O ministro da Educação, Camilo Santana (PT), disse em entrevista exclusiva ao Broadcast Político/Estadão que poderá usar recursos de taxas pagas pelas faculdades particulares para financiar o trabalho do novo órgão planejado pela pasta para fiscalizar o ensino superior privado.
Segundo ele, pelo tamanho do setor, “haveria condições do próprio instituto ter grande arrecadação”. Além disso, afirmou que o governo pretende criar um marco regulatório para a educação a distância, com o objetivo de definir quais cursos podem ser ministrados no formato híbrido ou remoto.
Sobre o Fies, Santana afirma que o MEC tem uma proposta de uma nova versão para o programa, mas disse que falta acordo com o Ministério da Fazenda. A defesa dele é por cobranças diferenciadas dependendo da renda do aluno beneficiado. “Qual o grande problema do Fies? É que deixou de ser um programa mais social para se tornar um programa um pouco financeiro”, disse ele.
O ministro afirmou também que esperava mais receptividade do Congresso à proposta do governo para a reforma ensino médio. O projeto travou na Câmara, onde o relator, o deputado oposicionista Mendonça Filho (União Brasil-PE), já indicou que fará diversas mudanças na proposta – Santana se disse surpreso inclusive com a escalação de Mendonça, ex-ministro responsável pela reforma na gestão Michel Temer (MDB), para a relatoria.
Camilo Santana, de 55 anos, é ministro da Educação desde o começo da gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Antes, governou o Ceará por dois mandatos. Foi eleito senador em 2022, mas se licenciou para assumir o MEC.
Leia os principais trechos da entrevista:
O relator já mostrou que vai alterar o projeto do governo para reformular o ensino médio. Faltou articulação? Surpreendeu a resistência no Congresso?
Foi um processo amplamente discutido. Tomamos a decisão de não ser por medida provisória porque queríamos que o Congresso debatesse. Eu esperava que, como não era decisão simplesmente do governo, que fosse amplamente acolhida pelo Congresso. Me surpreendeu, apesar de ter bom relacionamento com o deputado Mendonça. Surpreendeu porque é complicado você colocar como relator o ministro na época que implementou né? Até porque é outro governo.
O governo vai insistir no texto que foi enviado?
Vamos insistir. Repito: não foi um projeto simplesmente do governo. Foi um projeto construído. A gente quer ver se agora, já no retorno [do recesso do Legislativo], a gente abre esse debate novamente. Que seja aprovado o mais rápido possível.
Seria para aprovar nas duas Casas no 1º semestre?
Vamos tentar menos do que isso, mas no máximo até o primeiro semestre estar resolvido.
Aprovado o projeto, qual é o plano de implementação?
O que foi acordado é que haveria um ano de transição. Os Estados iriam se preparar para implementar a partir de 2025. Se conseguirmos aprovar agora, ainda no 1º semestre, os Estados terão tempo para se preparar para fazer as mudanças para 2025.
No Congresso, deputados da própria base reclamam da articulação do MEC. Apontam a relatoria do PL do ensino médio com Mendonça Filho como exemplo de articulação falha. É uma crítica justa?
O governo tem um ministério que trata das relações com o Congresso (a Secretaria de Relações Institucionais, comandada por Alexandre Padilha). Quando o presidente assinou o projeto de lei para ser encaminhado, combinei com o ministro Padilha para que nós dois fôssemos juntos ao presidente da Casa (da Câmara, o deputado Arthur Lira) para dizer da importância desse projeto. E que fosse definido um relator que pudesse ter diálogo e abertura maior para essas mudanças que propomos. O presidente da Casa fez essa escolha. Mas sempre sou uma pessoa que faço autocríticas. Talvez a gente precise melhorar a forma que tem se relacionado nesse aspecto. Recebi pessoalmente no meu gabinete 340 parlamentares em 2023. Vamos tentar estabelecer um processo mais próximo.
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Quando o governo lança a nova versão do Fies? O que pode adiantar sobre isso?
Estamos (MEC) com uma proposta pronta, depende muito do Ministério da Fazenda. Qual o grande problema do Fies? É que deixou de ser um programa mais social para se tornar um programa um pouco financeiro. A coparticipação de um aluno que tira um recurso do Fies, em média, chega a 36% do valor da prestação. Se tiver uma prestação de R$ 1 mil, por exemplo, tem de pagar R$ 360. Tem gente que não tem condições. O modelo atual é para quem tem renda média de três salários mínimos (R$ 4.236). A ideia nossa agora é ter uma escala que possa financiar 100% para os que precisam mais. Os que têm renda melhor, faz uma graduação (dos pagamentos).
É possível ter ideia de quando será lançado?
A Casa Civil está amarrando a próxima semana para ver com a Fazenda se a gente consegue fechar esse desenho.
Mas não é possível ter ideia de data ainda?
Se dependesse do MEC, já tinha feito. Até porque é um compromisso do presidente, compromisso nosso de mudar. O problema é que muitas vezes as coisas não dependem só do MEC, envolve outros ministérios.
Quantas vagas vão ser ofertadas? Qual vai ser o orçamento?
A ideia é permanecer, por enquanto, a quantidade de vagas que estamos ofertando: em torno de 100 mil, 120 mil. Até porque não estamos conseguindo nem ocupar a metade. Começar com o número que está hoje e avaliar a necessidade de ampliação ou não. Focar e verificar quais os cursos que têm a maior demanda.
De 1,2 milhão de inadimplentes do Fies, por volta de 164 mil entraram no programa de renegociação das dívidas até agora. O ritmo da renegociação é satisfatório?
Temos de divulgar mais, para dizer que esse jovem tem condições de renegociar e pagar as dívidas em situações muito favoráveis. Pode chegar a 99% do principal e 100% dos juros e multas. O prazo é até o fim de maio.
Tem chance de prorrogar o prazo?
Vamos avaliar como se comporta, porque praticamente só se passou um mês do refinanciamento.
Os cursos de Medicina que foram abertos com base em liminar, do ponto de vista do MEC, correm risco?
Eles passam pelos critérios estabelecidos. Se tem infraestrutura no local, número de médicos por habitante. A decisão judicial é que o MEC avalie. O grande problema é que se concentra muito nas capitais, em grandes centros, que já têm muitas vagas de medicina. Qual o outro passo que estamos construindo? Não é só abrir a faculdade de Medicina, é avaliar a qualidade dos cursos. Não só de Medicina, qualquer curso da educação superior. A educação superior cresceu no Brasil deforma gigantesca. Mais de 80% das matrículas do ensino superior são privadas. Precisa ver a qualidade das ofertas. Principalmente da EAD, que cresceu de forma exponencial. Defendemos que seja criado um instituto, com robustez, equipe maior, para que a gente possa fazer uma avaliação, acompanhamento, regulação, do ensino superior privado no Brasil.
O senhor mencionou a educação a distância, que explodiu no nível superior. Como o MEC avalia isso? Isso tem chance de piorar a média da formação?
Precisamos avaliar a qualidade desses cursos. Por exemplo, 40% das matrículas de curso de Enfermagem no Brasil já eram a distância. A gente imaginar que em um curso de enfermagem a pessoa se forma, vai cuidar da vida das pessoas, 100% a distância.... Suspendemos a autorização de cursos de Enfermagem. Até porque, em 2022 ofertaram-se mais de 22 milhões de vagas em cursos superiores do Brasil. Só foram ocupadas 4,5 milhões. Dessas, mais de 80% são EAD. O curso a distância facilita a vida das pessoas, mas precisa saber qual o tipo de curso posso ofertar EAD, qual tipo preciso mesclar (com conteúdo presencial). Estamos defendendo e estamos discutindo uma resolução para ser construída com o Conselho Nacional de Educação sobre a licenciatura. A qualidade da formação da licenciatura no Brasil está muito baixa. Estamos trabalhando em não permitir mais licenciaturas 100% EAD. Tem de ser parte presencial e parte a distância. Precisamos ter um novo marco regulatório do EAD.
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O senhor mencionou a criação de um instituto para regular o ensino superior. Como viabilizar isso no contexto de restrição fiscal? Será preciso ao menos contratar servidores para tirar essa estrutura do papel...
A proposta inicial é que esse instituto iria cobrar taxas. Porque hoje precisa fazer avaliação, fazer estudo. Para autorizar um curso de Medicina, precisa mandar uma comissão. Muitas vezes são médicos, que vão lá avaliar se a estrutura física tem condições de receber o curso. E isso precisa ser custeado. Nada mais justo do que cobrar das instituições, que são privadas, e cujo objetivo é ter lucro. (o ministro citou em outubro a ideia de criar esse órgão regulador e enviar nova proposta para o Congresso; hoje, essa atribuição fica a cargo de uma secretaria do MEC, a Seres)
Essa estrutura nova se autossustentaria?
Há um estudo que mostra que, pelo volume que o negócio tem hoje no Brasil, haveria condições do próprio instituto ter grande arrecadação. (em 2012, a gestão Dilma Rousseff propôs criar o Instituto Nacional de Supervisão e Avaliação da Educação Superior, o Insaes, que não avançou no Congresso. Na época, o PL previa a criação de 550 cargos ao custo de R$ 43,4 milhões anuais, em valor não corrigido pela inflação. A ideia sofreu resistência do setor)
O senhor mencionou a possibilidade de regulamentar o EAD. Além da qualidade e dos cursos em que não é possível o modelo 100% a distância, dá para ter mais alguma ideia sobre a regulamentação?
O que estamos construindo é um marco regulatório da educação à distância. Tem a participação do Conselho Nacional de Educação, das comissões, vários estudos, universidades. Vamos ouvir as entidades que ofertam esses cursos. Para definir qual curso pode ser 100% à distância, qual curso precisa ser híbrido, qual curso que não pode ser de forma alguma.
Seria necessário projeto de lei?
Estamos tentando aproveitar o projeto de lei que está lá (no Congresso) desde 2012. Precisa fazer algumas mudanças. A ideia é aproveitar até porque ganha tempo.
Há reclamações sobre dificuldades, demora na liberação de recursos do MEC. Há mesmo essa dificuldade? Como tem sido essa dinâmica?
Às vezes as pessoas imaginam que educação é como a construção de estrada. O MEC não executa a política de educação básica. Quem executa são os Estados e municípios. Foi um processo de construção com as redes, definição de critérios, de metas estabelecidas. Estimamos repassar R$ 2 bilhões ano passado. Chegamos a repassar, empenhar e repassar quase R$ 1,7 bilhão. Em relação aos parlamentares, praticamente pagamos 100% das emendas, tanto individuais como de bancada do ministério. Às vezes você não paga porque o município ou Estado ou a universidade não apresentou projeto, está inadimplente. Há situações que precisa cumprir as questões legais para fazer o repasse.
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As universidades federais cobram mais recursos, dizendo que estão com dificuldade para manter as atividades. Como o governo lida com isso?
O presidente Lula fez um esforço enorme no primeiro ano para fazer uma recomposição (do orçamento). Entre institutos federais e universidades, mais de R$ 2,4 bilhões. Para uma recomposição das bolsas de mestrado e doutorado, da ciência estudantil, a recomposição da merenda…
Mas isso foi muito com base na PEC da transição [que permitiu a Lula gastar mais no 1º ano de governo], que não tem mais...
O que tentamos fazer agora foi manter o mesmo nível de orçamento para o ano de 2024. Com o acréscimo, que teremos agora, com o anúncio do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). A ideia do PAC das universidades é consolidar as estruturas que não foram consolidadas. Priorizar a consolidação desses campi e pensar também a ampliação de alguns campi de universidades importantes, estratégicas do Brasil.
O ciclo do Ideb (principal indicador de qualidade do ensino básico do ministério, que tinha plano construído até 2022) se encerrou. O MEC manterá esse indicador? Fará reformulação?
Está na hora de o Brasil pensar em mudanças no Ideb. Estive com o presidente na terça-feira, vamos fazer uma reunião com os governadores para definirmos qual seria a meta da alfabetização das crianças. Tem Estado com percentual muito baixo de crianças que atingiram a meta, tem Estado numa situação melhor. A ideia é que possamos garantir que haja uma projeção. Estamos fazendo um desenho para os próximos oito anos.
Teria meta diferenciada de acordo com o Estado?
Não. A meta é única para o Brasil. O importante desse processo é a liderança do governador em cada Estado. O governador precisa assumir esse protagonismo, chamar os prefeitos, para que possamos melhorar esses indicadores de alfabetização.
Pela sua experiência política, e pelo que o senhor conhece do presidente, haverá mesmo reforma ministerial neste começo do ano?
Aí cabe a ele responder essa pergunta.