Cobram até professor por nota: por que pais se envolvem cada vez mais na vida do filho na faculdade?


Universidades já fazem reuniões com as famílias dos calouros e têm canais diretos de comunicação. Especialistas alertam para prejuízos no desenvolvimento da autonomia de uma geração considerada menos madura

Por Renata Cafardo
Atualização:

Um pai entra na sala de professores de uma faculdade particular e exige que o docente reveja a nota dada para a filha em um trabalho. Em outra instituição, a mãe quer que o coordenador do curso faça com que o filho pare de faltar às aulas para ver a namorada. E outros tantos buscam as universidades para saber do desempenho dos filhos, algo impensado há alguns anos. São histórias reais e cada vez mais comuns no ensino superior, em especial privado, em que os pais pagam altas mensalidades.

Mas especialistas dizem que essa interferência não ocorre só pela questão financeira. Acreditam que o comportamento pode refletir uma educação superprotetora desde a infância, que leva a jovens menos autônomos e menos resilientes. Há ainda, porém, quem considere a participação das famílias compreensível, já que se trata de um momento de escolha de carreira - desde que não ultrapasse certos limites.

A geração atual de universitários também é vista como menos madura, insegura, com o desenvolvimento prejudicado pelo impacto das tecnologias nas relações pessoais e por ter vivido a adolescência na pandemia.

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As universidades passaram a perceber a demanda e já oferecem reuniões de pais e canais de comunicação diretos com as famílias. No Insper, elas são recebidas tanto no momento do vestibular quanto no primeiro ano. Há reuniões em fevereiro e agosto entre os pais dos calouros e a direção. “É uma das estratégias para lidar com a situação, passar segurança da formação que pretendemos dar, mostrar a estrutura, mas estabelecer limites e dizer que o aluno tem autonomia para resolver os problemas dele”, diz o presidente do Insper, Guilherme Martins.

A instituição tem também um canal para que os pais possam entrar em contato em caso de problemas de saúde física ou emocional dos filhos e para tratar de questões financeiras. Mas sobre desempenho e nota, Martins diz que o Insper pede que os pais conversem com os estudantes. “Costumo dizer para as famílias: se tudo der certo, nos vemos na formatura”, conta. “É preciso entender que a universidade é um ambiente de experimentação e o erro gera aprendizados importantes para que cometa acertos na vida profissional. A superproteção dos pais mina esse erro.”

Costumo dizer para as famílias: se tudo der certo, nos vemos na formatura.

Guilherme Martins, presidente do Insper

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A empresária Jussara e os filhos: canal direto com a faculdade foi crucial quando a jovem ficou doente durante o curso Foto: Ricardo Lima/Estadão

Universidades tentam blindar contato de pais com professores

As universidades também são unânimes em dizer que blindam os professores de contatos com os pais. “Se o professor for procurado, ele deve encaminhar para o coordenador, que está treinado para atender a família. Conteúdo de disciplina não deve ser discutido com os pais”, diz o diretor acadêmico da Facamp, Rodrigo Sabbatini. “Professor não, a função dele é lidar com o aluno como estudante e como parte do processo de aprendizagem. Quando você coloca o pai no meio, ele é cliente, e professor não tem que lidar com cliente”, completa Martins.

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Mesmo assim, alguns conseguem os e-mails ou telefones dos professores com os filhos e tentam conversas diretas. O Estadão ouviu histórias de docentes que lidaram com pais que pediram para adiar provas por causa de compromissos familiares, que queriam saber do desempenho geral do filho e até os que pediram reconsideração de notas ou da reprovação.

“Coloquei o telefone da minha mãe em um papel e disse para passar para a mãe do aluno que queria falar comigo. Porque mãe com mãe se entende. Eu só falo com o aluno”, brinca o professor de uma faculdade privada Adrian Cernev, sobre a insistência de uma mãe que ligou no seu departamento. “São pais que querem atuar diretamente em vez de instruir os filhos sobre como buscar alternativas, postergando a adolescência. A universidades têm vários caminhos formais para o aluno resolver problemas.”

Ex-coordenador de cursos de Comunicação, o escritor Franklin Valverde conta que um casal certa vez marcou uma reunião para questioná-lo por que o filho havia sido reprovado. O aluno vinha faltando às aulas para sair com amigos e a namorada. “A mãe então me falou: vocês o aceitaram, agora vocês que se virem, têm que cuidar”, conta o professor, que só instruiu os pais a conversarem com o jovem. “Quando eu estudei, jamais um pai iria reclamar na faculdade do filho, era vergonhoso.”

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A superintendente acadêmica do Centro Universitário Belas Artes, Josiane Tonelotto, diz que já foi procurada até por pais de alunos da pós-graduação. A instituição também faz cafés semestrais com as famílias dos calouros e até fornece um login para os pais na plataforma virtual da faculdade. “Nos encontros aparece uma insegurança em relação à formação, estágio, dúvidas sobre profissões não tão tradicionais e também sobre o estado psicológico dos alunos”, diz Josiane.

Coloquei o telefone da minha mãe em um papel e disse para passar para a mãe do aluno que queria falar comigo. Porque mãe com mãe se entende. Eu só falo com o aluno

Adrian Cernev, professor

Ela conta que, no entanto, às vezes os pais “confundem responsável financeiro com responsável pelas notas”. “Aí a gente diz que o filho tem 18 anos e que não podemos informar sobre o desempenho dele. Vejo uma geração muito mais suscetível a inseguranças, com uma incapacidade de resolver os problemas, que suporta menos as diversidades, uma fragilidade que piorou pela pandemia.”

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Mais tranquilidade

O farmacêutico bioquímico Luís Henrique Garcia Muniz, de 58 anos, diz que ficou “encantado” com a recepção que recebeu na Belas Artes assim que a filha ingressou no curso de Moda este ano. “Fizeram um café para tirar todas as dúvidas, falaram do projeto pedagógico, indicaram o canal para nos comunicar com a faculdade. Eu estava apreensivo da minha filha estudar sozinha em São Paulo e fiquei muito mais tranquilo”, conta ele, que mora em Maringá, no Paraná.

A filha Ana Luísa, de 18 anos, conta que passa as notas e os boletos para o pai. “Ao mesmo tempo que eu quero mais independência porque estou começando agora uma vida adulta, fico feliz de eles (os pais) estarem sempre me apoiando e dando suporte tanto financeiro quanto emocional”, afirma ela. “Não conseguiria sem a ajuda deles, principalmente morando fora.”

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Na Facamp, que recebe também muitos alunos que não são da cidade e tem cursos em tempo integral, os pais são procurados quando o desempenho do filho está muito aquém do esperado para “não serem pegos de surpresa”, explica Sabbatini. “Percebemos que havia uma mudança na sociedade, de alunos cada vez mais imaturos, os jovens de 18 anos são os novos adolescentes, é preciso enfrentar isso como um problema pedagógico.”

“Desde o início me chamou muito a atenção como fomos recebidos, levando os pais para dentro da instituição, dizendo que estariam sempre próximos”, diz a empresária do ramo da estética Jussara Antonietto, de 60 anos, cuja filha se formou no ano passado na Facamp. A jovem enfrentou um câncer durante o curso e, para a mãe, a fácil comunicação com a instituição foi essencial durante o tratamento. Já no curso do filho, em outra universidade de Campinas, ela reclama que não conseguiu sequer negociar um pagamento anual das mensalidades. “Disseram que só poderia fazer se meu filho autorizasse. Mas sou eu que pago.”

Quando a exposição a conflitos é evitada ao longo do ensino médio, com os pais sempre mediando as dificuldades dos filhos, o jovem chega ao ensino superior em um papel bastante passivo

Rodolfo Dib, psicólogo clínico

Para o psiquiatra da infância e adolescência Miguel Angelo Boarati, é compreensível que os pais ajudem na escolha da carreira pela quantidade de opções que existem hoje no mercado e pela dificuldade que o jovem tem de entender sua vocação. Mas interferir nos processos da faculdade é “inadequado” e prejudica o desenvolvimento da autonomia, que já deveria ter começado bem antes.

“Desde os 3 anos o pai já pode trabalhar isso com a criança, dar a responsabilidade de guardar seu brinquedo. Com 10, 11 anos dar autonomia para o filho escolher a roupa, tomar banho sozinho. Todo o adolescente de desenvolvimento típico tem condição de assumir responsabilidades.”

“Quando a exposição a conflitos e problemas é evitada ao longo do ensino médio, com os pais sempre auxiliando e mediando as dificuldades dos filhos, o jovem chega ao ensino superior em um papel bastante passivo”, completa o psicólogo clínico e professor no Instituto Par Ciências do Comportamento, Rodolfo Dib. Em situações como essas, os pais acabam tendo que continuar presentes nessa transição para a faculdade, diz. “Mas rapidamente eles precisam ir transferindo para o estudante o papel principal na condução dessas situações que são bastante importantes para a formação, para se tornarem profissionais independentes.”

O pró-reitor de ensino, pesquisa e pós graduação da Fundação Getulio Vargas (FGV), Antonio Freitas, lembra que o estudante precisa desenvolver autonomia para “circular no mundo do trabalho, complexo e em contínua mutação”. “No ensino superior o jovem vai desenvolver competências e habilidades socioemocionais, saber lidar com superiores, com pares. Quando o pai interfere, prejudica o crescimento do aluno”, diz. Algumas escolas da FGV também organizam reuniões com as famílias no início do curso para apresentar a grade curricular, os professores e as dependências da instituição.

Formandos da turma de 2023 de Universidade Harvard, nos Estados Unidos, livro relaciona pais superprotetores à falta de liberdade de expressão em ambientes universitários Foto: Steven Senne / AP

Americanos ‘mimados’

O fenômeno não é exclusivo do Brasil e é discutido em parte no livro The Coddling of American Mind, How Good Intentions and Bad Ideas Are Setting Up a Generation for Failure (O mimo da mente americana, como boas intenções e más ideias estão preparando uma geração para o fracasso, em tradução livre). Os autores refletem sobre os ambientes universitários hoje, em que professores e estudantes sentem que há dificuldades para se lidar com a diversidade, com os conflitos e com opiniões diferentes, algo considerado imprescindível durante a graduação. Acrescentam ainda que as faculdades americanas registram altas taxas de ansiedade, depressão e suicídio de alunos.

No best seller, o psicólogo Jonathan Haidt e o jurista Greg Lukianoff creditam os problemas atuais a estudantes que tiveram pais medrosos na infância, superprotetores, que não permitiam que seus filhos brincassem sem ser supervisionados, além do impacto das redes sociais nas relações interpessoais.

Universidades como Harvard e Stanford têm departamentos específicos direcionados às famílias. No Stanford Families há uma linha de telefone e e-mail para os pais entrarem em contato, informações sobre pagamentos de mensalidades e espaço para perguntas e respostas que incluem até como mandar um bolo de aniversário para o filho.

Harvard oferece visitas aos pais em fins de semana durante o primeiro ano de estudos. “Experimente Harvard através dos olhos de seu filho. Participe de cursos e de discussões com professores, conheça outras famílias, receba informações valiosas e recursos úteis para a experiência do estudante”, diz o texto do departamento Parent and Family Engagement Office.

Um pai entra na sala de professores de uma faculdade particular e exige que o docente reveja a nota dada para a filha em um trabalho. Em outra instituição, a mãe quer que o coordenador do curso faça com que o filho pare de faltar às aulas para ver a namorada. E outros tantos buscam as universidades para saber do desempenho dos filhos, algo impensado há alguns anos. São histórias reais e cada vez mais comuns no ensino superior, em especial privado, em que os pais pagam altas mensalidades.

Mas especialistas dizem que essa interferência não ocorre só pela questão financeira. Acreditam que o comportamento pode refletir uma educação superprotetora desde a infância, que leva a jovens menos autônomos e menos resilientes. Há ainda, porém, quem considere a participação das famílias compreensível, já que se trata de um momento de escolha de carreira - desde que não ultrapasse certos limites.

A geração atual de universitários também é vista como menos madura, insegura, com o desenvolvimento prejudicado pelo impacto das tecnologias nas relações pessoais e por ter vivido a adolescência na pandemia.

As universidades passaram a perceber a demanda e já oferecem reuniões de pais e canais de comunicação diretos com as famílias. No Insper, elas são recebidas tanto no momento do vestibular quanto no primeiro ano. Há reuniões em fevereiro e agosto entre os pais dos calouros e a direção. “É uma das estratégias para lidar com a situação, passar segurança da formação que pretendemos dar, mostrar a estrutura, mas estabelecer limites e dizer que o aluno tem autonomia para resolver os problemas dele”, diz o presidente do Insper, Guilherme Martins.

A instituição tem também um canal para que os pais possam entrar em contato em caso de problemas de saúde física ou emocional dos filhos e para tratar de questões financeiras. Mas sobre desempenho e nota, Martins diz que o Insper pede que os pais conversem com os estudantes. “Costumo dizer para as famílias: se tudo der certo, nos vemos na formatura”, conta. “É preciso entender que a universidade é um ambiente de experimentação e o erro gera aprendizados importantes para que cometa acertos na vida profissional. A superproteção dos pais mina esse erro.”

Costumo dizer para as famílias: se tudo der certo, nos vemos na formatura.

Guilherme Martins, presidente do Insper

A empresária Jussara e os filhos: canal direto com a faculdade foi crucial quando a jovem ficou doente durante o curso Foto: Ricardo Lima/Estadão

Universidades tentam blindar contato de pais com professores

As universidades também são unânimes em dizer que blindam os professores de contatos com os pais. “Se o professor for procurado, ele deve encaminhar para o coordenador, que está treinado para atender a família. Conteúdo de disciplina não deve ser discutido com os pais”, diz o diretor acadêmico da Facamp, Rodrigo Sabbatini. “Professor não, a função dele é lidar com o aluno como estudante e como parte do processo de aprendizagem. Quando você coloca o pai no meio, ele é cliente, e professor não tem que lidar com cliente”, completa Martins.

Mesmo assim, alguns conseguem os e-mails ou telefones dos professores com os filhos e tentam conversas diretas. O Estadão ouviu histórias de docentes que lidaram com pais que pediram para adiar provas por causa de compromissos familiares, que queriam saber do desempenho geral do filho e até os que pediram reconsideração de notas ou da reprovação.

“Coloquei o telefone da minha mãe em um papel e disse para passar para a mãe do aluno que queria falar comigo. Porque mãe com mãe se entende. Eu só falo com o aluno”, brinca o professor de uma faculdade privada Adrian Cernev, sobre a insistência de uma mãe que ligou no seu departamento. “São pais que querem atuar diretamente em vez de instruir os filhos sobre como buscar alternativas, postergando a adolescência. A universidades têm vários caminhos formais para o aluno resolver problemas.”

Ex-coordenador de cursos de Comunicação, o escritor Franklin Valverde conta que um casal certa vez marcou uma reunião para questioná-lo por que o filho havia sido reprovado. O aluno vinha faltando às aulas para sair com amigos e a namorada. “A mãe então me falou: vocês o aceitaram, agora vocês que se virem, têm que cuidar”, conta o professor, que só instruiu os pais a conversarem com o jovem. “Quando eu estudei, jamais um pai iria reclamar na faculdade do filho, era vergonhoso.”

A superintendente acadêmica do Centro Universitário Belas Artes, Josiane Tonelotto, diz que já foi procurada até por pais de alunos da pós-graduação. A instituição também faz cafés semestrais com as famílias dos calouros e até fornece um login para os pais na plataforma virtual da faculdade. “Nos encontros aparece uma insegurança em relação à formação, estágio, dúvidas sobre profissões não tão tradicionais e também sobre o estado psicológico dos alunos”, diz Josiane.

Coloquei o telefone da minha mãe em um papel e disse para passar para a mãe do aluno que queria falar comigo. Porque mãe com mãe se entende. Eu só falo com o aluno

Adrian Cernev, professor

Ela conta que, no entanto, às vezes os pais “confundem responsável financeiro com responsável pelas notas”. “Aí a gente diz que o filho tem 18 anos e que não podemos informar sobre o desempenho dele. Vejo uma geração muito mais suscetível a inseguranças, com uma incapacidade de resolver os problemas, que suporta menos as diversidades, uma fragilidade que piorou pela pandemia.”

Mais tranquilidade

O farmacêutico bioquímico Luís Henrique Garcia Muniz, de 58 anos, diz que ficou “encantado” com a recepção que recebeu na Belas Artes assim que a filha ingressou no curso de Moda este ano. “Fizeram um café para tirar todas as dúvidas, falaram do projeto pedagógico, indicaram o canal para nos comunicar com a faculdade. Eu estava apreensivo da minha filha estudar sozinha em São Paulo e fiquei muito mais tranquilo”, conta ele, que mora em Maringá, no Paraná.

A filha Ana Luísa, de 18 anos, conta que passa as notas e os boletos para o pai. “Ao mesmo tempo que eu quero mais independência porque estou começando agora uma vida adulta, fico feliz de eles (os pais) estarem sempre me apoiando e dando suporte tanto financeiro quanto emocional”, afirma ela. “Não conseguiria sem a ajuda deles, principalmente morando fora.”

Na Facamp, que recebe também muitos alunos que não são da cidade e tem cursos em tempo integral, os pais são procurados quando o desempenho do filho está muito aquém do esperado para “não serem pegos de surpresa”, explica Sabbatini. “Percebemos que havia uma mudança na sociedade, de alunos cada vez mais imaturos, os jovens de 18 anos são os novos adolescentes, é preciso enfrentar isso como um problema pedagógico.”

“Desde o início me chamou muito a atenção como fomos recebidos, levando os pais para dentro da instituição, dizendo que estariam sempre próximos”, diz a empresária do ramo da estética Jussara Antonietto, de 60 anos, cuja filha se formou no ano passado na Facamp. A jovem enfrentou um câncer durante o curso e, para a mãe, a fácil comunicação com a instituição foi essencial durante o tratamento. Já no curso do filho, em outra universidade de Campinas, ela reclama que não conseguiu sequer negociar um pagamento anual das mensalidades. “Disseram que só poderia fazer se meu filho autorizasse. Mas sou eu que pago.”

Quando a exposição a conflitos é evitada ao longo do ensino médio, com os pais sempre mediando as dificuldades dos filhos, o jovem chega ao ensino superior em um papel bastante passivo

Rodolfo Dib, psicólogo clínico

Para o psiquiatra da infância e adolescência Miguel Angelo Boarati, é compreensível que os pais ajudem na escolha da carreira pela quantidade de opções que existem hoje no mercado e pela dificuldade que o jovem tem de entender sua vocação. Mas interferir nos processos da faculdade é “inadequado” e prejudica o desenvolvimento da autonomia, que já deveria ter começado bem antes.

“Desde os 3 anos o pai já pode trabalhar isso com a criança, dar a responsabilidade de guardar seu brinquedo. Com 10, 11 anos dar autonomia para o filho escolher a roupa, tomar banho sozinho. Todo o adolescente de desenvolvimento típico tem condição de assumir responsabilidades.”

“Quando a exposição a conflitos e problemas é evitada ao longo do ensino médio, com os pais sempre auxiliando e mediando as dificuldades dos filhos, o jovem chega ao ensino superior em um papel bastante passivo”, completa o psicólogo clínico e professor no Instituto Par Ciências do Comportamento, Rodolfo Dib. Em situações como essas, os pais acabam tendo que continuar presentes nessa transição para a faculdade, diz. “Mas rapidamente eles precisam ir transferindo para o estudante o papel principal na condução dessas situações que são bastante importantes para a formação, para se tornarem profissionais independentes.”

O pró-reitor de ensino, pesquisa e pós graduação da Fundação Getulio Vargas (FGV), Antonio Freitas, lembra que o estudante precisa desenvolver autonomia para “circular no mundo do trabalho, complexo e em contínua mutação”. “No ensino superior o jovem vai desenvolver competências e habilidades socioemocionais, saber lidar com superiores, com pares. Quando o pai interfere, prejudica o crescimento do aluno”, diz. Algumas escolas da FGV também organizam reuniões com as famílias no início do curso para apresentar a grade curricular, os professores e as dependências da instituição.

Formandos da turma de 2023 de Universidade Harvard, nos Estados Unidos, livro relaciona pais superprotetores à falta de liberdade de expressão em ambientes universitários Foto: Steven Senne / AP

Americanos ‘mimados’

O fenômeno não é exclusivo do Brasil e é discutido em parte no livro The Coddling of American Mind, How Good Intentions and Bad Ideas Are Setting Up a Generation for Failure (O mimo da mente americana, como boas intenções e más ideias estão preparando uma geração para o fracasso, em tradução livre). Os autores refletem sobre os ambientes universitários hoje, em que professores e estudantes sentem que há dificuldades para se lidar com a diversidade, com os conflitos e com opiniões diferentes, algo considerado imprescindível durante a graduação. Acrescentam ainda que as faculdades americanas registram altas taxas de ansiedade, depressão e suicídio de alunos.

No best seller, o psicólogo Jonathan Haidt e o jurista Greg Lukianoff creditam os problemas atuais a estudantes que tiveram pais medrosos na infância, superprotetores, que não permitiam que seus filhos brincassem sem ser supervisionados, além do impacto das redes sociais nas relações interpessoais.

Universidades como Harvard e Stanford têm departamentos específicos direcionados às famílias. No Stanford Families há uma linha de telefone e e-mail para os pais entrarem em contato, informações sobre pagamentos de mensalidades e espaço para perguntas e respostas que incluem até como mandar um bolo de aniversário para o filho.

Harvard oferece visitas aos pais em fins de semana durante o primeiro ano de estudos. “Experimente Harvard através dos olhos de seu filho. Participe de cursos e de discussões com professores, conheça outras famílias, receba informações valiosas e recursos úteis para a experiência do estudante”, diz o texto do departamento Parent and Family Engagement Office.

Um pai entra na sala de professores de uma faculdade particular e exige que o docente reveja a nota dada para a filha em um trabalho. Em outra instituição, a mãe quer que o coordenador do curso faça com que o filho pare de faltar às aulas para ver a namorada. E outros tantos buscam as universidades para saber do desempenho dos filhos, algo impensado há alguns anos. São histórias reais e cada vez mais comuns no ensino superior, em especial privado, em que os pais pagam altas mensalidades.

Mas especialistas dizem que essa interferência não ocorre só pela questão financeira. Acreditam que o comportamento pode refletir uma educação superprotetora desde a infância, que leva a jovens menos autônomos e menos resilientes. Há ainda, porém, quem considere a participação das famílias compreensível, já que se trata de um momento de escolha de carreira - desde que não ultrapasse certos limites.

A geração atual de universitários também é vista como menos madura, insegura, com o desenvolvimento prejudicado pelo impacto das tecnologias nas relações pessoais e por ter vivido a adolescência na pandemia.

As universidades passaram a perceber a demanda e já oferecem reuniões de pais e canais de comunicação diretos com as famílias. No Insper, elas são recebidas tanto no momento do vestibular quanto no primeiro ano. Há reuniões em fevereiro e agosto entre os pais dos calouros e a direção. “É uma das estratégias para lidar com a situação, passar segurança da formação que pretendemos dar, mostrar a estrutura, mas estabelecer limites e dizer que o aluno tem autonomia para resolver os problemas dele”, diz o presidente do Insper, Guilherme Martins.

A instituição tem também um canal para que os pais possam entrar em contato em caso de problemas de saúde física ou emocional dos filhos e para tratar de questões financeiras. Mas sobre desempenho e nota, Martins diz que o Insper pede que os pais conversem com os estudantes. “Costumo dizer para as famílias: se tudo der certo, nos vemos na formatura”, conta. “É preciso entender que a universidade é um ambiente de experimentação e o erro gera aprendizados importantes para que cometa acertos na vida profissional. A superproteção dos pais mina esse erro.”

Costumo dizer para as famílias: se tudo der certo, nos vemos na formatura.

Guilherme Martins, presidente do Insper

A empresária Jussara e os filhos: canal direto com a faculdade foi crucial quando a jovem ficou doente durante o curso Foto: Ricardo Lima/Estadão

Universidades tentam blindar contato de pais com professores

As universidades também são unânimes em dizer que blindam os professores de contatos com os pais. “Se o professor for procurado, ele deve encaminhar para o coordenador, que está treinado para atender a família. Conteúdo de disciplina não deve ser discutido com os pais”, diz o diretor acadêmico da Facamp, Rodrigo Sabbatini. “Professor não, a função dele é lidar com o aluno como estudante e como parte do processo de aprendizagem. Quando você coloca o pai no meio, ele é cliente, e professor não tem que lidar com cliente”, completa Martins.

Mesmo assim, alguns conseguem os e-mails ou telefones dos professores com os filhos e tentam conversas diretas. O Estadão ouviu histórias de docentes que lidaram com pais que pediram para adiar provas por causa de compromissos familiares, que queriam saber do desempenho geral do filho e até os que pediram reconsideração de notas ou da reprovação.

“Coloquei o telefone da minha mãe em um papel e disse para passar para a mãe do aluno que queria falar comigo. Porque mãe com mãe se entende. Eu só falo com o aluno”, brinca o professor de uma faculdade privada Adrian Cernev, sobre a insistência de uma mãe que ligou no seu departamento. “São pais que querem atuar diretamente em vez de instruir os filhos sobre como buscar alternativas, postergando a adolescência. A universidades têm vários caminhos formais para o aluno resolver problemas.”

Ex-coordenador de cursos de Comunicação, o escritor Franklin Valverde conta que um casal certa vez marcou uma reunião para questioná-lo por que o filho havia sido reprovado. O aluno vinha faltando às aulas para sair com amigos e a namorada. “A mãe então me falou: vocês o aceitaram, agora vocês que se virem, têm que cuidar”, conta o professor, que só instruiu os pais a conversarem com o jovem. “Quando eu estudei, jamais um pai iria reclamar na faculdade do filho, era vergonhoso.”

A superintendente acadêmica do Centro Universitário Belas Artes, Josiane Tonelotto, diz que já foi procurada até por pais de alunos da pós-graduação. A instituição também faz cafés semestrais com as famílias dos calouros e até fornece um login para os pais na plataforma virtual da faculdade. “Nos encontros aparece uma insegurança em relação à formação, estágio, dúvidas sobre profissões não tão tradicionais e também sobre o estado psicológico dos alunos”, diz Josiane.

Coloquei o telefone da minha mãe em um papel e disse para passar para a mãe do aluno que queria falar comigo. Porque mãe com mãe se entende. Eu só falo com o aluno

Adrian Cernev, professor

Ela conta que, no entanto, às vezes os pais “confundem responsável financeiro com responsável pelas notas”. “Aí a gente diz que o filho tem 18 anos e que não podemos informar sobre o desempenho dele. Vejo uma geração muito mais suscetível a inseguranças, com uma incapacidade de resolver os problemas, que suporta menos as diversidades, uma fragilidade que piorou pela pandemia.”

Mais tranquilidade

O farmacêutico bioquímico Luís Henrique Garcia Muniz, de 58 anos, diz que ficou “encantado” com a recepção que recebeu na Belas Artes assim que a filha ingressou no curso de Moda este ano. “Fizeram um café para tirar todas as dúvidas, falaram do projeto pedagógico, indicaram o canal para nos comunicar com a faculdade. Eu estava apreensivo da minha filha estudar sozinha em São Paulo e fiquei muito mais tranquilo”, conta ele, que mora em Maringá, no Paraná.

A filha Ana Luísa, de 18 anos, conta que passa as notas e os boletos para o pai. “Ao mesmo tempo que eu quero mais independência porque estou começando agora uma vida adulta, fico feliz de eles (os pais) estarem sempre me apoiando e dando suporte tanto financeiro quanto emocional”, afirma ela. “Não conseguiria sem a ajuda deles, principalmente morando fora.”

Na Facamp, que recebe também muitos alunos que não são da cidade e tem cursos em tempo integral, os pais são procurados quando o desempenho do filho está muito aquém do esperado para “não serem pegos de surpresa”, explica Sabbatini. “Percebemos que havia uma mudança na sociedade, de alunos cada vez mais imaturos, os jovens de 18 anos são os novos adolescentes, é preciso enfrentar isso como um problema pedagógico.”

“Desde o início me chamou muito a atenção como fomos recebidos, levando os pais para dentro da instituição, dizendo que estariam sempre próximos”, diz a empresária do ramo da estética Jussara Antonietto, de 60 anos, cuja filha se formou no ano passado na Facamp. A jovem enfrentou um câncer durante o curso e, para a mãe, a fácil comunicação com a instituição foi essencial durante o tratamento. Já no curso do filho, em outra universidade de Campinas, ela reclama que não conseguiu sequer negociar um pagamento anual das mensalidades. “Disseram que só poderia fazer se meu filho autorizasse. Mas sou eu que pago.”

Quando a exposição a conflitos é evitada ao longo do ensino médio, com os pais sempre mediando as dificuldades dos filhos, o jovem chega ao ensino superior em um papel bastante passivo

Rodolfo Dib, psicólogo clínico

Para o psiquiatra da infância e adolescência Miguel Angelo Boarati, é compreensível que os pais ajudem na escolha da carreira pela quantidade de opções que existem hoje no mercado e pela dificuldade que o jovem tem de entender sua vocação. Mas interferir nos processos da faculdade é “inadequado” e prejudica o desenvolvimento da autonomia, que já deveria ter começado bem antes.

“Desde os 3 anos o pai já pode trabalhar isso com a criança, dar a responsabilidade de guardar seu brinquedo. Com 10, 11 anos dar autonomia para o filho escolher a roupa, tomar banho sozinho. Todo o adolescente de desenvolvimento típico tem condição de assumir responsabilidades.”

“Quando a exposição a conflitos e problemas é evitada ao longo do ensino médio, com os pais sempre auxiliando e mediando as dificuldades dos filhos, o jovem chega ao ensino superior em um papel bastante passivo”, completa o psicólogo clínico e professor no Instituto Par Ciências do Comportamento, Rodolfo Dib. Em situações como essas, os pais acabam tendo que continuar presentes nessa transição para a faculdade, diz. “Mas rapidamente eles precisam ir transferindo para o estudante o papel principal na condução dessas situações que são bastante importantes para a formação, para se tornarem profissionais independentes.”

O pró-reitor de ensino, pesquisa e pós graduação da Fundação Getulio Vargas (FGV), Antonio Freitas, lembra que o estudante precisa desenvolver autonomia para “circular no mundo do trabalho, complexo e em contínua mutação”. “No ensino superior o jovem vai desenvolver competências e habilidades socioemocionais, saber lidar com superiores, com pares. Quando o pai interfere, prejudica o crescimento do aluno”, diz. Algumas escolas da FGV também organizam reuniões com as famílias no início do curso para apresentar a grade curricular, os professores e as dependências da instituição.

Formandos da turma de 2023 de Universidade Harvard, nos Estados Unidos, livro relaciona pais superprotetores à falta de liberdade de expressão em ambientes universitários Foto: Steven Senne / AP

Americanos ‘mimados’

O fenômeno não é exclusivo do Brasil e é discutido em parte no livro The Coddling of American Mind, How Good Intentions and Bad Ideas Are Setting Up a Generation for Failure (O mimo da mente americana, como boas intenções e más ideias estão preparando uma geração para o fracasso, em tradução livre). Os autores refletem sobre os ambientes universitários hoje, em que professores e estudantes sentem que há dificuldades para se lidar com a diversidade, com os conflitos e com opiniões diferentes, algo considerado imprescindível durante a graduação. Acrescentam ainda que as faculdades americanas registram altas taxas de ansiedade, depressão e suicídio de alunos.

No best seller, o psicólogo Jonathan Haidt e o jurista Greg Lukianoff creditam os problemas atuais a estudantes que tiveram pais medrosos na infância, superprotetores, que não permitiam que seus filhos brincassem sem ser supervisionados, além do impacto das redes sociais nas relações interpessoais.

Universidades como Harvard e Stanford têm departamentos específicos direcionados às famílias. No Stanford Families há uma linha de telefone e e-mail para os pais entrarem em contato, informações sobre pagamentos de mensalidades e espaço para perguntas e respostas que incluem até como mandar um bolo de aniversário para o filho.

Harvard oferece visitas aos pais em fins de semana durante o primeiro ano de estudos. “Experimente Harvard através dos olhos de seu filho. Participe de cursos e de discussões com professores, conheça outras famílias, receba informações valiosas e recursos úteis para a experiência do estudante”, diz o texto do departamento Parent and Family Engagement Office.

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