Questões do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) deste ano que foram criticadas por retratar o agronegócio de forma negativa levantam o debate sobre como o tema aparece em salas de aula. Para especialistas ouvidos pelo Estadão, as perguntas podem refletir a falta de informação sobre a dimensão econômica da agricultura, principal responsável pelo crescimento do PIB brasileiro nos últimos anos. Também revelam a polarização política, que estigmatiza tanto o setor do agro quanto o pequeno produtor. Por outro lado, expõem a dificuldade de tratar temas socioambientais de forma crítica, necessidade reforçada pela crise climática, mas sem generalizações e preconceitos.
No 1º dia do Enem, um dos textos dizia que, no Cerrado, o “conhecimento local” está subordinado “à lógica do agronegócio” e o “capital impõe conhecimentos biotecnológicos”, com efeitos negativos à população do campo. A pergunta foi criticada por economistas e a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) pediu a anulação dessa e de mais duas questões, que tratam da nova corrida espacial financiada por bilionários e da produção de soja e sua consequência para o desmate da Amazônia.
A anulação foi descartada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), órgão do Ministério da Educação (MEC) responsável pelo exame. O presidente do Inep, Manual Palácios, negou o pedido de anulação viés “ideológico”, disse que os itens foram elaborados por professores externos ao governo e selecionados em gestões passadas.
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“O aluno precisa valorizar a agricultura familiar, mas também a venda do café na Bolsa de Valores. O agro é tudo isso”, diz Claudia Passador, professora e pesquisadora de políticas públicas em educação básica da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP em Ribeirão Preto. Entre as soluções para evitar estereótipos e reducionismos, sugeridas por especialistas, estão aprimorar a formação docente, aprofundar o conhecimento de educadores sobre o mundo rural e diversificar as fontes de informação.
“A escola no Brasil fala muito da realidade urbana, não importa onde, enquanto o País é feito de maioria de municípios que vivem da agricultura, de grandes produtores ou dos pequenos”, diz ela, responsável pela disciplina de desenvolvimento regional e agronegócio. Em sua opinião, as crianças precisam discutir o desmatamento provocado pelo setor, mas também o agronegócio tecnológico, preocupado com o ambiente, e a vocação agrícola da cidade onde moram.
No Enem deste domingo, as questões de Química e Física voltaram a abordar temas ligados ao setor agrícola. Mas desta vez, de acordo com especialistas, as perguntas não traziam críticas diretas ao agro.
O Enem chamou a atenção para o tema, mas isso já era motivo de polêmica. Uma das iniciativas do setor foi a criação recente de uma associação, a De Olho no Material Escolar, depois de mães ligadas à área observarem os livros dos filhos na pandemia. O grupo encomendou este ano à Fundação Instituto de Administração (FIA), ligada à USP, estudo que analisasse o conteúdo de materiais didáticos da educação básica.
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Os pesquisadores encontraram 345 citações ao agro em 94 livros didáticos analisados. Dessas, 126 foram classificadas como neutras, 123 como negativas, 52 como positivas. Houve ainda 37 exercícios ou textos das obras entendidos como fortemente negativos ao setor e 7, como fortemente positivos.
Segundo a presidente da associação, Letícia Jacinto, o resultado preocupa. “Os autores de livros são bombardeados por mensagens de preconceito e não vão a fundo no conhecimento. Ninguém é obrigado a conhecer a pujança do Cerrado, mas é preciso usar fontes científicas para falar”, diz.
Entre as atividades nos livros destacadas pelo estudo como negativas estão questões que falam de trabalho escravo e agrotóxicos. Na associação, foi criada a Agroteca, biblioteca virtual com materiais sobre o assunto. Eles ressaltam a alta participação do setor no PIB do País (27%) e tem vídeos que dizem que a pecuária “não é culpada pelas mudanças climáticas e, sim, faz parte da solução”.
Há ainda textos sobre adubação verde, startups do agro, administração da empresa rural e palestras sobre “desafios e oportunidades para o desenvolvimento sustentável relacionados ao uso da água na agricultura”.
Debate deve ser aberto, mas sem censura, diz geógrafo
Responsável pelo Laboratório de Ensino e Material Didático de Geografia na USP, Eduardo Girotto afirma que a questão agrária é um tema clássico nos currículos da disciplina. E diz que os materiais e a formação dos professores hoje “têm abordagens das mais diferentes possíveis, com leitura mais enviesada ao agronegócio ou à agricultura camponesa”.
“A Geografia tem uma história de perspectiva mais crítica, com certo privilégio das leituras favoráveis a movimentos sociais, mas já passamos do momento da demonização do agro. Hoje se entende a sua multiplicidade e as práticas conservacionistas”, afirma.
Ele dá como exemplos eventos na USP para formar futuros professores que chamam tanto representantes do agronegócio como pequenos produtores. Para ele, o item do Enem sobre o Cerrado teve “pouco cuidado na elaboração”. “Poderia ser mais focado no conteúdo e ter usado estudos novos, que trabalham com a pluralidade. Construir um aluno crítico não significa pensar uma coisa ou outra, e sim saber se posicionar frente ao mundo de modo autônomo”, ressalta.
Por outro lado, Girotto teme que as críticas levem à censura e fortaleçam movimentos como o Escola sem Partido, que defendem não tratar temas como gênero e sexualidade na escola. “Desconfio de uma estratégia de ter incidência sobre o currículo escolar, algo quase ufanista, que diz que o agronegócio é a salvação e fazer qualquer crítica é jogar contra o País. Isso é um equívoco.”
Currículo prevê pluralidade na análise das relações no campo
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada em 2017 e que dá as diretrizes do que deve ser ensinado nas escolas, menciona que alunos do ensino médio devem saber analisar os “atores sociais” e “as relações de poder na cidade e no campo”. E diz que esses atores “são produtores de diferentes territorialidades nas quais se desenvolvem diferentes formas de negociação e conflito, igualdade e desigualdade, inclusão e exclusão”.
Prevê ainda que o aluno deve “analisar processos políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais”, a partir “da pluralidade de procedimentos epistemológicos, científicos e tecnológicos, de modo a compreender e posicionar-se criticamente em relação a eles”.
Em artigo no Estadão, a presidente do Instituto Singularidades, Claudia Costin, aponta a necessidade de uma formação docente em que a teoria não se sobreponha à prática e estimule o debate entre diferentes. Segundo ela, ex-diretora de Educação do Banco Mundial, “há de se vencer os preconceitos contra o próprio setor produtivo e contra uma educação que prepare para o mundo do trabalho”.
A De Olho no Material Escolar leva educadores e estudantes para conhecer fazendas e agroindústrias. “Nossa preocupação é ajudar que se tenha uma visão correta do agronegócio. Ao falar de defensivos agrícolas, que se entenda as benesses e males do produto”, diz João Demarchi, que integra o grupo e é pesquisador científico do Instituto de Zootecnia, da Secretaria de Agricultura paulista.
A entidade também percorre editoras de livros didáticos para conversar com autores. Procurada, a Associação Brasileira de Livros e Conteúdos Educacionais (Abrelivros) não quis comentar o estudo da entidade sobre as obras e disse que as questões são específicas de cada editora.
Na prática, um desafio para educadores é avaliar as fontes e materiais para não propagar conteúdo sem evidências científicas sólidas, com negacionismo climático, nem privilegiar materiais enviesados ou ultrapassados. Ou, em certos casos, cuidar para que haja equilíbrio nas visões de mundo oferecidas ao aluno, de modo que ele tenha autonomia para tirar suas conclusões.
História da agricultura no País e reflexo na sala de aula
Apesar de avaliar a questão do Enem sobre o Cerrado como “complexa e inadequada” para um aluno de ensino médio, Claudia Passador diz que é preciso considerar também a história do País. “Ao longo dos séculos, desde a colonização, o que é retratado como agricultura é monocultura, cana, café e, mais recentemente, soja”, enumera. “A pequena produção foi sempre negligenciada em políticas públicas, pouco reconhecida. Só mudou a partir dos anos 1990, com o governo Fernando Henrique e os programas de incentivo. Isso se reflete na educação.”
Segundo ela, aí os materiais didáticos passaram a discutir o desmate, a agricultura familiar, a concentração de renda que vem com a monocultura. “Não se falava de agricultura nas escolas. Quando se começou a discutir, veio essa visão crítica, que incomoda o setor, mas também é importante”, diz.
“O problema é que tudo no Brasil virou essa coisa polarizada”, acrescenta a especialista. “Como se fosse de um lado o agronegócio e, do outro, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). A questão da agricultura no Brasil é muito mais sofisticada.”