Foram divulgados os resultados de 2023 do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), o principal indicador de qualidade da educação básica no Brasil. Nessa divulgação, em agosto, algo não esperado ocorreu: a existência de 21 escolas de anos iniciais do ensino fundamental que alcançam um Ideb 10, o maior valor possível.
Houve, pela primeira vez desde a criação do Ideb, em 2007, uma rede de ensino que obteve índice 10. Já nos anos finais, observou-se, também de forma inédita, duas redes de ensino com Ideb acima de 9.
A partir desses dados, em 4 de setembro, o Ministério da Educação (MEC) fez uma cerimônia para reconhecer as 21 unidades de ensino que chegaram ao índice máximo. Este ato contou, inclusive, com o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.
Reconhecemos o esforço de professores e gestores na melhoria da educação pública e o Ideb dessas escolas reflete avanços importantes no monitoramento da aprendizagem. Contudo, a condecoração pública somente delas é um equívoco, que não leva em consideração limitações do indicador e tampouco aponta na direção da educação que devemos almejar.
O Ideb considera as médias de aprendizagem dos estudantes em Língua Portuguesa e Matemática, medidas pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), e as taxas de aprovação em todos os anos escolares da etapa nos anos ímpares.
Uma nota 10 no Ideb só é possível quando todos os estudantes da escola que fizeram o Saeb acertaram praticamente todos os itens das diferentes provas e não houve, em todas as séries da etapa, abandono ou reprovação escolar. A ocorrência desses dois eventos simultaneamente em tantas escolas é, no mínimo, inusitada.
As escolas que obtiveram 10 no Ideb superam 325 pontos em Matemática e 321 em Língua Portuguesa. As metas do Todos pela Educação consideram que esse nível de proficiência é esperado para alunos do ensino médio, e não do 5º ano.
Ou seja, o Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (Inep, órgão do MEC responsável por elaborar a avaliação) precisa esclarecer por que os estudantes dessas escolas, com cerca de 10 anos de idade, têm proficiência equivalente a de estudantes de 15-16 anos, quase ao término da escolarização básica.
Uma metáfora ajuda a tornar mais compreensível a nossa estranheza diante desses dados. Vamos fazer um paralelo com a altura dos estudantes. Para a medida de altura, pode-se comparar os resultados de pessoas de qualquer idade — algo que o Saeb busca possibilitar, em certa medida, ao posicionar em uma mesma escala de aprendizagem os resultados dos estudantes do 5º e 9º anos do fundamental e do 3º ano do médio.
Suponhamos que a altura média das crianças de 10 anos no Brasil é de cerca de 1,40m; aos 14 anos, é de 1,64m; e, aos 17 anos, de 1,72m. Digamos que, para uma criança ou adolescente ser considerada alta, deveria ter 10 centímetros a mais do que essas médias.
Isto é: 1,50m, 1,74m e 1,82m, respectivamente. Nesse paralelo com o Saeb, ter Ideb 10 equivale a dizer que, nessas escolas, encontramos não só crianças de 10 anos muito altas para a sua faixa etária, mas que quase todas elas possuem mais de 1,74m e muitas, mais de 1,82m.
É relevante também destacar que os alunos que alcançaram tais médias de proficiência estavam no 2º ano em 2020, período marcado pelo início da pandemia, em que as restrições impostas e a transição para o ensino remoto trouxeram grandes desafios para a aprendizagem.
Em relação ao componente de rendimento escolar, garantir a aprovação de todos os estudantes de uma escola é também um fato que precisa de reflexão. Para isso, é importante entender que o oposto de aprovação é a reprovação e o abandono. Ou seja, nessas escolas nenhum estudante de nenhuma série abandonou e todos foram aprovados.
Este é um resultado perfeitamente possível de ser alcançado, mas não em qualquer contexto socioeconômico ou demográfico. No entanto, essa premiação manda um sinal para o sistema educacional de que é possível obter essas taxas de aprovação em diferentes realidades.
As escolas que atendem crianças e jovens das periferias das grandes cidades, onde estão o grande contingente de estudantes, têm grandes desafios para mantê-los na escola. Para essas unidades, não ter abandono durante o ano letivo é uma miragem ou algo que só é possível por meio de práticas de exclusão.
Por exemplo: transferência de alunos para a Educação de Jovens e Adultos (EJA), não contabilizar como abandono alunos que não frequentam mais as escolas e desligamento de matriculados com baixo índice de frequência no início do ano letivo e antes da aferição do Censo Escolar, realizado pelo MEC, em maio.
O motivo de todos os estudantes terem acertado todos ou quase todos os itens da prova do Saeb, que incluem questões adequadas às etapas seguintes, se explica, em parte, pela estrutura do que é incluído no teste. Hoje, os testes do Saeb usam apenas itens que medem isoladamente o domínio de conhecimentos e habilidades de baixa demanda cognitiva.
É essa estrutura que precisa ser superada a fim de evitar o treinamento de estudantes para a avaliação, algo que ocorre no Brasil de forma disseminada pelo menos desde 2017.
A ideia central presente na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que é a mobilização de conhecimentos e habilidades para a solução de problemas da vida, ainda não está devidamente consagrada nos nossos atuais instrumentos de avaliação. Como diz o professor José Francisco Soares, é como se no futebol o treinador usasse apenas treinamentos individuais, assumindo que isso fosse suficiente para preparar o time para o próximo jogo.
Como os conteúdos cobrados no Saeb orientam a organização do ensino de muitas redes, esse atual modelo conceitual impede a educação de ser mais relevante para a vida dos estudantes.
Cabe mencionar que, em 2017, os estudantes de algumas escolas públicas de alto desempenho no Saeb realizaram o Pisa Para Escolas (avaliação da OCDE, a Organização que permite às escolas entenderem como estão em perspectiva internacional).
O desempenho deles ficou muito abaixo dos países desenvolvidos, ainda que acima da média do Brasil. Ou seja: há evidências de que, no Saeb, nossos estudantes acertaram itens que refletem o domínio de conhecimentos superficiais.
Precisamos, sim, reconhecer bons resultados educacionais. Certamente, nas escolas nota 10 no Ideb há aprendizagens importantes que são garantidas e que, provavelmente, não são asseguradas em muitas outras unidades de ensino pelo País.
No entanto, um índice 10 pode sugerir equivocadamente que já estão no topo e que não há muito mais que possam fazer por seus alunos. Aperfeiçoar o Saeb para dar aos estudantes a chance de aprender o que a vida lhes exigirá é uma pauta urgente.
É necessário nortear o sistema educacional a partir de métricas relevantes na direção de uma educação de qualidade: atendimento escolar universalizado, aprendizagem com níveis de suficiência e excelência para promoção da equidade, trajetória escolar regular e conclusão da educação básica na idade adequada. A busca tem de ser por marcos relevantes, e não por resultados extremos, que são imprecisos e só estimulam o foco excessivo em treinamentos para avaliações.