Ele foi PM, jogador de várzea e agora é reitor: ‘Dinheiro não livra a gente de sofrer racismo’


Um dos líderes na luta pelas cotas em universidade e do feriado da Consciência Negra, José Vicente, reitor da Zumbi dos Palmares, fala da luta por um museu e de sua história

Por Gonçalo Junior
Atualização:

O menino José Vicente não via muitas opções quando olhava para o horizonte do Morro do Querosene, na periferia de Marília, interior de São Paulo. O caminho normal da vida era ser boia-fria como os pais, colhendo café ou laranja e cortando cana. Mas não bem era isso que queria.

O caçula de seis irmãos desejava mesmo ser jogador de futebol, outro lugar possível para pretos, pobres e periféricos. O ponteiro canhoto habilidoso ensaiou uma carreira promissora no Marília Atlético Clube, ganhou o apelido de Cafuringa, referência a um jogador das antigas, mas ele não tinha dinheiro para esperar que a salvação viesse de um olheiro.

José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, trabalha pela construção de um museu da memória negra em São Paulo Foto: Alex Silva/Estadão
continua após a publicidade

Descobriu que era um bom driblador também com as palavras, com poesias e letras de música. Era tão habilidoso que foi o 2º colocado no Festival Estadual da Música no final dos anos 1970, concurso com apresentação do ex-locutor Osmar Santos – ele se lembra até hoje - e entrega do troféu pelo cantor Fagner. Mas a mãe, dona Isabel, falou que poesia não enchia barriga de ninguém.

Foi nessa época que a Polícia Militar de São Paulo abriu concurso público. Nunca foi seu sonho, mas o salário de soldado era dez vezes maior que o de um boia-fria. Além disso, ele “podia colocar o revólver na cinta e falar grosso”. Foram cinco anos nas baratinhas, os antigos veículos militares, trabalhados em paralelo ao curso de Direito em Guarulhos, na região metropolitana. Quando terminou a faculdade, pediu baixa na PM.

Como advogado criminalista nos anos 1990, defendeu jovens negros e começou a lutar por bolsas de estudos. O projeto cresceu para um cursinho preparatório e hoje se transformou em uma universidade pioneira voltada à inclusão racial. Desde 2003, a Zumbi dos Palmares já formou cerca de 5 mil jovens, a maioria negros. Em parceria com o Estadão, a instituição também terá um curso para formação em Jornalismo.

continua após a publicidade

Foi assim que Cafuringa virou o reitor José Vicente, hoje com 63 anos. Mas a maneira como pensa o menino preto da periferia de Marília que se tornou um dos líderes antirracistas mais conhecidos do País merece ir além do resumo.

Combate pragmático ao racismo

Nos últimos anos, o professor foi um dos pioneiros do movimento “Cotas sim”, sobre a adoção de ações afirmativas no Brasil, em particular no ensino superior público. Esse movimento despertou a atenção de muita gente para o tema racial.

continua após a publicidade

Outra ação importante, a adoção do feriado estadual em São Paulo para a Consciência Negra, neste dia 20, foi outra bandeira que ergueu anos atrás. Até uma rua próxima à universidade passou a receber o nome do próprio líder histórico do quilombo de Palmares, em Alagoas.

Diante dessas medidas práticas, que mexem no cotidiano dos negros, o Estadão pergunta se ele prefere uma luta antirracista mais pragmática e objetiva. “Precisamos debater, reivindicar e denunciar. Mas precisamos de foco, direção e objetividade. Se não, a gente vai fazer um bom debate, mas não consegue tornar real nenhuma das ações que o debate estrutura. Sempre tivemos essa preocupação: a da ação direta”.

José Vicente, quando ainda pertencia à Polícia Militar, e sua mãe, Isabel Lopes Foto: Arquivo pessoal
continua após a publicidade

Mesmo com esses avanços, o reitor mostra cautela. “Estamos avançando, mas ainda muito lentamente e superficialmente na questão racial. É um momento enriquecedor e oportuno, mas a presença do negro ainda é limitada nos espaços de decisão”.

Vicente fica com um pé atrás porque ainda é discriminado diariamente. Quando ele estaciona sua Mercedes preta num hotel de luxo para uma palestra, os funcionários pedem para ele ir mais adiante, abrir espaço para a chefia, como se fosse um motorista esperar alguém. No momento em que entra na sala de reuniões, ele conta que sente os olhares de estranhamento, como se estivesse na sala errada.

Na saída, os participantes do próprio evento entregam a chave do carro como se ele fosse manobrista. Não há demérito algum em ser motorista ou manobrista; a questão é imaginar que negros e negras não possam ocupar outras posições, além dessas. “Na percepção deles, um negro de terno e gravata só pode ir buscar o carro, não pode ser o proprietário. Dinheiro não livra a gente de sofrer racismo”, relata.

continua após a publicidade

Vicente não se descobriu negro na época em que era apenas Cafuringa. Vivia só “a luta diária para defender a subsistência” e entender que o mundo era assim e já estava definido. Também não foi na época da PM. “Isso é curioso. Você vestia a capa de policial e as questões raciais não atravessavam o nosso olhar. Foi no curso de Direito que comecei a perceber, principalmente nas eleições para os diretórios acadêmicos.”

O professor José Vicente foi soldado da Polícia Militar de São Paulo enquanto estudava Direito Foto: Arquivo pessoal

O reitor trabalha agora pela construção de Museu da História do Negro em São Paulo. Depois da concordância do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), o museu vai ocupar a antiga sede do Centro Paula Souza, patrimônio público construído no século 19, tombado e localizado nas proximidades da Estação de Metrô Tiradentes, no Bom Retiro, região central.

continua após a publicidade

Os recursos para restauração e manutenção do imóvel ficam sob a responsabilidade da Sociedade Afrobrasileira de Desenvolvimento Sócio Cultural (Afrobras), do qual o professor é presidente do Conselho de Fundadores.

“O órgão estuda, técnica e juridicamente, a elaboração de uma proposta que permita o uso do prédio para instalação do Museu da História do Negro, um importante acervo cultural e histórico para o Estado”, informou o Centro Paula Souza.

Mesmo ocupado com a atuação em tantas áreas, Vicente diz que a poesia nunca ficou de lado. O professor conta que ainda se aventura na ficção (prometeu revirar seu baú e depois mandar uns versos para a reportagem).

“Essa veia poética sempre esteve em mim. De vez em quando ainda sai algo. A poesia é uma forma mais elaborada, de passar sua mensagem. Não só sobre sentimentos, mas sobre a vida.”

* Este conteúdo foi produzido em parceria com a Universidade Zumbi dos Palmares

O menino José Vicente não via muitas opções quando olhava para o horizonte do Morro do Querosene, na periferia de Marília, interior de São Paulo. O caminho normal da vida era ser boia-fria como os pais, colhendo café ou laranja e cortando cana. Mas não bem era isso que queria.

O caçula de seis irmãos desejava mesmo ser jogador de futebol, outro lugar possível para pretos, pobres e periféricos. O ponteiro canhoto habilidoso ensaiou uma carreira promissora no Marília Atlético Clube, ganhou o apelido de Cafuringa, referência a um jogador das antigas, mas ele não tinha dinheiro para esperar que a salvação viesse de um olheiro.

José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, trabalha pela construção de um museu da memória negra em São Paulo Foto: Alex Silva/Estadão

Descobriu que era um bom driblador também com as palavras, com poesias e letras de música. Era tão habilidoso que foi o 2º colocado no Festival Estadual da Música no final dos anos 1970, concurso com apresentação do ex-locutor Osmar Santos – ele se lembra até hoje - e entrega do troféu pelo cantor Fagner. Mas a mãe, dona Isabel, falou que poesia não enchia barriga de ninguém.

Foi nessa época que a Polícia Militar de São Paulo abriu concurso público. Nunca foi seu sonho, mas o salário de soldado era dez vezes maior que o de um boia-fria. Além disso, ele “podia colocar o revólver na cinta e falar grosso”. Foram cinco anos nas baratinhas, os antigos veículos militares, trabalhados em paralelo ao curso de Direito em Guarulhos, na região metropolitana. Quando terminou a faculdade, pediu baixa na PM.

Como advogado criminalista nos anos 1990, defendeu jovens negros e começou a lutar por bolsas de estudos. O projeto cresceu para um cursinho preparatório e hoje se transformou em uma universidade pioneira voltada à inclusão racial. Desde 2003, a Zumbi dos Palmares já formou cerca de 5 mil jovens, a maioria negros. Em parceria com o Estadão, a instituição também terá um curso para formação em Jornalismo.

Foi assim que Cafuringa virou o reitor José Vicente, hoje com 63 anos. Mas a maneira como pensa o menino preto da periferia de Marília que se tornou um dos líderes antirracistas mais conhecidos do País merece ir além do resumo.

Combate pragmático ao racismo

Nos últimos anos, o professor foi um dos pioneiros do movimento “Cotas sim”, sobre a adoção de ações afirmativas no Brasil, em particular no ensino superior público. Esse movimento despertou a atenção de muita gente para o tema racial.

Outra ação importante, a adoção do feriado estadual em São Paulo para a Consciência Negra, neste dia 20, foi outra bandeira que ergueu anos atrás. Até uma rua próxima à universidade passou a receber o nome do próprio líder histórico do quilombo de Palmares, em Alagoas.

Diante dessas medidas práticas, que mexem no cotidiano dos negros, o Estadão pergunta se ele prefere uma luta antirracista mais pragmática e objetiva. “Precisamos debater, reivindicar e denunciar. Mas precisamos de foco, direção e objetividade. Se não, a gente vai fazer um bom debate, mas não consegue tornar real nenhuma das ações que o debate estrutura. Sempre tivemos essa preocupação: a da ação direta”.

José Vicente, quando ainda pertencia à Polícia Militar, e sua mãe, Isabel Lopes Foto: Arquivo pessoal

Mesmo com esses avanços, o reitor mostra cautela. “Estamos avançando, mas ainda muito lentamente e superficialmente na questão racial. É um momento enriquecedor e oportuno, mas a presença do negro ainda é limitada nos espaços de decisão”.

Vicente fica com um pé atrás porque ainda é discriminado diariamente. Quando ele estaciona sua Mercedes preta num hotel de luxo para uma palestra, os funcionários pedem para ele ir mais adiante, abrir espaço para a chefia, como se fosse um motorista esperar alguém. No momento em que entra na sala de reuniões, ele conta que sente os olhares de estranhamento, como se estivesse na sala errada.

Na saída, os participantes do próprio evento entregam a chave do carro como se ele fosse manobrista. Não há demérito algum em ser motorista ou manobrista; a questão é imaginar que negros e negras não possam ocupar outras posições, além dessas. “Na percepção deles, um negro de terno e gravata só pode ir buscar o carro, não pode ser o proprietário. Dinheiro não livra a gente de sofrer racismo”, relata.

Vicente não se descobriu negro na época em que era apenas Cafuringa. Vivia só “a luta diária para defender a subsistência” e entender que o mundo era assim e já estava definido. Também não foi na época da PM. “Isso é curioso. Você vestia a capa de policial e as questões raciais não atravessavam o nosso olhar. Foi no curso de Direito que comecei a perceber, principalmente nas eleições para os diretórios acadêmicos.”

O professor José Vicente foi soldado da Polícia Militar de São Paulo enquanto estudava Direito Foto: Arquivo pessoal

O reitor trabalha agora pela construção de Museu da História do Negro em São Paulo. Depois da concordância do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), o museu vai ocupar a antiga sede do Centro Paula Souza, patrimônio público construído no século 19, tombado e localizado nas proximidades da Estação de Metrô Tiradentes, no Bom Retiro, região central.

Os recursos para restauração e manutenção do imóvel ficam sob a responsabilidade da Sociedade Afrobrasileira de Desenvolvimento Sócio Cultural (Afrobras), do qual o professor é presidente do Conselho de Fundadores.

“O órgão estuda, técnica e juridicamente, a elaboração de uma proposta que permita o uso do prédio para instalação do Museu da História do Negro, um importante acervo cultural e histórico para o Estado”, informou o Centro Paula Souza.

Mesmo ocupado com a atuação em tantas áreas, Vicente diz que a poesia nunca ficou de lado. O professor conta que ainda se aventura na ficção (prometeu revirar seu baú e depois mandar uns versos para a reportagem).

“Essa veia poética sempre esteve em mim. De vez em quando ainda sai algo. A poesia é uma forma mais elaborada, de passar sua mensagem. Não só sobre sentimentos, mas sobre a vida.”

* Este conteúdo foi produzido em parceria com a Universidade Zumbi dos Palmares

O menino José Vicente não via muitas opções quando olhava para o horizonte do Morro do Querosene, na periferia de Marília, interior de São Paulo. O caminho normal da vida era ser boia-fria como os pais, colhendo café ou laranja e cortando cana. Mas não bem era isso que queria.

O caçula de seis irmãos desejava mesmo ser jogador de futebol, outro lugar possível para pretos, pobres e periféricos. O ponteiro canhoto habilidoso ensaiou uma carreira promissora no Marília Atlético Clube, ganhou o apelido de Cafuringa, referência a um jogador das antigas, mas ele não tinha dinheiro para esperar que a salvação viesse de um olheiro.

José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, trabalha pela construção de um museu da memória negra em São Paulo Foto: Alex Silva/Estadão

Descobriu que era um bom driblador também com as palavras, com poesias e letras de música. Era tão habilidoso que foi o 2º colocado no Festival Estadual da Música no final dos anos 1970, concurso com apresentação do ex-locutor Osmar Santos – ele se lembra até hoje - e entrega do troféu pelo cantor Fagner. Mas a mãe, dona Isabel, falou que poesia não enchia barriga de ninguém.

Foi nessa época que a Polícia Militar de São Paulo abriu concurso público. Nunca foi seu sonho, mas o salário de soldado era dez vezes maior que o de um boia-fria. Além disso, ele “podia colocar o revólver na cinta e falar grosso”. Foram cinco anos nas baratinhas, os antigos veículos militares, trabalhados em paralelo ao curso de Direito em Guarulhos, na região metropolitana. Quando terminou a faculdade, pediu baixa na PM.

Como advogado criminalista nos anos 1990, defendeu jovens negros e começou a lutar por bolsas de estudos. O projeto cresceu para um cursinho preparatório e hoje se transformou em uma universidade pioneira voltada à inclusão racial. Desde 2003, a Zumbi dos Palmares já formou cerca de 5 mil jovens, a maioria negros. Em parceria com o Estadão, a instituição também terá um curso para formação em Jornalismo.

Foi assim que Cafuringa virou o reitor José Vicente, hoje com 63 anos. Mas a maneira como pensa o menino preto da periferia de Marília que se tornou um dos líderes antirracistas mais conhecidos do País merece ir além do resumo.

Combate pragmático ao racismo

Nos últimos anos, o professor foi um dos pioneiros do movimento “Cotas sim”, sobre a adoção de ações afirmativas no Brasil, em particular no ensino superior público. Esse movimento despertou a atenção de muita gente para o tema racial.

Outra ação importante, a adoção do feriado estadual em São Paulo para a Consciência Negra, neste dia 20, foi outra bandeira que ergueu anos atrás. Até uma rua próxima à universidade passou a receber o nome do próprio líder histórico do quilombo de Palmares, em Alagoas.

Diante dessas medidas práticas, que mexem no cotidiano dos negros, o Estadão pergunta se ele prefere uma luta antirracista mais pragmática e objetiva. “Precisamos debater, reivindicar e denunciar. Mas precisamos de foco, direção e objetividade. Se não, a gente vai fazer um bom debate, mas não consegue tornar real nenhuma das ações que o debate estrutura. Sempre tivemos essa preocupação: a da ação direta”.

José Vicente, quando ainda pertencia à Polícia Militar, e sua mãe, Isabel Lopes Foto: Arquivo pessoal

Mesmo com esses avanços, o reitor mostra cautela. “Estamos avançando, mas ainda muito lentamente e superficialmente na questão racial. É um momento enriquecedor e oportuno, mas a presença do negro ainda é limitada nos espaços de decisão”.

Vicente fica com um pé atrás porque ainda é discriminado diariamente. Quando ele estaciona sua Mercedes preta num hotel de luxo para uma palestra, os funcionários pedem para ele ir mais adiante, abrir espaço para a chefia, como se fosse um motorista esperar alguém. No momento em que entra na sala de reuniões, ele conta que sente os olhares de estranhamento, como se estivesse na sala errada.

Na saída, os participantes do próprio evento entregam a chave do carro como se ele fosse manobrista. Não há demérito algum em ser motorista ou manobrista; a questão é imaginar que negros e negras não possam ocupar outras posições, além dessas. “Na percepção deles, um negro de terno e gravata só pode ir buscar o carro, não pode ser o proprietário. Dinheiro não livra a gente de sofrer racismo”, relata.

Vicente não se descobriu negro na época em que era apenas Cafuringa. Vivia só “a luta diária para defender a subsistência” e entender que o mundo era assim e já estava definido. Também não foi na época da PM. “Isso é curioso. Você vestia a capa de policial e as questões raciais não atravessavam o nosso olhar. Foi no curso de Direito que comecei a perceber, principalmente nas eleições para os diretórios acadêmicos.”

O professor José Vicente foi soldado da Polícia Militar de São Paulo enquanto estudava Direito Foto: Arquivo pessoal

O reitor trabalha agora pela construção de Museu da História do Negro em São Paulo. Depois da concordância do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), o museu vai ocupar a antiga sede do Centro Paula Souza, patrimônio público construído no século 19, tombado e localizado nas proximidades da Estação de Metrô Tiradentes, no Bom Retiro, região central.

Os recursos para restauração e manutenção do imóvel ficam sob a responsabilidade da Sociedade Afrobrasileira de Desenvolvimento Sócio Cultural (Afrobras), do qual o professor é presidente do Conselho de Fundadores.

“O órgão estuda, técnica e juridicamente, a elaboração de uma proposta que permita o uso do prédio para instalação do Museu da História do Negro, um importante acervo cultural e histórico para o Estado”, informou o Centro Paula Souza.

Mesmo ocupado com a atuação em tantas áreas, Vicente diz que a poesia nunca ficou de lado. O professor conta que ainda se aventura na ficção (prometeu revirar seu baú e depois mandar uns versos para a reportagem).

“Essa veia poética sempre esteve em mim. De vez em quando ainda sai algo. A poesia é uma forma mais elaborada, de passar sua mensagem. Não só sobre sentimentos, mas sobre a vida.”

* Este conteúdo foi produzido em parceria com a Universidade Zumbi dos Palmares

O menino José Vicente não via muitas opções quando olhava para o horizonte do Morro do Querosene, na periferia de Marília, interior de São Paulo. O caminho normal da vida era ser boia-fria como os pais, colhendo café ou laranja e cortando cana. Mas não bem era isso que queria.

O caçula de seis irmãos desejava mesmo ser jogador de futebol, outro lugar possível para pretos, pobres e periféricos. O ponteiro canhoto habilidoso ensaiou uma carreira promissora no Marília Atlético Clube, ganhou o apelido de Cafuringa, referência a um jogador das antigas, mas ele não tinha dinheiro para esperar que a salvação viesse de um olheiro.

José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, trabalha pela construção de um museu da memória negra em São Paulo Foto: Alex Silva/Estadão

Descobriu que era um bom driblador também com as palavras, com poesias e letras de música. Era tão habilidoso que foi o 2º colocado no Festival Estadual da Música no final dos anos 1970, concurso com apresentação do ex-locutor Osmar Santos – ele se lembra até hoje - e entrega do troféu pelo cantor Fagner. Mas a mãe, dona Isabel, falou que poesia não enchia barriga de ninguém.

Foi nessa época que a Polícia Militar de São Paulo abriu concurso público. Nunca foi seu sonho, mas o salário de soldado era dez vezes maior que o de um boia-fria. Além disso, ele “podia colocar o revólver na cinta e falar grosso”. Foram cinco anos nas baratinhas, os antigos veículos militares, trabalhados em paralelo ao curso de Direito em Guarulhos, na região metropolitana. Quando terminou a faculdade, pediu baixa na PM.

Como advogado criminalista nos anos 1990, defendeu jovens negros e começou a lutar por bolsas de estudos. O projeto cresceu para um cursinho preparatório e hoje se transformou em uma universidade pioneira voltada à inclusão racial. Desde 2003, a Zumbi dos Palmares já formou cerca de 5 mil jovens, a maioria negros. Em parceria com o Estadão, a instituição também terá um curso para formação em Jornalismo.

Foi assim que Cafuringa virou o reitor José Vicente, hoje com 63 anos. Mas a maneira como pensa o menino preto da periferia de Marília que se tornou um dos líderes antirracistas mais conhecidos do País merece ir além do resumo.

Combate pragmático ao racismo

Nos últimos anos, o professor foi um dos pioneiros do movimento “Cotas sim”, sobre a adoção de ações afirmativas no Brasil, em particular no ensino superior público. Esse movimento despertou a atenção de muita gente para o tema racial.

Outra ação importante, a adoção do feriado estadual em São Paulo para a Consciência Negra, neste dia 20, foi outra bandeira que ergueu anos atrás. Até uma rua próxima à universidade passou a receber o nome do próprio líder histórico do quilombo de Palmares, em Alagoas.

Diante dessas medidas práticas, que mexem no cotidiano dos negros, o Estadão pergunta se ele prefere uma luta antirracista mais pragmática e objetiva. “Precisamos debater, reivindicar e denunciar. Mas precisamos de foco, direção e objetividade. Se não, a gente vai fazer um bom debate, mas não consegue tornar real nenhuma das ações que o debate estrutura. Sempre tivemos essa preocupação: a da ação direta”.

José Vicente, quando ainda pertencia à Polícia Militar, e sua mãe, Isabel Lopes Foto: Arquivo pessoal

Mesmo com esses avanços, o reitor mostra cautela. “Estamos avançando, mas ainda muito lentamente e superficialmente na questão racial. É um momento enriquecedor e oportuno, mas a presença do negro ainda é limitada nos espaços de decisão”.

Vicente fica com um pé atrás porque ainda é discriminado diariamente. Quando ele estaciona sua Mercedes preta num hotel de luxo para uma palestra, os funcionários pedem para ele ir mais adiante, abrir espaço para a chefia, como se fosse um motorista esperar alguém. No momento em que entra na sala de reuniões, ele conta que sente os olhares de estranhamento, como se estivesse na sala errada.

Na saída, os participantes do próprio evento entregam a chave do carro como se ele fosse manobrista. Não há demérito algum em ser motorista ou manobrista; a questão é imaginar que negros e negras não possam ocupar outras posições, além dessas. “Na percepção deles, um negro de terno e gravata só pode ir buscar o carro, não pode ser o proprietário. Dinheiro não livra a gente de sofrer racismo”, relata.

Vicente não se descobriu negro na época em que era apenas Cafuringa. Vivia só “a luta diária para defender a subsistência” e entender que o mundo era assim e já estava definido. Também não foi na época da PM. “Isso é curioso. Você vestia a capa de policial e as questões raciais não atravessavam o nosso olhar. Foi no curso de Direito que comecei a perceber, principalmente nas eleições para os diretórios acadêmicos.”

O professor José Vicente foi soldado da Polícia Militar de São Paulo enquanto estudava Direito Foto: Arquivo pessoal

O reitor trabalha agora pela construção de Museu da História do Negro em São Paulo. Depois da concordância do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), o museu vai ocupar a antiga sede do Centro Paula Souza, patrimônio público construído no século 19, tombado e localizado nas proximidades da Estação de Metrô Tiradentes, no Bom Retiro, região central.

Os recursos para restauração e manutenção do imóvel ficam sob a responsabilidade da Sociedade Afrobrasileira de Desenvolvimento Sócio Cultural (Afrobras), do qual o professor é presidente do Conselho de Fundadores.

“O órgão estuda, técnica e juridicamente, a elaboração de uma proposta que permita o uso do prédio para instalação do Museu da História do Negro, um importante acervo cultural e histórico para o Estado”, informou o Centro Paula Souza.

Mesmo ocupado com a atuação em tantas áreas, Vicente diz que a poesia nunca ficou de lado. O professor conta que ainda se aventura na ficção (prometeu revirar seu baú e depois mandar uns versos para a reportagem).

“Essa veia poética sempre esteve em mim. De vez em quando ainda sai algo. A poesia é uma forma mais elaborada, de passar sua mensagem. Não só sobre sentimentos, mas sobre a vida.”

* Este conteúdo foi produzido em parceria com a Universidade Zumbi dos Palmares

O menino José Vicente não via muitas opções quando olhava para o horizonte do Morro do Querosene, na periferia de Marília, interior de São Paulo. O caminho normal da vida era ser boia-fria como os pais, colhendo café ou laranja e cortando cana. Mas não bem era isso que queria.

O caçula de seis irmãos desejava mesmo ser jogador de futebol, outro lugar possível para pretos, pobres e periféricos. O ponteiro canhoto habilidoso ensaiou uma carreira promissora no Marília Atlético Clube, ganhou o apelido de Cafuringa, referência a um jogador das antigas, mas ele não tinha dinheiro para esperar que a salvação viesse de um olheiro.

José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, trabalha pela construção de um museu da memória negra em São Paulo Foto: Alex Silva/Estadão

Descobriu que era um bom driblador também com as palavras, com poesias e letras de música. Era tão habilidoso que foi o 2º colocado no Festival Estadual da Música no final dos anos 1970, concurso com apresentação do ex-locutor Osmar Santos – ele se lembra até hoje - e entrega do troféu pelo cantor Fagner. Mas a mãe, dona Isabel, falou que poesia não enchia barriga de ninguém.

Foi nessa época que a Polícia Militar de São Paulo abriu concurso público. Nunca foi seu sonho, mas o salário de soldado era dez vezes maior que o de um boia-fria. Além disso, ele “podia colocar o revólver na cinta e falar grosso”. Foram cinco anos nas baratinhas, os antigos veículos militares, trabalhados em paralelo ao curso de Direito em Guarulhos, na região metropolitana. Quando terminou a faculdade, pediu baixa na PM.

Como advogado criminalista nos anos 1990, defendeu jovens negros e começou a lutar por bolsas de estudos. O projeto cresceu para um cursinho preparatório e hoje se transformou em uma universidade pioneira voltada à inclusão racial. Desde 2003, a Zumbi dos Palmares já formou cerca de 5 mil jovens, a maioria negros. Em parceria com o Estadão, a instituição também terá um curso para formação em Jornalismo.

Foi assim que Cafuringa virou o reitor José Vicente, hoje com 63 anos. Mas a maneira como pensa o menino preto da periferia de Marília que se tornou um dos líderes antirracistas mais conhecidos do País merece ir além do resumo.

Combate pragmático ao racismo

Nos últimos anos, o professor foi um dos pioneiros do movimento “Cotas sim”, sobre a adoção de ações afirmativas no Brasil, em particular no ensino superior público. Esse movimento despertou a atenção de muita gente para o tema racial.

Outra ação importante, a adoção do feriado estadual em São Paulo para a Consciência Negra, neste dia 20, foi outra bandeira que ergueu anos atrás. Até uma rua próxima à universidade passou a receber o nome do próprio líder histórico do quilombo de Palmares, em Alagoas.

Diante dessas medidas práticas, que mexem no cotidiano dos negros, o Estadão pergunta se ele prefere uma luta antirracista mais pragmática e objetiva. “Precisamos debater, reivindicar e denunciar. Mas precisamos de foco, direção e objetividade. Se não, a gente vai fazer um bom debate, mas não consegue tornar real nenhuma das ações que o debate estrutura. Sempre tivemos essa preocupação: a da ação direta”.

José Vicente, quando ainda pertencia à Polícia Militar, e sua mãe, Isabel Lopes Foto: Arquivo pessoal

Mesmo com esses avanços, o reitor mostra cautela. “Estamos avançando, mas ainda muito lentamente e superficialmente na questão racial. É um momento enriquecedor e oportuno, mas a presença do negro ainda é limitada nos espaços de decisão”.

Vicente fica com um pé atrás porque ainda é discriminado diariamente. Quando ele estaciona sua Mercedes preta num hotel de luxo para uma palestra, os funcionários pedem para ele ir mais adiante, abrir espaço para a chefia, como se fosse um motorista esperar alguém. No momento em que entra na sala de reuniões, ele conta que sente os olhares de estranhamento, como se estivesse na sala errada.

Na saída, os participantes do próprio evento entregam a chave do carro como se ele fosse manobrista. Não há demérito algum em ser motorista ou manobrista; a questão é imaginar que negros e negras não possam ocupar outras posições, além dessas. “Na percepção deles, um negro de terno e gravata só pode ir buscar o carro, não pode ser o proprietário. Dinheiro não livra a gente de sofrer racismo”, relata.

Vicente não se descobriu negro na época em que era apenas Cafuringa. Vivia só “a luta diária para defender a subsistência” e entender que o mundo era assim e já estava definido. Também não foi na época da PM. “Isso é curioso. Você vestia a capa de policial e as questões raciais não atravessavam o nosso olhar. Foi no curso de Direito que comecei a perceber, principalmente nas eleições para os diretórios acadêmicos.”

O professor José Vicente foi soldado da Polícia Militar de São Paulo enquanto estudava Direito Foto: Arquivo pessoal

O reitor trabalha agora pela construção de Museu da História do Negro em São Paulo. Depois da concordância do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), o museu vai ocupar a antiga sede do Centro Paula Souza, patrimônio público construído no século 19, tombado e localizado nas proximidades da Estação de Metrô Tiradentes, no Bom Retiro, região central.

Os recursos para restauração e manutenção do imóvel ficam sob a responsabilidade da Sociedade Afrobrasileira de Desenvolvimento Sócio Cultural (Afrobras), do qual o professor é presidente do Conselho de Fundadores.

“O órgão estuda, técnica e juridicamente, a elaboração de uma proposta que permita o uso do prédio para instalação do Museu da História do Negro, um importante acervo cultural e histórico para o Estado”, informou o Centro Paula Souza.

Mesmo ocupado com a atuação em tantas áreas, Vicente diz que a poesia nunca ficou de lado. O professor conta que ainda se aventura na ficção (prometeu revirar seu baú e depois mandar uns versos para a reportagem).

“Essa veia poética sempre esteve em mim. De vez em quando ainda sai algo. A poesia é uma forma mais elaborada, de passar sua mensagem. Não só sobre sentimentos, mas sobre a vida.”

* Este conteúdo foi produzido em parceria com a Universidade Zumbi dos Palmares

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.