Raiane Assumpção, à frente da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), é a primeira reitora da instituição que não vem da área de saúde. Graduada em Ciências Sociais, ela afirma que sua chegada ao cargo simboliza a diversificação da Unifesp, que tem origem na Escola Paulista de Medicina e completa 30 anos no fim de 2024.
Segundo ela, a gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem dedicado atenção “muito diferenciada” às universidades federais. Isso, porém, ainda não se reverteu em mais recursos do orçamento para as instituições, pondera a professora.
“Temos esse espaço aberto para o diálogo. No entanto, o orçamento para o funcionamento das universidades, para as obras e para a permanência estudantil está muito aquém do que é a nossa existência mínima enquanto universidade”, disse ela, em entrevista ao Estadão.
Raiane prevê dificuldade na manutenção da capacidade instalada da Unifesp, em meio a críticas dos estudantes de parte das unidades. A reitora fala ainda sobre as perspectivas para o Hospital São Paulo, unidade de referência no atendimento em saúde na capital paulista, a política de cotas, que foi aprimorada após discussão no Congresso no ano passado, e o papel da universidade em relação às demandas dos jovens.
A seguir, leia os principais trechos da entrevista.
Nas primeiras gestões do presidente Lula, a Unifesp cresceu em número de câmpus e cursos. Quais foram os erros e acertos dessa expansão?
A Unifesp cresceu em número de estudantes, câmpus e cursos, mas não recebeu, em termos proporcionais, o orçamento e o número de profissionais, docentes e técnicos (necessários) para fazer com que essa expansão fosse totalmente consolidada. Também não foi possível completar a implantação de todos os câmpus que foram criados no âmbito dessa política. Mas há a compreensão de que foi fundamental à Unifesp fazer parte do Reuni (programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), passar por essa expansão. Foi o que permitiu que se tornasse uma universidade de fato, com todas as áreas do conhecimento, ampliando a entrada também de população mais diversa, tendo constituído programas de excelência no âmbito da pós-graduação e da pesquisa em todas as áreas.
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Alguns câmpus, como o de Diadema, não tiveram as obras concluídas até hoje e recebem reclamações constantes de estudantes sobre a infraestrutura do prédio e localização. Como a universidade pretende resolver estes problemas?
Em relação à infraestrutura, considero importante que a questão seja abordada trazendo o contexto e o processo do Reuni. No período de vigência, nossa universidade passou a ter os diversos câmpus e houve definição da construção de prédios próprios nesses câmpus. Mas, de fato, há apenas a construção de uma das unidades do câmpus Baixada Santista. A construção dos prédios próprios em Guarulhos, São José dos Campos e o início das obras de uma das unidades em Diadema e do prédio central de Osasco são realizados em uma fase em que há investimento do governo federal para as obras nas universidades.
A universidade teve a criação de uma unidade em Santos, o Instituto do Mar, para o qual foi adquirida unidade própria, mas que necessita de reforma. As obras em Diadema e em Osasco já encontraram cenário de ausência de recursos via MEC para obras, o que requereu da gestão da universidade a solicitação de apoio de emendas parlamentares, tanto individuais como de bancada, para que essas obras pudessem ter continuidade – mesmo que em ritmo bem mais lento, mas que não parassem. Conseguimos no ano de 2023 recursos para a conclusão da farmácia-escola e o prédio central de Osasco, que são as duas obras que serão concluídas até o início do 1º semestre de 2024.
O câmpus São Paulo, o mais antigo, também exige inúmeras reformas para que adequações desses prédios, seja em relação à acessibilidade, como em manutenção mais efetiva no combate a riscos. Isso é consequência de praticamente seis anos de ausência de recursos para obras nas universidades públicas. O recurso de capital, que é o utilizado para fazer manutenções e obras, teve redução de 86%, se aplicada a deflação em relação a 2014. Não havendo recurso, passamos a ter dificuldade tanto de dar continuidade às obras, como de fazer a manutenção daquilo que existe.
Sobre o câmpus Diadema, existe uma questão do próprio processo de gestão local, que foi a opção feita logo no início das atividades, de utilizar sedes que eram fruto de parcerias com a prefeitura. Então, inicia-se uma obra própria apenas no segundo governo Lula, além do fato de que o terreno precisava de atuação para garantir os requisitos ambientais para a sua construção. Isso também faz com que a obra fique mais cara e tenha dificuldade de término. Mas é importante ressaltar que houve a entrega de um prédio próprio para as atividades didáticas em 2020 e agora vamos concluir a farmácia-escola.
Há planos de expansão da Unifesp?
As universidades federais têm feito diálogos com o MEC e a compreensão é de que é necessário, neste momento, ter a consolidação do que existe na nossa universidade. É necessário que tenhamos a consolidação de todas as unidades e câmpus existentes, com a efetivação e ocupação da capacidade máxima da instituição. Neste sentido, tudo que for criado será na capacidade instalada, considerando fundamental termos ensino de graduação, de pós, pesquisa, extensão e inovação nesses espaços.
Quais são os principais desafios para a Unifesp e das federais como um todo? O que a reitoria tem feito sobre isso e o que depende do governo federal?
O principal desafio é ter um recurso que garanta a existência da Unifesp no tamanho e capacidade que possui. Para 2024, o recurso para as federais referente ao capital será por meio do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), mas não foi anunciado oficialmente ainda qual será o valor desse recurso para cada universidade. O recurso virá alocado para determinadas obras de forma específica, então, a Unifesp seguirá com dificuldade de fazer a manutenção de toda a sua capacidade instalada.
Com relação ao custeio, fizemos atuação junto à Andifes, a Associação Nacional das Instituições Públicas Federais de Ensino Superior, no Congresso, solicitando recomposição de R$ 2,5 bilhões nos recursos discricionários, para que o orçamento das universidades retorne ao patamar do orçamento de 2017 corrigido pelo IPCA (índice da inflação). Porém, com a aprovação do orçamento (em 22 de dezembro), não foi atribuído este valor, o que deixa um questionamento grande de como é que vamos fazer a gestão das universidades com o tamanho e os desafios que elas têm em 2024, com recurso muito aquém do necessário para o funcionamento.
Com relação ao PNAES, o programa nacional para a assistência estudantil, houve aumento de recurso. No entanto, o que as universidades têm colocado é que cada vez mais há estudantes com demanda socioeconômica importante para a permanência. O que estamos recebendo de PNAES não é o suficiente para dar subsídio para atendê-los de forma ampla, já que a nossa universidade está presente em municípios nos quais o custo de vida é alto, e não temos moradia estudantil construída. Sendo assim, subsidiamos os estudantes com auxílio-moradia para que paguem o aluguel.
As federais recebem atenção necessária do presidente Lula? Como tem sido o diálogo com o MEC? Há sensibilidade para a demanda de investimentos na pesquisa?
As universidades têm recebido atenção muito diferenciada a partir do momento em que inicia o governo Lula. Os reitores e reitoras estiveram desde o momento da posse, depois tiveram reuniões em que foram convidados para estarem presentes com o próprio presidente. Em relação ao MEC, especificamente o ministro (Camilo Santana), a Secretaria de Ensino Superior (Sesu), e a própria Difes, diretoria que acompanha as federais, têm atendido agendas, participado de reuniões e feito presença nas reuniões do colegiado pleno da Andifes.
Há diálogo aberto e efetivo com essas instâncias. No entanto, isso ainda não foi revertido em orçamento e planejamento conjunto das prioridades. Esse diálogo não se efetivou do ponto de vista de ação concreta para 2024. Há também dificuldade por conta do próprio debate no Congresso. Temos esse espaço aberto para o diálogo, no entanto, o orçamento para o funcionamento das universidades, para as obras e a permanência estudantil, está muito aquém do que é a nossa existência mínima.
Com relação ao investimento em pesquisa, a universidade recebe recursos por meio de editais e projetos específicos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), e projetos financiados por outros ministérios. Há previsão, em 2024, de ampliação de chamadas e editais do MCTI, como também a liberação do Fundo de Ciência e Tecnologia, medida importante para o funcionamento das pesquisas nas universidades. E no caso das universidades públicas federais de São Paulo, há a Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo, a Fapesp, que tem sido uma instituição importante para a realização das pesquisas no Estado.
Sobre as obras previstas no PAC, o anúncio que tivemos é de que o recurso será voltado para a implantação do câmpus Zona Leste. Em 2023, recebemos recursos para as obras específicas de Osasco (R$ 18 milhões), e de Diadema (R$ 2,6 milhões). Esses recursos vieram de forma complementar, fora do previsto como orçamento, especificamente para o término das obras em fase de finalização, como política estabelecida pelo MEC. Quando o governo assumiu, foi feito levantamento das obras que tinham possibilidade de conclusão no prazo de um ano. Para nossa universidade, foi enviado o recurso específico para essas duas obras.
A infraestrutura do Hospital São Paulo vem sendo criticada há anos por pacientes e funcionários. Há previsão de reformas e ampliação?
É importante dizer que o prédio do Hospital São Paulo pertence à Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) e há acordo de cooperação entre a Unifesp e a SPDM para a gestão compartilhada do funcionamento do hospital. Nele, atuam cerca de 1.985 servidores da universidade, além de uma quantidade quase que equivalente de celetistas, funcionários da SPDM. A universidade atua fazendo a gestão dos servidores que ali estão e acompanhando o processo acadêmico – ensino, pesquisa, extensão e assistência.
O Hospital São Paulo é ude referência nacional e internacional, extremamente especializado e que atende casos de extrema gravidade. No entanto, desde 2017 não recebe mais o recurso do Rehuf (Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais), criado em 2010, coordenado pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh). O governo, à época, entendeu que o Hospital São Paulo não era um hospital da universidade, portanto não deveria receber o recurso.
Houve ação do Ministério Público Federal em defesa do hospital e da população que requer o atendimento. Essa ação foi procedente em 1ª instância e depois o governo federal recorreu. Em 2023, houve tentativa de conciliação entre as partes, tendo como requisito estabelecido por parte do governo federal o atendimento do hospital ser 100% SUS – atualmente o HSP atende, conforme informação da superintendência, 97% dos casos pelo SUS –, o que não permitiu o êxito na ação. Aguarda-se o julgamento em 2ª instância.
Desde a interrupção do Rehuf, o Hospital São Paulo recebe recursos apenas por meio dos procedimentos realizados. Existe uma contratualização de procedimentos com o governo estadual. Toda manutenção ou obra requer recursos específicos, sejam de emendas parlamentares ou de programas específicos do governo federal.
Há, sim, previsão de um novo hospital no PAC 3. Foi anunciado pelo governo federal a possibilidade da construção de um novo hospital para a Unifesp, considerando que não temos um hospital federal próprio. O Hospital São Paulo, historicamente, foi e é o hospital universitário onde a academia da Unifesp realiza as suas ações. A possibilidade de um hospital para a Unifesp decorre de diagnóstico do Ministério da Saúde, reconhecendo que a zona sul da capital é um território em que a equivalência de população e número de leitos é um dos menores do País.
Faz sentido ter um hospital federal, universitário, 100% SUS na região. E a Unifesp, por toda sua tradição e excelência na saúde, é a universidade que teria a possibilidade de assumir esta unidade.
Foi assinado um protocolo de intenções para a realização de estudo (já em curso) do perfil do novo hospital. Ele deverá ser construído em Santo Amaro, próximo ao terminal Santo Amaro (zona sul), local onde a Unifesp tem um terreno doado pela Prefeitura, que tem exigência de contrapartida, que, no caso, seria a existência do hospital.
Qual é sua avaliação sobre a implementação das cotas para alunos na universidade?
As cotas para alunos de graduação na Unifesp foram implementadas há mais de uma década e desde o ano passado estamos implementando no âmbito da pós. Estamos discutindo a metodologia para a implantação das cotas na residência multiprofissional e na residência médica, que são as duas maiores do País. Portanto, consideramos este passo como bastante importante.
Os dados demonstram que, além de possibilitar o ingresso de uma população que antes não tinha acesso à universidade, houve a manutenção da excelência na produção da universidade, tornando-a mais diversa, já que surgem diferentes questionamentos, proposições e temas de pesquisa. Isso faz com que tenhamos a expressão da sociedade brasileira dentro da universidade.
Com relação às ações afirmativas na contratação de docentes, a universidade já possuía, seguindo a legislação, as cotas implementadas para os concursos de cargos de técnicos, mas não para docentes. Os concursos para docentes, em geral, são feitos por área e por especialidade, geralmente abrindo uma vaga. Então, é necessário usar uma metodologia para conseguir fazer com que as cotas sejam aplicadas. Foi criado um GT (grupo de trabalho) que estudou as diversas metodologias existentes e este ano implementamos as cotas para concurso docente utilizando a metodologia de aglutinação das vagas. Acreditamos que no médio prazo isso fará com que a universidade passe por uma mudança de perfil no quadro de docentes. O que consideramos como muito importante.
Nossa universidade, do ponto de vista de gênero, tem mais de 50% de mulheres docentes, técnicas e estudantes. Com relação à diversidade étnico-racial, temos presença de mais de 50% de estudantes e número expressivo de técnicos, mas a quantidade de docentes que se autodeclaram pretos ou pardos é de menos de 20%. Com as cotas, teremos uma mudança na representação étnico-racial.
Há outro desafio que envolve a população indígena. Temos um número muito pequeno de pessoas que se autodeclaram indígenas, tanto estudantes como técnicos e docentes. Iniciaremos agora em 2024 o curso de graduação Licenciatura Intercultural Indígena, em parceria com o MEC, com a Secretaria de Educação do Estado, e estamos dialogando com lideranças indígenas para a realização de um vestibular específico para 2025.
Quais são os desafios para que a universidade pública esteja mais sintonizada às demandas da sociedade e aos interesses dos jovens?
A universidade é uma instituição de produção do conhecimento e de formação de pessoas, na perspectiva de transformar, primeiro, as pessoas para que transformem a realidade e a sociedade como um todo. E isso se dá de uma forma processual.
A universidade não é o lugar onde você consegue constituir respostas imediatas e a nossa sociedade tem exigido da universidade resposta como se fosse um delivery. A aprendizagem e a pesquisa precisam de acúmulo, o processo de produção do conhecimento se dá a partir de acúmulo teórico, prático e experimentado.
É importante dizer que ter informação não é desenvolver aprendizagem, nem mesmo conhecimento científico. Assim, a universidade pública, além dos desafios orçamentários e de infraestrutura, tem, do ponto de vista acadêmico, o desafio de combinar a construção de processo de conhecimento sólido, de formação sólida, utilizando ferramentas e mecanismos que possam também responder a essa forma mais ágil, a essa velocidade pela qual a sociedade tem passado. Há um desafio de encontrar o ponto que combine essas duas coisas, fazendo com que a formação seja sólida, numa perspectiva crítica, capaz de gerar transformação, inovação e num tempo que é o tempo da sociedade atual.
Com relação à sociedade, como também o interesse dos jovens, temos discutido muito qual é a metodologia capaz de fazer com que haja essa identificação com a formação e os processos de formação das pessoas. Estar com uma conexão direta, desafios concretos, tem feito muito sentido.
A aprendizagem requer sentido, motivação. Os projetos de extensão e de inovação têm feito com que o estudante esteja identificando que aquilo que aprende em sala de aula e tenha ação muito concreta. Isso faz também com que a universidade esteja correspondendo e colocando quais são as respostas possíveis para as demandas que são apresentadas pela sociedade.
Entendemos, também, que a universidade tem de estar extremamente conectada com os movimentos sociais, o setor empresarial, o setor de empregabilidade, fazendo com que os estudantes aprendam a pensar de forma autônoma, com fundamento científico, posição crítica e postura propositiva para encontrar soluções para os desafios do mundo presente.