Escolhida como uma das bandeiras da gestão Jair Bolsonaro (PL), a regulamentação da educação domiciliar – ou homeschooling – não saiu do papel. Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou o modelo constitucional, mas disse que cabe ao Congresso definir regras. Com o projeto de lei sobre o tema ainda travado na Câmara, parlamentares defensores da ideia – vários apoiadores do presidente – emplacam vitórias nos Legislativos locais, mas têm esbarrado na Justiça ou na regulamentação das propostas. Especialistas são críticos ao modelo, sob argumento de que ele reduz as chances de supervisão pedagógica especializada e convívio social das crianças. Os interessados na proposta dizem que a regulamentação criaria parâmetros de qualidade e evitaria problemas legais para as famílias.
O receio, sobretudo antes da decisão do STF, vem do fato de o Código Penal prever o crime de abandono intelectual: se os pais não garantem a educação primária ao filho. Pela Constituição, a escola é obrigatória dos 4 aos 17 anos. Não há estatística oficial sobre famílias adeptas do modelo, que é reconhecido ou adotado em mais de 60 países. A Associação Nacional de Ensino Domiciliar, em 2018, contabilizava cerca de 15 mil estudantes de 4 e 17 anos educados em casa. O Brasil tem 46,7 milhões de alunos na educação básica. No Congresso, a principal aposta do governo é no projeto de lei (PL) relatado pela deputada Luísa Canziani (PSD-PR). Líder do Governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR) negocia acordo para votar o texto – a ideia era aprovar sem apresentação de destaque em plenário, desde que se mude a exigência de qualificação dos pais para o homeschooling. O texto apontava que os pais devem ter ensino superior para ensinar em casa. Na base governista, houve pedido para reduzir a exigência. É costurada proposta para que seja necessário comprovar nível superior ou educação profissional tecnológica por ao menos um dos pais ou responsáveis.
Há outros requisitos no PL, como os pais ou responsáveis não poderem ter antecedentes criminais e a obrigação de matricular o filho em instituições de ensino para avaliações periódicas. Não há data para votar, mas a deputada prevê isso em duas semanas. O texto ainda precisa passar pelo Senado. Para Luísa, o vácuo legal, coloca pais com condições de dar “educação mais personalizada às crianças” na conta da evasão, de “famílias não preocupadas com o desenvolvimento ou segurança dos filhos”. Procurado, o MEC não falou.
Tentativas frustradas
Em 2020, a Câmara Legislativa do Distrito Federal aprovou a regulamentação do homeschooling, depois sancionada pela gestão Ibaneis Rocha (MDB). Foram analisados três PLs em conjunto – um deles apresentado pelo próprio Executivo. A lei prevê cadastro das famílias, avaliação e fiscalização da modalidade, mas nada disso virou realidade. Secretária executiva do Conselho de Educação do Distrito Federal, Cíntia Cristina Faulhaber instaurou comissão para normatizar pedagogicamente a prática. Mas o entendimento dos conselheiros foi de que a responsabilidade é da Secretaria da Educação. Em resposta ao conselho, a qual o Estadão teve acesso, a pasta alega estar “impossibilitada” de levar a regulamentação adiante, considerando que ainda há debates no Judiciário e no Congresso sobre homeschooling. Procurada pela reportagem, a secretaria disse que a resposta seria a mesma dada ao conselho. A Assembleia de Santa Catarina, em novembro de 2021, também aprovou lei para permitir homeschooling. O Tribunal de Justiça suspendeu a lei, a pedido do Ministério Público. Na decisão, a desembargadora Maria do Rocio Santa Ritta citou “perigo iminente”, diante da alteração “imediata” e “radical” que a mudança traria ao sistema educacional. O deputado estadual Bruno Souza (Novo) reivindica que Estados tenham normas próprias. “Iremos ao STF para defender a liberdade e o direito das famílias de educarem os filhos sem serem perseguidas.”
No Paraná, a tentativa de criar regra local também parou no Tribunal de Justiça. Por unanimidade, a Corte decidiu, em março, que era inconstitucional a lei aprovada pela Assembleia seis meses antes. O entendimento dos magistrados foi de que o assunto precisa de regulamentação federal. O deputado Marcio Pacheco (Republicanos) diz que decisões judiciais devem ser cumpridas, mas afirma se solidarizar com as famílias do homeschooling, que ficam “sem nenhuma segurança jurídica”. Ele afirma ainda esperar que o STF reverta a decisão, "visto que já reconheceu que os Estados têm competência concorrente para legislar sobre educação e que o ensino domiciliar é constitucional". O governo paranaense, da gestão Ratinho Júnior (PSD), disse que, após o julgamento de recurso, avaliará a possibilidade de apelar a tribunais superiores.
Medidas preventivas
O Conselho de Educação paulista se antecipou a qualquer tentativa de avançar com a pauta no Estado. Aprovou em abril de 2021 um texto, homologado pela Secretaria da Educação, em que define diretrizes com regras básicas caso seja aprovada a lei federal. Entre os pontos, está que jovens em ensino domiciliar devem ser matriculados em escolas municipais ou estaduais, para acompanhamento, ser educados por profissionais com formação na área e passarem por avaliações periódicas. Nos municípios também há tentativas. A Câmara de Porto Alegre aprovou o projeto dos vereadores Fernanda Barth (PSC) e Hamilton Sossmeier (PTB). A prefeitura prometeu criar uma mesa para discutir, mas não deu prazos. Crítica nas redes sociais ao suposto uso nas escolas da linguagem neutra (em que não se usa o pronome para designar o gênero), Fernanda Barth lamentou a falta de regulamentação. Disse, porém, atuar junto à prefeitura para agilizar o processo. Antes mesmo da sanção, porém, a lei já entrou na mira do Ministério Público gaúcho. A promotora Ana Cristina Ferrareze encaminhou internamente procedimento para análise da constitucionalidade.
Papel do Estado
“Amparar a educação domiciliar na legislação é um equívoco”, afirma Romualdo Portela, diretor de Pesquisa e Avaliação do Cenpec, organização voltada à educação. O poder público, diz ele, contribui para ampliar desigualdades ao reduzir a própria responsabilidade nessa área. Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Portela afirma que ao impor exigências para o modelo, a cresce a possibilidade de a educação domiciliar ser mais adequada. Mas o grande problema, acrescenta, será fiscalizar. Educadores também destacam o papel da escola na garantia da saúde e integridade da criança, como no estímulo à vacinação e na identificação de casos de abuso doméstico. Entre as entidades que já se posicionaram contra o homeschooling, estão ainda o Todos pela Educação e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Jônatas Dias Lima, presidente da Associação de Famílias Educadoras do DF (Fameduc), critica a gestão Bolsonaro pela demora. “É a promessa mais adiada do governo.” Ele mantém o filho de dez anos e a filha de seis no ensino domiciliar, conduzido pela mulher, pedagoga. Ele diz que a família segue as orientações da Base Nacional Comum Curricular – documento do MEC que prevê o que deve ser ensinado em cada idade – e usa provas de colégios militares como avaliação. “O Estado não sabe a qualidade da educação que as crianças (no homeschooling) recebem, não tem como averiguar o desempenho nas avaliações. E as crianças sofrem preconceito”, reclama. “No nosso caso, há flexibilidade, focamos no que a criança tem mais potencial, gastamos mais tempo no que ela tem mais dificuldade.” Para Portela, no entanto, o esforço do governo deveria ser a garantia de ensino de qualidade para todos, e não em discutir pautas restritas. “É um barulho para um serviço que atende uma pequena parcela da população. Não se faz política educacional pela exceção”, completa./ COLABOROU JULIA AFFONSO