Em 2023, o Sistema de Seleção Unificada (Sisu) completa 13 anos de uma trajetória de ampliação do acesso ao ensino superior público no Brasil junto ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), de 1998, e a política de cotas raciais e sociais, de 2012. Enquanto em 2002 ingressavam em cursos de graduação nas universidades federais 148,8 mil alunos, em 2010, ano de criação do sistema, esse número chegou a 302,3 mil e, em 2022, foram 1,2 milhões, segundo dados do Ministério da Educação (MEC).
O perfil dos alunos também mudou: se a faixa dos mais ricos correspondia a 75% dos alunos há 30 anos, hoje, ela está em 40%, enquanto 15% correspondem à faixa mais pobre. A parcial unificação do exame de porta de entrada para as universidades públicas, atrelada ao sistema que mostra todas as vagas disponíveis em instituições públicas no País e as notas de corte de cada curso, expandiram o horizonte de estudantes como Ana Clara Oliveira, de 26 anos, que saiu da capital paulista para cursar produção cultural na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Rio das Ostras, no Rio de Janeiro.
Ela conta que sua família não tinha condições de ajudá-la a pagar uma faculdade particular e, quando disse a seus colegas de ensino médio que queria fazer uma universidade federal, em 2014, foi ridicularizada. “As pessoas achavam que eu estava maluca. Ninguém ali [região do Jardim Ângela e Capão Redondo, em São Paulo, uma das mais pobres da cidade] sequer pensava em fazer faculdade, quanto mais em uma federal.”
“Eu sabia que só conseguiria estudar se fosse em uma faculdade de graça e cheguei a fazer o vestibular da USP, mas achei muito difícil para mim, que estudei a vida toda em escolas públicas da periferia de São Paulo. Eu mal conseguia compreender as questões da Fuvest, já o Enem era relativamente mais tranquilo”, diz.
Além da dificuldade de ingresso, se fizesse USP, Ana teria que levar horas se deslocando da onde morava com a mãe, no extremo sul de São Paulo, até a USP, que fica no Butantã, região oeste. “Na UFF, eu poderia escolher entre Niterói e Rio das Ostras. Escolhi a segunda porque tinha um custo de vida menor e me mudei para lá”, conta. “Se não fosse pelo Enem e pelo Sisu, eu jamais teria acesso à UFF, porque eu não tinha condições de me deslocar até o Rio só para fazer o vestibular, se esse fosse o caso.”
Hoje, graduada, Ana não trabalha na sua área de formação, mas é concursada pública e entende que só teve acesso a esse tipo de oportunidade porque fez um curso superior, o que expandiu seus conhecimentos sobre editais e a fez enxergar possibilidades além das que ela conhecia quando era uma adolescente em São Paulo. Ela continua vivendo em Rio das Ostras.
Leque de possibilidades
Assim como Ana, Jessica Maria da Silva Castro, de 26 anos, também saiu da capital de São Paulo para estudar após ser aprovada pelo Sisu - seguindo a tendência descentralizadora que o sistema propõe. No entanto, foi para um destino geograficamente oposto: Pelotas, no Rio Grande do Sul, onde cursou hotelaria na Universidade Federal de Pelotas (UFPEL).
Ela conta que sua família também não tinha condições financeiras de ajudá-la a pagar por uma universidade particular. O Sisu abriu, então, um leque de oportunidades acessíveis. “Escolhi Pelotas porque o custo de vida lá era menor que em Florianópolis, minha outra opção”, conta. “O Sisu mudou o meu endereço e a minha vida.”
Esse maior número de possibilidades também ajudou Giovanna Arcuri, de 20 anos, e Lucca Marcon Losso, de 19 anos. Eles queriam medicina, o curso mais concorrido do País, e conseguiram suas vagas por meio do Sisu. Giovanna saiu de São Paulo para estudar na Universidade de Pernambuco (UPE), no Recife. Já Lucca realizou o seu sonho de ingressar na USP por meio do sistema.
“Eu tinha ficado muito triste por não ter passado na USP, que era o que eu mais queria. A Fuvest me derrubou e o Sisu foi uma segunda porta que se abriu. Mal acreditei quando passei”, conta Lucca. “Eu percebo também que a adesão da USP ao Enem como um dos métodos de entrada fez com que mais pessoas de outros Estados viessem para cá. Na minha sala eu tenho colegas de todos os cantos do Brasil”, diz.
Descentralização e experiência fora de casa
Para Giovanna, além da oportunidade de cursar Medicina, que era o seu sonho, o Sisu a fez conhecer novas pessoas, realidades, lugares e, consequentemente, possibilidades. “Mudei de estado, expandi meus horizontes e aprendi a me virar sozinha. Se eu tivesse ficado em São Paulo, na casa da minha mãe, eu não teria vivido tantas experiências e amadurecido tanto quanto estando no Recife”, diz.
Todos os estudantes escutados pela reportagem concordam: a experiência em uma universidade pública, em especial quando ela exige uma mudança de Estado, é rica não só para o âmbito profissional, mas também pessoal. E muitos, como Ana Clara, acabam não retornando para a sua cidade de origem, o que contribui para espalhar profissionais bem formados por todo o País.
“Em relação à Medicina, por exemplo, a gente sabe que tem uma concentração de médicos em São Paulo e nos grandes centros, enquanto o interior carece de profissionais. Eu, por exemplo, ainda estou no Recife, que é uma capital, mas conheço muita gente que vai para o interior e depois acaba trabalhando lá mesmo”, diz Giovanna, que hoje já não sabe se volta um dia para São Paulo a não ser para visitar a família.
Desafios na permanência
Apesar da inegável expansão no acesso ao ensino superior público promovido pelo Enem e pelo Sisu, a permanência ainda é um desafio para quem vem de família baixa renda. Ana Clara conta que não conseguiu bolsa de auxílio permanência porque eram exigidos uma série de documentos e burocracias às quais ela não tinha acesso.
“Me diziam que eu tinha que - entre um monte de outras exigências - mostrar um documento que eu conseguiria em Macaé (cidade do Rio de Janeiro que fica a 29km de Rio das Ostras), mas eu não tinha como ir até lá porque não tinha dinheiro nem para pegar o ônibus. Eu sobrevivi fazendo bicos e me virando com os R$ 50 que a minha mãe me mandava por semana, da aposentadoria dela”, conta Ana Clara.
Jessica também enfrentou dificuldades e esperou por quase um ano até o seu auxílio moradia ser liberado. “Eu passei alguns perrengues porque a casa do estudante (moradia estudantil) estava passando por reformas e eu tive que ficar em um outro alojamento, que estava superlotado, mas fomos assaltados próximo de lá”, conta.
“Não tinha estrutura suficiente e eu cheguei a dividir quarto com 6 ou 7 pessoas até conseguir o auxílio e poder alugar um lugar”, diz. Segundo ela, alguns de seus colegas acabaram desistindo do curso por não terem condições financeiras de se manterem na cidade - esse é um dos principais motivos para a evasão do ensino superior público.