Estudantes contrários à greve na Universidade de São Paulo (USP), que começou há duas semanas, relatam hostilidades sofridas por colegas que apoiam a paralisação. O movimento foi aprovado em diversas faculdades. Nas assembleias, o apoio ganha por ampla vantagem, mas as votações não costumam reunir a maioria dos alunos das unidades - muitos não se engajam com o centro acadêmico ou dizem ter receio de se manifestar contrários publicamente.
“Tenho medo de ir à faculdade agora. Fui chamada de nazista, fascista, humilhada”, diz uma aluna do 5º ano da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, que concordou em dar entrevista com a condição de que seu nome não fosse publicado. “Eu só queria ter aula.” As lideranças grevistas, por sua vez, têm falado em uma mobilização “justa” e “necessária” e negam agir com violência.
A estudante de 22 anos chorou várias vezes quando conversou com a reportagem e disse tomar remédios para ansiedade desde que foi atacada. Ela conta ter recebido mensagens em redes sociais com agressões. Segundo ela, foi um criado um perfil falso chamado “gasolina_neles” que passou a segui-la, como forma de intimidação. “Eu vou à faculdade à noite, sozinha: quem garante que nada vai acontecer comigo?” As agressões começaram depois que seu nome apareceu entre as assinaturas em uma carta contrária à paralisação.
“A Assembleia organizada não tem força de lei, e a ela não se sobrepõe em hipótese alguma. Podem-se deliberar, por exemplo, paralisações, mas jamais barricadas ou piquetes, pois, estes sim, ferem garantias fundamentais. Não há, pois, qualquer respaldo jurídico que justifique as medidas autoritárias que vêm sendo adotadas pelos grevistas”, diz o texto dos estudantes.
Entradas de várias unidades da USP estão fechadas com barricadas de carteiras e professores, impedidos de passar. Até aulas online, usadas como alternativa para manter as atividades, foram interrompidas. Ao Estadão, o reitor Carlos Gilberto Carlotti Junior disse que não usará a força contra os alunos. “Não tem sentido uma greve prolongada quando as coisas já estão se resolvendo.”
A principal reivindicação dos grevistas é contra o déficit de docentes - disciplinas foram até canceladas por causa da falta de professores. A reitoria liberou 879 novas vagas para contratação, mas os manifestantes cobram aceleração do processo.
A tensão tem aumentado nas universidades. Na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um professor ameaçou um aluno com uma faca. Os estudantes queriam paralisar em apoio à greve da USP e dos trabalhadores do Metrô, da CPTM e da Sabesp. A Polícia Civil e a reitoria vão investigar o caso. Para o psiquiatra Daniel Martins de Barros, colunista do Estadão, a polarização não é nova, mas se acirra em um mundo mais complexo, em que as redes sociais dividem ainda mais as pessoas.
Em vídeos gravados dentro da São Francisco, cartazes dos grevistas - que têm dormido e feito festas dentro da faculdade - mostram dizeres como “Se nem todes (sic) podem, ninguém vai à aula”, em referência a disciplinas canceladas pela falta de professores. Em outro vídeo, um aluno diz, durante a assembleia, que “se tiver professor querendo entrar, vai ter de passar por cima”.
“A grande maioria dos alunos da faculdade não se manifesta por medo de exposição ou hostilização. O centro acadêmico tacha todo mundo que é anti greve de bolsonarista, fascista, racista”, diz Matheus Almeida Camargo, de 23 anos, também aluno da São Francisco, que está no último ano. Ele foi um dos que organizaram um grupo no Whats App contrários à greve, que tem cerca de 100 alunos, e um dos que escreveram a carta. “Muitos do que assinaram pediram depois para retirar o nome por medo”, diz.
Nas últimas assembleias realizadas no Direito, não mais do que 20 alunos levantaram as mãos para votar contra a greve, enquanto mais de 200 aprovaram o movimento. A São Francisco tem 2.460 estudantes de graduação. “Entendemos que não cabe aos alunos decidirem sobre os rumos da faculdade sozinhos, porque ela não é só deles, ainda mais com quórum reduzido”, diz Camargo.
Outro aluno, que também pediu para não ser identificado por medo, disse que foi atacado quando se posicionou contrário à greve por ser evangélico e ter estudado em escola particular. “Disseram que eu não conheço as demandas estudantis. Isso não é verdade, sou a favor de mais professores, das bolsas para permanência. Se querem boicotar a aula, que façam, mas mantenham o direito de quem quer aula.” Ele também diz ter sido chamado de nazista e recebido xingamentos pela sua religião. “Sei que vou ter um tempo difícil na faculdade a partir de agora.”
Nesta terça-feira, 3, a diretoria da São Francisco mandou comunicado aos professores recomendando aulas online entre os dias 4 e 11. “Cumpre esclarecer aos professores que a adoção do formato on line faz-se exclusivamente com o objetivo de impedir eventuais conflitos, que não codizem com ambiente acadêmico”, diz o texto. A direção pede ainda que não haja provas e nem cobrança de frequência nesse período e diz que “seguirá tomando as medidas cabíveis para que a volta presencial de todos à escola aconteça com a maior brevidade possível”.
Centro Acadêmico nega vandalismo e justifica piquetes
O Estadão procurou membros do centro acadêmico do Direito, mas não obteve resposta. Em texto em seu perfil no Instagram, o Centro Acadêmico XI de Agosto diz que os “estudantes não danificaram nada, não obstruíram a passagem da própria diretoria e de todos os funcionários”. Afirmam ainda que os piquetes existem “para garantir que apenas as aulas sejam suspensas” e que “seguem à disposição para o diálogo”. Mais uma rodada de negociação entre grevistas e reitoria está marcada para esta quarta-feira, 4.
Professores da USP também têm se posicionado contrários à greve e discutindo a legitimidade do movimento. O ex-diretor da faculdade e atual ministro do Superior Tribunal Eleitoral, Floriano de Azevedo Marques, publicou texto em que comparou os estudantes que fazem barricadas aos vândalos que invadiram os prédios públicos no 8 de janeiro.
“Não se nega que muitas reivindicações são pertinentes e necessárias. Como também podemos discutir a velocidade birrenta que exigem ver tudo implementado para ontem. Mas a justiça da causa não pode legitimar a violência, a intolerância, a interdição ao diálogo”, escreveu.
Em seu perfil no Instagram, o XI de Agosto disse que Azevedo Marques “mente” e que seu argumento é “fruto de um corporativismo docente covarde”. “Quem se alinha ao bolsonarismo mais uma vez, por ser contra a greve, são vocês, não nós”, diz o texto do centro acadêmico.
Em artigo no Estadão, o professor de Direito Fernando Scaff disse que “estudantes não fazem greve, pois são usuários do serviço público de ensino (...) Quem faz greve é agente econômico, mesmo que seja prestador de serviço público, como os docentes do ensino público e os médicos do SUS, jamais os usuários desses serviços. Usuários podem fazer paralisação, que não é uma greve, a qual tem outra dimensão”. Scaff foi um dos professores impedidos de entrar na São Francisco semana passada pelas barricadas.
A greve de estudantes na USP começou no dia 21, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), e já se estendeu a várias unidades, incluindo as tradicionais Escola Politécnica e a Faculdade de Medicina.
USP perdeu 800 professores em uma década
Como mostrou o Estadão, em uma década, a USP perdeu cerca de 800 professores, após anos sem novas contratações em virtude da crise financeira e da proibição a concursos na pandemia. Em 2022, a reitoria havia autorizado contratar 879 profissionais, de forma escalonada, até 2025, mas adiantou as vagas para este ano após pedidos e pressões.
Mesmo assim, os ânimos não se acalmaram e a greve eclodiu. Alunos que lideram o movimento e professores integrantes da Associação de Docentes (Adusp) veem o plano como insuficiente e cobram mais agilidade nas soluções. Os estudantes à frente da greve dizem que a ação é “justa”, “necessária” e negam agir com violência.