou ser de nove anos.

Gênero

“Faço questão de dizer que não é sobre a minha bolsa. Pode até ser que o julgamento final seja esse mesmo, quando sou comparada aos outros pesquisadores. Não estou questionando isso”, diz Maria. O que a incomoda é ver um parecer preconceituoso dentro do julgamento de sua proposta. E a exposição do seu caso nas redes sociais, explica, é para destacar que não é algo isolado, mas sim um problema sistêmico. “Meu caso ganhou evidência, mas isso já aconteceu com outras mulheres. Isso é uma coisa recorrente (na comunidade científica).”

Especialmente nos últimos anos, a luta de mães pesquisadoras tem sido evidenciada. Essa discussão é cruzada por outro debate que, inclusive, foi tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) neste ano: o trabalho “invisível” das mulheres. Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, elas dedicaram 9,6 horas por semana a mais do que os homens nos afazeres domésticos ou no cuidado de pessoas. Essa sobrecarga, segundo especialistas e estudos, tem impacto na trajetória que enfrentam no mercado de trabalho e, entre outros fatores, resulta num cenário que não nos é incomum, no qual homens são maioria em cargos de liderança e destaque.

Para se ter uma ideia, as mulheres representam a maioria (54,2%) das matrículas em cursos stricto sensu (mestrado e doutorado), de acordo com a base de dados da Capes relacionados ao ano de 2021. A mesma base mostra que o cenário se inverte quando se observam os professores desses cursos, em que os homens prevalecem (57%).

Segundo o Parente in Science, a participação de mulheres em bolsas de produtividade, a que Maria concorria, quase não teve alteração expressiva em 20 anos. Foi de 33,4% em 2004, e de 35,6% em 2023.

De acordo com o movimento, as mulheres submetem menos pedidos de bolsa produtividade do que homens, mas isso, por si só, não explica o cenário desigual. Ao analisar a taxa de aprovação de homens e mulheres, que considera os pedidos deferidos dentre aqueles submetidos, elas (41% em 2021) apresentam menor taxa de sucesso do que os eles (45,7%).

Outro ponto que chama a atenção é que a sub-representação das mulheres no quadro geral das bolsas diminui com o aumento dos níveis das bolsas, de acordo com o Parent in Science. É o que os especialistas chamam de “efeito tesoura”.

É à luz de dados como esses que ativistas e especialistas destacam a necessidade de um olhar sensível para o tema e de incentivos para mães pesquisadoras. O critério especial para pesquisadoras, que aparece no edital para a bolsa de produtividade, é louvável e está no caminho certo, avaliam.

Porém, Maria acha que é preciso avançar ainda mais. Ela conta, por exemplo, que durante todo parecer é tratada como “o proponente”, mesmo sendo possível deduzir que ela se identifica como mulher. “Existe uma tensão que não está resolvida no CNPq, que é consideramos as questões de gênero, mas a gente finge que existe uma neutralidade que na verdade não existe.”

Por outro lado, ela questiona o letramento das pessoas e levanta a necessidade de um procedimento de inviabilização de pareceres. “Tem coisas que são básicas.” Na nota de esclarecimento, o CNPq afirma que “instruirá seu corpo de pareceristas para maior atenção na emissão de seus pareceres”.

Vale ressaltar que a chegada do parecer e o período de recurso coincidem com o período de férias escolares. Não é a primeira vez que isso acontece, de acordo com Maria. “As crianças a gente deixa aonde?”

Agora, a luta de Maria é também para que essas questões não sejam lidas de forma individual em prol de políticas que efetivamente promovam a igualdade. “Muitas mulheres são destruídas nesse processo, e o que nos fortalece é tratar isso coletivamente, politicamente, como uma demanda de todas nós mulheres.”

“O proponente não teve projetos de pesquisa financiados pelo CNPq, como universal, nem projetos individuais Fapesp após seu ingresso na UFABC. Não realizou pós-doc no exterior. Provavelmente suas gestações atrapalharam essas iniciativas, o que poderá ser compensado no futuro”, diz um dos pareceres ad hoc emitidos em resposta ao pedido de bolsa produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico feito pela professora e pesquisadora Maria Carlotto, de 40 anos. Ela atua na Universidade Federal do ABC, na Grande São Paulo.

Se antes estava decepcionada por não ter sido aprovada, quando se ateve aos detalhes das justificativas para tanto, foi tomada pelo choque. ”Eu não acredito que eles deixaram isso passar”, pensou ela, que tem duas filhas – uma de 1 ano e outra de 2. Maria, que já escrevia um recurso ao resultado final preliminar, com base em outras inconsistências que lhe incomodaram, parou tudo. “Falei: ‘não, isso aqui não pode passar’”, afirmou ao Estadão.

Na terça-feira, 26, Maria publicou no X, antigo Twitter, um desabafo. “Vontade de chorar”, escreveu. A postagem recebeu mais de 600 compartilhamentos e 3 mil likes, e gerou um posicionamento do CNPq, que classificou o trecho da avaliação como “preconceituoso” e disse que tomará as medidas cabíveis. Na nota, a agência de fomento também citou seu trabalho em prol da igualdade, que inclui extensões de períodos de bolsa e de avaliação em decorrência de maternidade.

No edital de seleção de Maria, inclusive, havia um “critério especial para pesquisadoras”, para aquelas que declarassem licença-maternidade no período considerado para o julgamento. Ter pós-doutorado ou projeto com bolsa Universal – um outro incentivo do CNPq para pesquisa – não é critério para a avaliação, conforme a própria agência destacou na nota de esclarecimento.

Sede do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em Brasília, no DF. Foto: Carlos Cruz/CNPq

Segundo o CNPq, o “juízo” não foi corroborado pelo comitê assessor responsável pelo julgamento final - que usa os pareceres ad hoc para formular a decisão, mas não necessariamente precisa considerá-los. É assegurado o sigilo da autoria dessas avaliações. No caso de Maria, houve dois pareceres. O outro era favorável à cessão da bolsa a ela.

Para Maria, o julgamento final parece desconsiderar “completamente”, em suas palavras, o parecer favorável, enquanto chega a repercutir trechos – com erros de digitação, inclusive –, da avaliação negativa – não o excerto que traz o posicionamento preconceituoso. O Estadão teve acesso ao conteúdo completo das avaliações.

“Recebi um parecer que o próprio CNPq reconhece que é inapropriado, preconceituoso. Só que ele fala ‘não, esse juízo não foi levado em consideração’, mas o parecer foi porque ele sustenta a reprovação da minha bolsa. Usaram um parecer misógino (misoginia é o ódio direcionado a mulheres) para recusar a minha bolsa. Isso é um absurdo.”

Faltou, segundo ela, 0,2 ponto para que fosse aprovada. “Não é sobre mim, sobre a minha bolsa, é sobre um sistema que precisa mudar.” Historicamente, mulheres são minoria entre os bolsistas de produtividade, conforme mostra o movimento Parent in Science, que reúne cientistas brasileiros que são pais e mães, e tabula e divulga os dados do CNPq.

A reportagem entrou em contato com a agência para mais esclarecimentos, mas não obteve retorno.

Maria, mãe e cientista

Mato-grossense de nascença, Maria já residia em Bauru quando decidiu cursar Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP), onde, mais tarde, também conquistou os títulos de mestre e doutora em Sociologia. Durante o doutorado, realizou um estágio na Université de Paris IV-Sorbonne, na França.

Meses após receber o título de doutora em 2014, foi selecionada em concurso para ser professora da Universidade Federal do ABC. Lá, dá aulas nos cursos de Ciências e Humanidades e de Relações Internacionais, e no Programa de Pós-graduação em Economia Política Mundial, que ajudou a fundar. Ela também coordena o grupo de estudos Neoliberalismo, Democracia e Mudança Estrutural do Espaço Intelectual Brasileiro.

Maria Carlotto é professora da UFABC, pesquisadora e mãe de duas filhas. Foto: Adriana Vichi

A tese de doutorado de Maria recebeu menção honrosa no Prêmio Capes, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, na área de Sociologia. A dissertação de mestrado virou livro – Veredas da mudança ciência brasileira: Discurso, Institucionalização e Práticas no Cenário – e recebeu o Prêmio Marcel Roche para jovens pesquisadores da Associação Latino-América de Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (Esocite).

“Achava, ingenuamente, que tinha muitas chances nesse edital. Não era só eu, porque outras pessoas depois me falaram que, quando saiu a lista, estranharam que o meu nome não estava lá”, conta.

Maria sentia-se confiante pois, embora sua produtividade tenha caído no período das licenças, jamais cessou. “Já tinha coisas em andamento.”

Bolsa de produtividade

As bolsas de produtividade do CNPq, oferecidas desde a década de 1970, são uma importante forma de apoio à pesquisa e de reconhecimento de cientistas que se destacam em sua área. Existem cinco níveis de bolsas, que vão do nível 2 (inicial) até o nível 1A (máximo), passando pelos níveis 1D, 1C e 1B. Além disso, existem as bolsas do nível Sênior. Essas, para além do retorno monetário, como destaca Maria, têm um valor simbólico e podem significar a abertura de portas na carreira de um profissional.

As bolsas são distribuídas por Comitês de Assessoramento (CAs). Para o julgamento final, eles levam em consideração os pareceres ad hoc, o projeto de pesquisa apresentado e, sobretudo, a produtividade desse professor/pesquisador. Isso inclui publicações e orientações de mestrado e doutorado, por exemplo, durante um determinado período de tempo – no caso de Maria, cinco anos.

O edital deste ano apresentou o “critério especial para pesquisadoras”, que, segundo o seu anexo, “teve o objetivo de promover a equidade entre homens e mulheres na ciência e tecnologia”. Na prática, esse critério inclui dois anos a cada licença-maternidade na janela de avaliação da produtividade. Para tanto, é preciso que a cientista informe a data de nascimento ou adoção na proposta ou a data de licença-maternidade no Currículo Lattes. Na avaliação de Maria, por exemplo, como teve duas filhas, o período de análise precisou ser de nove anos.

Gênero

“Faço questão de dizer que não é sobre a minha bolsa. Pode até ser que o julgamento final seja esse mesmo, quando sou comparada aos outros pesquisadores. Não estou questionando isso”, diz Maria. O que a incomoda é ver um parecer preconceituoso dentro do julgamento de sua proposta. E a exposição do seu caso nas redes sociais, explica, é para destacar que não é algo isolado, mas sim um problema sistêmico. “Meu caso ganhou evidência, mas isso já aconteceu com outras mulheres. Isso é uma coisa recorrente (na comunidade científica).”

Especialmente nos últimos anos, a luta de mães pesquisadoras tem sido evidenciada. Essa discussão é cruzada por outro debate que, inclusive, foi tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) neste ano: o trabalho “invisível” das mulheres. Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, elas dedicaram 9,6 horas por semana a mais do que os homens nos afazeres domésticos ou no cuidado de pessoas. Essa sobrecarga, segundo especialistas e estudos, tem impacto na trajetória que enfrentam no mercado de trabalho e, entre outros fatores, resulta num cenário que não nos é incomum, no qual homens são maioria em cargos de liderança e destaque.

Para se ter uma ideia, as mulheres representam a maioria (54,2%) das matrículas em cursos stricto sensu (mestrado e doutorado), de acordo com a base de dados da Capes relacionados ao ano de 2021. A mesma base mostra que o cenário se inverte quando se observam os professores desses cursos, em que os homens prevalecem (57%).

Segundo o Parente in Science, a participação de mulheres em bolsas de produtividade, a que Maria concorria, quase não teve alteração expressiva em 20 anos. Foi de 33,4% em 2004, e de 35,6% em 2023.

De acordo com o movimento, as mulheres submetem menos pedidos de bolsa produtividade do que homens, mas isso, por si só, não explica o cenário desigual. Ao analisar a taxa de aprovação de homens e mulheres, que considera os pedidos deferidos dentre aqueles submetidos, elas (41% em 2021) apresentam menor taxa de sucesso do que os eles (45,7%).

Outro ponto que chama a atenção é que a sub-representação das mulheres no quadro geral das bolsas diminui com o aumento dos níveis das bolsas, de acordo com o Parent in Science. É o que os especialistas chamam de “efeito tesoura”.

É à luz de dados como esses que ativistas e especialistas destacam a necessidade de um olhar sensível para o tema e de incentivos para mães pesquisadoras. O critério especial para pesquisadoras, que aparece no edital para a bolsa de produtividade, é louvável e está no caminho certo, avaliam.

Porém, Maria acha que é preciso avançar ainda mais. Ela conta, por exemplo, que durante todo parecer é tratada como “o proponente”, mesmo sendo possível deduzir que ela se identifica como mulher. “Existe uma tensão que não está resolvida no CNPq, que é consideramos as questões de gênero, mas a gente finge que existe uma neutralidade que na verdade não existe.”

Por outro lado, ela questiona o letramento das pessoas e levanta a necessidade de um procedimento de inviabilização de pareceres. “Tem coisas que são básicas.” Na nota de esclarecimento, o CNPq afirma que “instruirá seu corpo de pareceristas para maior atenção na emissão de seus pareceres”.

Vale ressaltar que a chegada do parecer e o período de recurso coincidem com o período de férias escolares. Não é a primeira vez que isso acontece, de acordo com Maria. “As crianças a gente deixa aonde?”

Agora, a luta de Maria é também para que essas questões não sejam lidas de forma individual em prol de políticas que efetivamente promovam a igualdade. “Muitas mulheres são destruídas nesse processo, e o que nos fortalece é tratar isso coletivamente, politicamente, como uma demanda de todas nós mulheres.”

“O proponente não teve projetos de pesquisa financiados pelo CNPq, como universal, nem projetos individuais Fapesp após seu ingresso na UFABC. Não realizou pós-doc no exterior. Provavelmente suas gestações atrapalharam essas iniciativas, o que poderá ser compensado no futuro”, diz um dos pareceres ad hoc emitidos em resposta ao pedido de bolsa produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico feito pela professora e pesquisadora Maria Carlotto, de 40 anos. Ela atua na Universidade Federal do ABC, na Grande São Paulo.

Se antes estava decepcionada por não ter sido aprovada, quando se ateve aos detalhes das justificativas para tanto, foi tomada pelo choque. ”Eu não acredito que eles deixaram isso passar”, pensou ela, que tem duas filhas – uma de 1 ano e outra de 2. Maria, que já escrevia um recurso ao resultado final preliminar, com base em outras inconsistências que lhe incomodaram, parou tudo. “Falei: ‘não, isso aqui não pode passar’”, afirmou ao Estadão.

Na terça-feira, 26, Maria publicou no X, antigo Twitter, um desabafo. “Vontade de chorar”, escreveu. A postagem recebeu mais de 600 compartilhamentos e 3 mil likes, e gerou um posicionamento do CNPq, que classificou o trecho da avaliação como “preconceituoso” e disse que tomará as medidas cabíveis. Na nota, a agência de fomento também citou seu trabalho em prol da igualdade, que inclui extensões de períodos de bolsa e de avaliação em decorrência de maternidade.

No edital de seleção de Maria, inclusive, havia um “critério especial para pesquisadoras”, para aquelas que declarassem licença-maternidade no período considerado para o julgamento. Ter pós-doutorado ou projeto com bolsa Universal – um outro incentivo do CNPq para pesquisa – não é critério para a avaliação, conforme a própria agência destacou na nota de esclarecimento.

Sede do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em Brasília, no DF. Foto: Carlos Cruz/CNPq

Segundo o CNPq, o “juízo” não foi corroborado pelo comitê assessor responsável pelo julgamento final - que usa os pareceres ad hoc para formular a decisão, mas não necessariamente precisa considerá-los. É assegurado o sigilo da autoria dessas avaliações. No caso de Maria, houve dois pareceres. O outro era favorável à cessão da bolsa a ela.

Para Maria, o julgamento final parece desconsiderar “completamente”, em suas palavras, o parecer favorável, enquanto chega a repercutir trechos – com erros de digitação, inclusive –, da avaliação negativa – não o excerto que traz o posicionamento preconceituoso. O Estadão teve acesso ao conteúdo completo das avaliações.

“Recebi um parecer que o próprio CNPq reconhece que é inapropriado, preconceituoso. Só que ele fala ‘não, esse juízo não foi levado em consideração’, mas o parecer foi porque ele sustenta a reprovação da minha bolsa. Usaram um parecer misógino (misoginia é o ódio direcionado a mulheres) para recusar a minha bolsa. Isso é um absurdo.”

Faltou, segundo ela, 0,2 ponto para que fosse aprovada. “Não é sobre mim, sobre a minha bolsa, é sobre um sistema que precisa mudar.” Historicamente, mulheres são minoria entre os bolsistas de produtividade, conforme mostra o movimento Parent in Science, que reúne cientistas brasileiros que são pais e mães, e tabula e divulga os dados do CNPq.

A reportagem entrou em contato com a agência para mais esclarecimentos, mas não obteve retorno.

Maria, mãe e cientista

Mato-grossense de nascença, Maria já residia em Bauru quando decidiu cursar Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP), onde, mais tarde, também conquistou os títulos de mestre e doutora em Sociologia. Durante o doutorado, realizou um estágio na Université de Paris IV-Sorbonne, na França.

Meses após receber o título de doutora em 2014, foi selecionada em concurso para ser professora da Universidade Federal do ABC. Lá, dá aulas nos cursos de Ciências e Humanidades e de Relações Internacionais, e no Programa de Pós-graduação em Economia Política Mundial, que ajudou a fundar. Ela também coordena o grupo de estudos Neoliberalismo, Democracia e Mudança Estrutural do Espaço Intelectual Brasileiro.

Maria Carlotto é professora da UFABC, pesquisadora e mãe de duas filhas. Foto: Adriana Vichi

A tese de doutorado de Maria recebeu menção honrosa no Prêmio Capes, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, na área de Sociologia. A dissertação de mestrado virou livro – Veredas da mudança ciência brasileira: Discurso, Institucionalização e Práticas no Cenário – e recebeu o Prêmio Marcel Roche para jovens pesquisadores da Associação Latino-América de Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (Esocite).

“Achava, ingenuamente, que tinha muitas chances nesse edital. Não era só eu, porque outras pessoas depois me falaram que, quando saiu a lista, estranharam que o meu nome não estava lá”, conta.

Maria sentia-se confiante pois, embora sua produtividade tenha caído no período das licenças, jamais cessou. “Já tinha coisas em andamento.”

Bolsa de produtividade

As bolsas de produtividade do CNPq, oferecidas desde a década de 1970, são uma importante forma de apoio à pesquisa e de reconhecimento de cientistas que se destacam em sua área. Existem cinco níveis de bolsas, que vão do nível 2 (inicial) até o nível 1A (máximo), passando pelos níveis 1D, 1C e 1B. Além disso, existem as bolsas do nível Sênior. Essas, para além do retorno monetário, como destaca Maria, têm um valor simbólico e podem significar a abertura de portas na carreira de um profissional.

As bolsas são distribuídas por Comitês de Assessoramento (CAs). Para o julgamento final, eles levam em consideração os pareceres ad hoc, o projeto de pesquisa apresentado e, sobretudo, a produtividade desse professor/pesquisador. Isso inclui publicações e orientações de mestrado e doutorado, por exemplo, durante um determinado período de tempo – no caso de Maria, cinco anos.

O edital deste ano apresentou o “critério especial para pesquisadoras”, que, segundo o seu anexo, “teve o objetivo de promover a equidade entre homens e mulheres na ciência e tecnologia”. Na prática, esse critério inclui dois anos a cada licença-maternidade na janela de avaliação da produtividade. Para tanto, é preciso que a cientista informe a data de nascimento ou adoção na proposta ou a data de licença-maternidade no Currículo Lattes. Na avaliação de Maria, por exemplo, como teve duas filhas, o período de análise precisou ser de nove anos.

Gênero

“Faço questão de dizer que não é sobre a minha bolsa. Pode até ser que o julgamento final seja esse mesmo, quando sou comparada aos outros pesquisadores. Não estou questionando isso”, diz Maria. O que a incomoda é ver um parecer preconceituoso dentro do julgamento de sua proposta. E a exposição do seu caso nas redes sociais, explica, é para destacar que não é algo isolado, mas sim um problema sistêmico. “Meu caso ganhou evidência, mas isso já aconteceu com outras mulheres. Isso é uma coisa recorrente (na comunidade científica).”

Especialmente nos últimos anos, a luta de mães pesquisadoras tem sido evidenciada. Essa discussão é cruzada por outro debate que, inclusive, foi tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) neste ano: o trabalho “invisível” das mulheres. Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, elas dedicaram 9,6 horas por semana a mais do que os homens nos afazeres domésticos ou no cuidado de pessoas. Essa sobrecarga, segundo especialistas e estudos, tem impacto na trajetória que enfrentam no mercado de trabalho e, entre outros fatores, resulta num cenário que não nos é incomum, no qual homens são maioria em cargos de liderança e destaque.

Para se ter uma ideia, as mulheres representam a maioria (54,2%) das matrículas em cursos stricto sensu (mestrado e doutorado), de acordo com a base de dados da Capes relacionados ao ano de 2021. A mesma base mostra que o cenário se inverte quando se observam os professores desses cursos, em que os homens prevalecem (57%).

Segundo o Parente in Science, a participação de mulheres em bolsas de produtividade, a que Maria concorria, quase não teve alteração expressiva em 20 anos. Foi de 33,4% em 2004, e de 35,6% em 2023.

De acordo com o movimento, as mulheres submetem menos pedidos de bolsa produtividade do que homens, mas isso, por si só, não explica o cenário desigual. Ao analisar a taxa de aprovação de homens e mulheres, que considera os pedidos deferidos dentre aqueles submetidos, elas (41% em 2021) apresentam menor taxa de sucesso do que os eles (45,7%).

Outro ponto que chama a atenção é que a sub-representação das mulheres no quadro geral das bolsas diminui com o aumento dos níveis das bolsas, de acordo com o Parent in Science. É o que os especialistas chamam de “efeito tesoura”.

É à luz de dados como esses que ativistas e especialistas destacam a necessidade de um olhar sensível para o tema e de incentivos para mães pesquisadoras. O critério especial para pesquisadoras, que aparece no edital para a bolsa de produtividade, é louvável e está no caminho certo, avaliam.

Porém, Maria acha que é preciso avançar ainda mais. Ela conta, por exemplo, que durante todo parecer é tratada como “o proponente”, mesmo sendo possível deduzir que ela se identifica como mulher. “Existe uma tensão que não está resolvida no CNPq, que é consideramos as questões de gênero, mas a gente finge que existe uma neutralidade que na verdade não existe.”

Por outro lado, ela questiona o letramento das pessoas e levanta a necessidade de um procedimento de inviabilização de pareceres. “Tem coisas que são básicas.” Na nota de esclarecimento, o CNPq afirma que “instruirá seu corpo de pareceristas para maior atenção na emissão de seus pareceres”.

Vale ressaltar que a chegada do parecer e o período de recurso coincidem com o período de férias escolares. Não é a primeira vez que isso acontece, de acordo com Maria. “As crianças a gente deixa aonde?”

Agora, a luta de Maria é também para que essas questões não sejam lidas de forma individual em prol de políticas que efetivamente promovam a igualdade. “Muitas mulheres são destruídas nesse processo, e o que nos fortalece é tratar isso coletivamente, politicamente, como uma demanda de todas nós mulheres.”

“O proponente não teve projetos de pesquisa financiados pelo CNPq, como universal, nem projetos individuais Fapesp após seu ingresso na UFABC. Não realizou pós-doc no exterior. Provavelmente suas gestações atrapalharam essas iniciativas, o que poderá ser compensado no futuro”, diz um dos pareceres ad hoc emitidos em resposta ao pedido de bolsa produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico feito pela professora e pesquisadora Maria Carlotto, de 40 anos. Ela atua na Universidade Federal do ABC, na Grande São Paulo.

Se antes estava decepcionada por não ter sido aprovada, quando se ateve aos detalhes das justificativas para tanto, foi tomada pelo choque. ”Eu não acredito que eles deixaram isso passar”, pensou ela, que tem duas filhas – uma de 1 ano e outra de 2. Maria, que já escrevia um recurso ao resultado final preliminar, com base em outras inconsistências que lhe incomodaram, parou tudo. “Falei: ‘não, isso aqui não pode passar’”, afirmou ao Estadão.

Na terça-feira, 26, Maria publicou no X, antigo Twitter, um desabafo. “Vontade de chorar”, escreveu. A postagem recebeu mais de 600 compartilhamentos e 3 mil likes, e gerou um posicionamento do CNPq, que classificou o trecho da avaliação como “preconceituoso” e disse que tomará as medidas cabíveis. Na nota, a agência de fomento também citou seu trabalho em prol da igualdade, que inclui extensões de períodos de bolsa e de avaliação em decorrência de maternidade.

No edital de seleção de Maria, inclusive, havia um “critério especial para pesquisadoras”, para aquelas que declarassem licença-maternidade no período considerado para o julgamento. Ter pós-doutorado ou projeto com bolsa Universal – um outro incentivo do CNPq para pesquisa – não é critério para a avaliação, conforme a própria agência destacou na nota de esclarecimento.

Sede do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em Brasília, no DF. Foto: Carlos Cruz/CNPq

Segundo o CNPq, o “juízo” não foi corroborado pelo comitê assessor responsável pelo julgamento final - que usa os pareceres ad hoc para formular a decisão, mas não necessariamente precisa considerá-los. É assegurado o sigilo da autoria dessas avaliações. No caso de Maria, houve dois pareceres. O outro era favorável à cessão da bolsa a ela.

Para Maria, o julgamento final parece desconsiderar “completamente”, em suas palavras, o parecer favorável, enquanto chega a repercutir trechos – com erros de digitação, inclusive –, da avaliação negativa – não o excerto que traz o posicionamento preconceituoso. O Estadão teve acesso ao conteúdo completo das avaliações.

“Recebi um parecer que o próprio CNPq reconhece que é inapropriado, preconceituoso. Só que ele fala ‘não, esse juízo não foi levado em consideração’, mas o parecer foi porque ele sustenta a reprovação da minha bolsa. Usaram um parecer misógino (misoginia é o ódio direcionado a mulheres) para recusar a minha bolsa. Isso é um absurdo.”

Faltou, segundo ela, 0,2 ponto para que fosse aprovada. “Não é sobre mim, sobre a minha bolsa, é sobre um sistema que precisa mudar.” Historicamente, mulheres são minoria entre os bolsistas de produtividade, conforme mostra o movimento Parent in Science, que reúne cientistas brasileiros que são pais e mães, e tabula e divulga os dados do CNPq.

A reportagem entrou em contato com a agência para mais esclarecimentos, mas não obteve retorno.

Maria, mãe e cientista

Mato-grossense de nascença, Maria já residia em Bauru quando decidiu cursar Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP), onde, mais tarde, também conquistou os títulos de mestre e doutora em Sociologia. Durante o doutorado, realizou um estágio na Université de Paris IV-Sorbonne, na França.

Meses após receber o título de doutora em 2014, foi selecionada em concurso para ser professora da Universidade Federal do ABC. Lá, dá aulas nos cursos de Ciências e Humanidades e de Relações Internacionais, e no Programa de Pós-graduação em Economia Política Mundial, que ajudou a fundar. Ela também coordena o grupo de estudos Neoliberalismo, Democracia e Mudança Estrutural do Espaço Intelectual Brasileiro.

Maria Carlotto é professora da UFABC, pesquisadora e mãe de duas filhas. Foto: Adriana Vichi

A tese de doutorado de Maria recebeu menção honrosa no Prêmio Capes, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, na área de Sociologia. A dissertação de mestrado virou livro – Veredas da mudança ciência brasileira: Discurso, Institucionalização e Práticas no Cenário – e recebeu o Prêmio Marcel Roche para jovens pesquisadores da Associação Latino-América de Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (Esocite).

“Achava, ingenuamente, que tinha muitas chances nesse edital. Não era só eu, porque outras pessoas depois me falaram que, quando saiu a lista, estranharam que o meu nome não estava lá”, conta.

Maria sentia-se confiante pois, embora sua produtividade tenha caído no período das licenças, jamais cessou. “Já tinha coisas em andamento.”

Bolsa de produtividade

As bolsas de produtividade do CNPq, oferecidas desde a década de 1970, são uma importante forma de apoio à pesquisa e de reconhecimento de cientistas que se destacam em sua área. Existem cinco níveis de bolsas, que vão do nível 2 (inicial) até o nível 1A (máximo), passando pelos níveis 1D, 1C e 1B. Além disso, existem as bolsas do nível Sênior. Essas, para além do retorno monetário, como destaca Maria, têm um valor simbólico e podem significar a abertura de portas na carreira de um profissional.

As bolsas são distribuídas por Comitês de Assessoramento (CAs). Para o julgamento final, eles levam em consideração os pareceres ad hoc, o projeto de pesquisa apresentado e, sobretudo, a produtividade desse professor/pesquisador. Isso inclui publicações e orientações de mestrado e doutorado, por exemplo, durante um determinado período de tempo – no caso de Maria, cinco anos.

O edital deste ano apresentou o “critério especial para pesquisadoras”, que, segundo o seu anexo, “teve o objetivo de promover a equidade entre homens e mulheres na ciência e tecnologia”. Na prática, esse critério inclui dois anos a cada licença-maternidade na janela de avaliação da produtividade. Para tanto, é preciso que a cientista informe a data de nascimento ou adoção na proposta ou a data de licença-maternidade no Currículo Lattes. Na avaliação de Maria, por exemplo, como teve duas filhas, o período de análise precisou ser de nove anos.

Gênero

“Faço questão de dizer que não é sobre a minha bolsa. Pode até ser que o julgamento final seja esse mesmo, quando sou comparada aos outros pesquisadores. Não estou questionando isso”, diz Maria. O que a incomoda é ver um parecer preconceituoso dentro do julgamento de sua proposta. E a exposição do seu caso nas redes sociais, explica, é para destacar que não é algo isolado, mas sim um problema sistêmico. “Meu caso ganhou evidência, mas isso já aconteceu com outras mulheres. Isso é uma coisa recorrente (na comunidade científica).”

Especialmente nos últimos anos, a luta de mães pesquisadoras tem sido evidenciada. Essa discussão é cruzada por outro debate que, inclusive, foi tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) neste ano: o trabalho “invisível” das mulheres. Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, elas dedicaram 9,6 horas por semana a mais do que os homens nos afazeres domésticos ou no cuidado de pessoas. Essa sobrecarga, segundo especialistas e estudos, tem impacto na trajetória que enfrentam no mercado de trabalho e, entre outros fatores, resulta num cenário que não nos é incomum, no qual homens são maioria em cargos de liderança e destaque.

Para se ter uma ideia, as mulheres representam a maioria (54,2%) das matrículas em cursos stricto sensu (mestrado e doutorado), de acordo com a base de dados da Capes relacionados ao ano de 2021. A mesma base mostra que o cenário se inverte quando se observam os professores desses cursos, em que os homens prevalecem (57%).

Segundo o Parente in Science, a participação de mulheres em bolsas de produtividade, a que Maria concorria, quase não teve alteração expressiva em 20 anos. Foi de 33,4% em 2004, e de 35,6% em 2023.

De acordo com o movimento, as mulheres submetem menos pedidos de bolsa produtividade do que homens, mas isso, por si só, não explica o cenário desigual. Ao analisar a taxa de aprovação de homens e mulheres, que considera os pedidos deferidos dentre aqueles submetidos, elas (41% em 2021) apresentam menor taxa de sucesso do que os eles (45,7%).

Outro ponto que chama a atenção é que a sub-representação das mulheres no quadro geral das bolsas diminui com o aumento dos níveis das bolsas, de acordo com o Parent in Science. É o que os especialistas chamam de “efeito tesoura”.

É à luz de dados como esses que ativistas e especialistas destacam a necessidade de um olhar sensível para o tema e de incentivos para mães pesquisadoras. O critério especial para pesquisadoras, que aparece no edital para a bolsa de produtividade, é louvável e está no caminho certo, avaliam.

Porém, Maria acha que é preciso avançar ainda mais. Ela conta, por exemplo, que durante todo parecer é tratada como “o proponente”, mesmo sendo possível deduzir que ela se identifica como mulher. “Existe uma tensão que não está resolvida no CNPq, que é consideramos as questões de gênero, mas a gente finge que existe uma neutralidade que na verdade não existe.”

Por outro lado, ela questiona o letramento das pessoas e levanta a necessidade de um procedimento de inviabilização de pareceres. “Tem coisas que são básicas.” Na nota de esclarecimento, o CNPq afirma que “instruirá seu corpo de pareceristas para maior atenção na emissão de seus pareceres”.

Vale ressaltar que a chegada do parecer e o período de recurso coincidem com o período de férias escolares. Não é a primeira vez que isso acontece, de acordo com Maria. “As crianças a gente deixa aonde?”

Agora, a luta de Maria é também para que essas questões não sejam lidas de forma individual em prol de políticas que efetivamente promovam a igualdade. “Muitas mulheres são destruídas nesse processo, e o que nos fortalece é tratar isso coletivamente, politicamente, como uma demanda de todas nós mulheres.”

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