Aos 21 anos, eu estava no hospital, tinha acabado de sofrer um acidente. Estava em uma fase em que a vida havia entrado em "stand by". Tive de repensar tudo. Ao mesmo tempo, só pensava em reabilitação. Não sabia se eu ia voltar a andar nem sequer como ia sair fisicamente daquilo. Só sabia que a minha vida tinha mudado radicalmente. Era difícil pensar no futuro, então pensava no meu presente.
Antes, eu estudava Engenharia Agrícola na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), morava em uma república estudantil no interior de São Paulo, fazia teatro, tinha duas bandas, pegava onda em Ubatuba – confesso que não era um surfista bom – e, de repente, sofri o acidente.
Em uma festa de encerramento da Unicamp, dei um mergulho estilo Tio Patinhas em um lago que fica perto de Campinas e fraturei a quinta vértebra da coluna cervical. Fiquei paralisado imediatamente. Tive uma longa jornada de UTI, internações – peguei pneumonia, infecções – e uma recuperação bastante lenta porque corria risco de vida.
Naquela época, eu pensava em levantar da cama, dar os primeiros giros de cadeiras de rodas, fazer fisioterapia, na vida afetiva, em rever os amigos.
Foi exatamente com 21 anos que comecei a escrever o livro Feliz Ano Velho, quando já estava em casa. Era algo que fazia até como fisioterapia, porque a datilografia era usada nas clínicas de reabilitação para fortalecer os braços, as mãos, os pulsos e os dedos.
Eu já escrevia contos e músicas antes do acidente, só não tinha planejado escrever um livro. Eu era o autor dos manifestos do DCE (Diretório Central de Estudantes) da Unicamp e do jornal da universidade, tinha feito parte do jornal do Santa Cruz, a escola em que eu estudei em São Paulo. Sempre curti. Minha família era muito ligada em literatura, meu pai (Rubens Paiva, engenheiro e político brasileiro desaparecido durante a ditadura militar) era amigo de escritores, então sempre estive envolvido nesse ambiente.
Aliás, no livro eu nem falo do meu pai tanto assim, eu falo mais do meu acidente, porque nos anos 1980 o desaparecimento dele já era conhecido. Já havia uma indignação das pessoas, só não havia uma indignação do governo federal porque ainda havia a ditadura.
Nos anos 1970, a minha família estava isolada: uma família de uma vítima da ditadura que não tinha a quem recorrer e que o Estado ignorava. Hoje, pelo contrário, existem leis que exigem que se façam reparações, existe a Comissão da Verdade, a imprensa nos ajuda muito. As pessoas são mais conscientes de que é preciso rever os crimes praticados. Na época, não, ninguém queria tocar no assunto.
Se parar para pensar, tudo na minha vida foi um pouco diferente do padrão. Aos 5 anos, eu era um exilado político e passei meu aniversário na embaixada da Iugoslávia. Meu pai foi cassado, foi para o exílio e voltou. Teve a questão do desaparecimento dele nos anos 1970. A minha mãe e a minha irmã também foram presas no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). Durante uns três dias, eu não tive nem pai nem mãe.
Minha vida não era muito pensar no futuro, era pensar no presente, sempre em "como sair dessa". Como eu poderia fazer planos se a gente tinha de fugir de uma cidade e morar em outra? Com 20 anos, veio a prova de que eu não poderia mesmo me planejar: de uma hora para outra eu estava paraplégico. Tive de voltar a morar em São Paulo com a minha mãe. Tive de parar a minha vida toda para fazer fisioterapia.
Não só eu, mas toda a minha geração está acostumada a não fazer muitos planos e é um pouco pessimista. É a geração da ditadura e, depois, da Guerra Fria. Quando a gente conseguiu derrubar a ditadura e eleger o Tancredo Neves, o cara morre. Aí volta o Sarney (José Sarney, hoje senador pelo PMDB-AP), que era um cara ligado à ditadura. Nos primeiros meses das Diretas Já, vem o Collor (Fernando Collor de Mello, hoje senador pelo PTB-AL).
Foi a geração que pegou o período dos Planos Cruzado e Real, que trocavam a moeda, tiravam três zeros, depois mudavam de novo. Era uma inconstância que não permitia que as pessoas planejassem muito suas vidas. Realmente foi uma geração em que era difícil acreditar em um futuro.
Com 21 anos, no entanto, eu esperava que o futuro do Brasil fosse melhor, mas isso não aconteceu. O País ficou muito violento, a injustiça social se agravou, as escolas estão piores, as pessoas leem menos e com menos qualidade. A inconstância econômica e a tensão social continuam. Ainda falta muito." / DEPOIMENTO A BÁRBARA FERREIRA SANTOS