Pouco mais de 20 anos depois da Lei 10639/2003, que determina a inclusão de história e cultura africanas no currículo escolar, a maioria das creches e escolas de Educação Infantil ignora o tema. Um estudo realizado em quase quatro mil turmas de instituições públicas, espalhadas por 12 cidades brasileiras, indica que em 89,8% delas não foram observadas aprendizagens sobre educação étnico-racial. Na prática, nove em cada dez instituições não abordaram temas raciais.
O estudo concluiu ainda que as crianças participaram de aproximadamente 11 mil horas de atividades sem enfatizar as questões. Cidades que participaram do levantamento afirmam que estão adotando programas de promoção de equidade racial de forma sistêmica a partir da pesquisa.
Os dados estão na Avaliação da Qualidade da Educação Infantil: Um retrato pós BNCC (Base Nacional Comum Curricular), feita pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Itaú Social e Laboratório de Estudos e Pesquisas em Economia Social da Universidade de São Paulo (USP). Foram mapeadas 3.467 turmas, sendo 1.683 creches e 1.784 da pré-escola, de todo o País, entre junho e dezembro de 2021.
O universo do estudo abrange os Centros de Educação Infantil (CEI) de administração direta dos municípios, unidades conveniadas/parceiras ou Escolas Municipais de Ensino Fundamental (EMEF) com turmas de educação infantil de nove capitais (entre elas o Rio de Janeiro), duas cidades do interior (incluindo Sobral, no Ceará, considerada referência de aprendizagem) e um município da região metropolitana de São Paulo.
“A pesquisa mostra um cenário bastante desafiador”, diz Juliana Yade, coordenadora de Educação Infantil do Itaú Social. “Quando as pessoas negras, maioria da população brasileira, não vê sua cultura representada adequadamente nas instituições de educação infantil, teremos um lapso na construção da memória, das identidades e da subjetividade dessas pessoas.”
Karina Fasson, gerente de Conhecimento Aplicado na Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, tem interpretação semelhante. “Uma escola que não trabalha a educação para as relações étnico-raciais, que não possui materiais que reflitam a diversidade, acaba reproduzindo o racismo.”
O estudo evidencia os desafios da implementação da Lei 10639/2003, que definiu a inclusão de conteúdos relacionados à história e cultura africana e afro-brasileira no currículo escolar, em todas as instituições, públicas ou particulares, do Ensino Fundamental até o Ensino Médio. A norma, que está completando 20 anos, alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), legislação máxima da educação.
O advogado e professor Dave Prada afirma que é difícil haver sanção à instituição que não cumprir o currículo. “No máximo, haverá determinação de cumprimento sob pena de abertura de procedimento contra o dirigente escolar, podendo ser afastado ou removido. Se for um convênio, ele pode ser rompido”, diz.
“Não é que ela (a lei) não pegou. O racismo vai estruturar e hierarquizar as relações dentro da escola, a produção do conteúdo e inclusive o questionamento sobre a necessidade de a história da África compor ou não o currículo escolar. Esses desafios não estão deslocados da nossa grande questão social, que é o racismo estrutural”, afirma Yade.
Na prática, os professores deveriam ressaltar em sala de aula que a cultura afro-brasileira é formadora da sociedade brasileira, considerando os negros como sujeitos históricos e valorizando o pensamento, a cultura (música, culinária, dança) e as religiões de matrizes africanas.
Outro problema é a frequência com que esses temas são abordados durante o ano letivo, alerta Renato Brizzi, coordenador de Ensino Fundamental do Itaú Social. Normalmente, as atividades pedagógicas ficam concentradas no mês de novembro, quando é celebrado o Dia da Consciência Negra.
Como mudar esse cenário
Para ajudar instituições e professores a mudar esse cenário, a plataforma Anansi – Observatório da Equidade Racial na Educação Básica traz conteúdos pedagógicos voltados à história e cultura afro-brasileira. O observatório sistematiza informações para o controle social do cumprimento da Lei 10639/03 nos sistemas brasileiros de ensino.
O acervo digital (anansi.ceert.org.br) traz opções que podem ser replicadas em sala de aula, como dicas sobre a relevância do ensino da matemática antirracista, sugestões de livros de autores negros, aplicativos, catálogos de jogos e brincadeiras e documentários.
Parte dos conteúdos é resultado de dois anos de estudos de pesquisadores negros apoiados pelo Itaú Social e pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) por meio do Edital Equidade Racial na Educação Básica.
Yade destaca que a adoção de conteúdos antirracistas vai além da iniciativa do professor na sala de aula. “Quando nós pensamos na implementação da lei, é preciso uma intencionalidade pedagógica da gestão, não só da parte da sala de aula, mas também da Secretaria de Educação de cada um dos estados e municípios.”
“A gestão pedagógica, no nível das escolas, pode garantir projetos políticos pedagógicos que olhem para a implementação da Lei, além de planos de trabalho com ações propositivas para a promoção da equidade racial, para além de ações reparadoras”, completa Karina Fasson.
Prefeituras dizem ter implantado conteúdos raciais a partir da pesquisa
Algumas cidades que participaram da pesquisa informam novos programas para incluir os temas étnico-raciais nos conteúdos das escolas. Uma delas foi a cidade de Sobral (CE).
“A partir da pesquisa, nós implantamos um programa formativo e estrutural, contendo algumas cirandas formativas com gestores, que é um espaço de diálogo e troca de experiência que aborda as questões étnico-raciais, de autoconhecimento, valorização da cultura afrodescendente e dos povos originários”, afirma Kathleen Arcanjo, coordenadora da Educação Infantil da Secretaria da Educação de Sobral.
A educadora informa ainda que mudanças foram adotadas também na formação dos professores. “Incorporamos contações de histórias que abordem as características da cultura negra, indígena, em jogos e atividades. Fizemos também a aquisição de literatura infantil e de material didático e brinquedos que tragam a diversidade racial.”
A prefeitura do Rio de Janeiro informa que “a gestão do Secretário Renan Ferreirinha teve como primeira atuação a criação da Gerência de Relações Étnico-Raciais -GERER, como órgão consultivo, mediador e de planejamento estratégico para atuar junto às áreas do currículo, da formação, dos projetos, do monitoramento, avaliação e dos recursos”.
“Atendendo especificamente à primeira infância, investimos recursos na produção de materiais pedagógicos que tragam as histórias, culturas e memórias africanas, afrobrasileiras e indígenas em diálogo com a garantia de direitos da primeira infância; na formação de profissionais, com oferta do curso ‘Griot: brinca e conta’, que traz o conteúdo da GERER por meio das literaturas, jogos e brincadeiras de origens afroindígenas; a oferta da ‘I Jornada Pedagógica da Educação das Relações Étnico-Raciais’, que em três dias atingiu a cerca de 5 mil profissionais, além da reserva de um percentual de 20% do valor de voucher para aquisição de livros de literatura africana, afro-brasileira e indígena na Bienal.”
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“Compramos acervo específico de autoria negra e indígena para as salas de leitura, bibliotecas escolares e unidades de extensão, com títulos atuais como o livro Amoras, do rapper Emicida; O Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus; Da Minha Janela, do escritor e ex-aluno da rede Otávio Jr., Ideias Para Adiar o Fim do Mundo, de Ailton Krenak, entre outros”, diz o poder municipal.
“A criação da GERER e todas as ações que vem sendo desenvolvidas a partir dela são exemplo concreto de que as políticas públicas institucionais precisam garantir: currículo, formação, projetos, recursos e monitoramento constante. Esperamos, em breve, receber a pesquisa novamente e podermos avaliar se o investimento se traduziu em avanços reais e significativos para as práticas pedagógicas dentro das nossas escolas”, diz a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro.
* Este conteúdo foi produzido em parceria com o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert)