Diante da suspensão pelo Ministério da Educação (MEC) do cronograma do novo ensino médio para que o modelo seja reavaliado, o Brasil discute propostas que substituam o que não está dando certo. Mais de 7 milhões de alunos cursam a etapa no País e já neste novo formato, que começou em 2022 nas escolas públicas e particulares.
Entre especialistas, há os que sustentam que só a revogação completa da reforma resolve o problema porque ela é impossível de ser posta em prática. Outros defendem que sua essência deve ser mantida, mas apontam mudanças de desenho e implementação.
A reforma pressupõe currículo flexível, que proponha escolhas para o jovem, e não modelo único. É assim em países referência, mas o formato criado no Brasil, com itinerários formativos muito amplos, levou a opções sem função pedagógica ou dadas por professores sem preparo. E, para incluir inovações sem perda da formação básica, especialistas dizem que ele deveria ser em tempo integral.
O MEC abriu consulta pública para discutir o que fazer com a crise, que tem contornos políticos, já que parte da esquerda pressiona a gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pela revogação. O Estadão ouviu especialistas para listar possíveis soluções.
Maior carga horária da formação básica e ensino integral
A reforma prevê elevar a carga horária total, das antigas 2,4 mil para 3 mil horas (nos três anos), o que especialistas elogiam. A questão é que no máximo 1,8 mil dessas horas são para formação básica – disciplinas tradicionais como Português, Matemática e Biologia. E 1,2 mil horas ficam com o chamado itinerário formativo – pode ser um aprofundamento em linguagens ou curso técnico, por exemplo.
A crítica é que as matérias gerais básicas perdem espaço, o que prejudicaria a formação para o vestibular. O Todos pela Educação defende que essa divisão seja feita por porcentual e não por número de horas, e que a maioria do tempo seja na formação básica. “Ao pôr um valor absoluto, não importa quantas horas a escola ofereça, serão sempre 1,8 mil horas, no máximo. Em escolas em tempo integral, isso significa 30% do ofertado”, diz Olavo Nogueira Filho, diretor executivo do Todos.
Há escolas que têm quase toda a formação básica no 1º ano. Depois, no 2º e 3º ano, diminui-se sensivelmente essa parte, ficando só com Português e Matemática, além dos itinerários.
“O aumento da jornada da formação básica é fundamental”, diz o presidente do conselho de secretários estaduais de educação (Consed), Vitor de Angelo. Segundo ele, as disciplinas das áreas de ciências humanas foram as mais prejudicadas pela limitação das 1.800 horas. “Professores dessas áreas, que estão mais dedicados a uma reflexão mais ampla, acabaram assumindo disciplinas eletivas”, diz ele, titular do Espírito Santo.
O Todos pela Educação ainda defende modificar a lei do novo ensino médio para que essa etapa passe a ser oferecida em tempo integral. “Isso é um pilar estruturante desse novo desenho com currículo flexível”, diz Nogueira Filho. Com 7 horas de aulas diárias, ele acredita que a distribuição da carga horária permitiria que disciplinas básicas não fossem cortadas. “Quando se faz o paralelo com países desenvolvidos, o tempo integral é a regra. Escola em tempo integral lá se chama escola.”
Itinerários formativos amplos
Os itinerários formativos estão entre as polêmicas do novo ensino médio. A lei prevê que eles sejam divididos em Ciências da Natureza, Humanas, Linguagens Matemáticas e Formação Técnica e Profissional. Nesses grandes grupos, os Estados deveriam criar opções que aprofundassem as disciplinas, levando em conta eixos como investigação científica, processo criativo e empreendedorismo.
Mas a ideia muito ampla de itinerários, para especialistas, abriu espaço para opções rasas e sem proposta pedagógica. “Professores assumiram itinerários sem formação para isso. Interdisciplinaridade é ótima, mas precisa de conhecimentos básicos”, diz Anna Helena Altenfelder, do Cenpec, entidade que busca aprimorar a qualidade da educação púbica.
Ela e outros pedem que o MEC “dê uma direção” para os itinerários, reduzindo o leque de opções. Já Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), que é a favor da revogação, acredita que os itinerários devem ser substituídos por áreas nas quais o aluno pode circular.
“Teríamos formação geral básica mais extensa, até o fim do 2º ano. No 3º, haveria o ingresso em áreas nas quais o aluno poderia optar por matérias realmente eletivas de aprofundamento, pautadas nas disciplinas clássicas”, afirma.
Esse modelo, de acordo com Daniel Cara, ajudaria no desempenho dos alunos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e nos vestibulares, “além de garantir formação mais sólida”.
“Não há formação possível que forme para os itinerários. Além disso, a reforma demandaria uma contratação massiva de professores para todas as escolas públicas ofertarem todos os itinerários formativos”, complementa o professor da USP. “Isso é inviável. Por isso, trabalhar por áreas é mais salutar e dá efetivo direito de escolha.”
Formação dos professores
A dificuldade em preparar professores para a ampla gama de itinerários formativos é consenso ente os especialistas. “Uma das questões mais sensíveis de qualquer reforma curricular é exatamente o fato de serem planejadas para serem executadas por professores formados por outros modelos”, diz Maria Luiza Süssekind, vice-presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped).
No período de implementação da reforma, ainda durante a gestão Jair Bolsonaro (PL), houve pouca ajuda federal para que os Estados fizessem essa adaptação. Especialistas defendem que o MEC assuma esse papel, após uma reavaliação do perfil dos itinerários.
No entanto, Vitor de Angelo afirma que Estados que ofereceram formação muitas vezes não tiveram o interesse dos professores. No Espírito Santo, onde é secretário, ele diz que as vagas não foram preenchidas para formações para disciplinas eletivas ou itinerários.
No ano passado, segundo ele, foram 6 mil vagas e só 2 mil docentes terminaram os cursos. “Não quero culpar o professor, mas arrisco dizer que muitos dos que criticam não sabem nem o que estão falando porque não estão participando das formações, a partir das quais teriam contato aprofundado com o objeto da crítica.”
Participação e diálogo com professores, alunos e famílias
Alunos e professores reclamam que não foram ouvidos na implementação, principalmente porque ela ocorreu na pandemia. “Se queremos pensar em mudar o ensino médio, precisamos discutir com as comunidades escolares”, diz Maria Luiza, da Anped e também professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Estado do Rio (Unirio)
Uma das resistências em relação ao novo modelo deriva da origem da reforma. Em 2017, o então presidente Michel Temer (MDB) propôs a reformulação por meio de uma medida provisória, o que motivou ocupações de escolas secundárias pelo País em protesto contra o plano. Os grupos defendiam que uma mudança desse porte fosse feita por projeto de lei, de forma a permitir ampla discussão com a sociedade.
Especialistas acreditam que agora que a reforma já está em curso, o MEC precisa fazer o diagnóstico do que existe nas redes ouvindo professores e jovens. Anna Helena sugere que as secretarias organizem essas escutas. “Não é possível implementar uma política educacional só com um belo documento”, afirma a superintendente do Cenpec.