Prestes a completar um ano na gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o Ministério da Educação (MEC) traz propostas que apontam na direção correta, mas tem resultados insatisfatórios e ritmo lento de implementação das políticas públicas. A avaliação é do pesquisador do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), João Marcelo Borges.
Em entrevista ao Estadão, ele analisa a gestão Camilo Santana (PT) na pasta e classifica a falta de solução sobre a reforma do ensino médio como o principal insucesso, por falta de “leitura política”. O projeto de lei sobre o tema será analisado pelo Congresso só no ano que vem e 7 milhões de alunos seguem no limbo.
“O MEC não se preparou adequadamente para o debate, reagiu de modo meio atabalhoado.” Para Borges, outro desafio urgente será adaptar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Por outro lado, ele elogia a resposta do MEC à crise de ataques nas escolas (que resultaram em mortes na Vila Sônia e em Sapopemba, em São Paulo, e em Blumenau) e a decisão de pôr fim ao programa de escolas cívico-militares. Segundo Borges, apesar do ritmo lento, o governo acerta na implementação do Compromisso Nacional Criança Alfabetizada.
O pesquisador também critica a gestão do governo paulista na educação. Para ele, houve desgaste com “polêmicas banais”, como a decisão do secretário Renato Feder de abandonar livros físicos do MEC para adotar materiais digitais. Após críticas e interferência da Justiça, Feder recuou.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
Após um ano de governo, como avalia a nova gestão do MEC?
O melhor é que voltamos à normalidade democrática. Tem diálogo, espaço para crítica. O debate se dá em torno de problemas reais, e não de problemas imaginários. Mas é um ano insuficiente, de entregas pouco satisfatórias.
O que poderia ter sido entregue e deixou a desejar?
Sem dúvida, o maior insucesso do MEC em 2023 é o ensino médio. O MEC não se preparou adequadamente para o debate, reagiu de modo meio atabalhoado. Chega ao fim do ano e, na prática, os estudantes que estão ou ingressarão no ensino médio não sabem quantas horas, qual a estrutura curricular nem de que forma serão avaliados no Enem.
Sobre o Sistema Nacional de Educação (para definir e articular as atribuições de União, Estados e prefeituras), o MEC também ficou de enviar um novo substitutivo ao Congresso e não fez. Algumas das deliberações que têm a ver com a estrutura federativa do País são fragilizadas na ausência de um Sistema Nacional. O ensino médio, por exemplo.
No ensino médio, o que mais atrapalhou?
A equipe do MEC, no início, não entendeu o tamanho da resistência. Quando houve aumento da crítica em março, abril, o MEC parece ter se assustado. E aí fez consulta pública, depois se fechou em copas para apresentar seu novo projeto. Colocou urgência, depois tirou. O MEC não tinha boa leitura política do ensino médio e, internamente, havia posições divergentes.
Por outro lado, onde havia postura interna clara e articulação bem sucedida com sociedade e Congresso, o MEC teve vitória expressiva: o melhor momento é o aprimoramento da Lei de Cotas (que reserva vagas para alunos da rede pública, pretos, pardos e indígenas em universidades federais).
O MEC, na figura da Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão), teve papel técnico e político importante, diálogo profícuo com os movimentos sociais, o Congresso. E mesmo com um Congresso tão conservador, o governo não só confirmou, como aprimorou a Lei de Cotas.
O governo é muito criticado na articulação política sobre o ensino médio, inclusive pela base no Congresso. O MEC é fraco no Congresso?
No pacto para reativar obras paradas e na Lei de Cotas, a articulação política do MEC foi bem sucedida. Fato que são dois temas menos polêmicos do que o ensino médio.
Mas houve falhas na articulação política. Esse governo de coalizão com base ainda sendo montada impõe dificuldades ao Executivo, que é mais fraco do que no passado. O Congresso é mais forte.
De outro lado, é uma base mais heterogênea, que tem um ex-adversário como vice-presidente (Geraldo Alckmin), com alianças mais próximas da centro-direita do que da esquerda. Há falhas na articulação política, mas não restritas ao MEC.
A proposta do MEC para o ensino médio fixava 2,4 mil horas de formação básica. Segundo gestores, isso dificulta implementar a educação técnica. Indica que o governo não vê o ensino profissional como prioridade?
Na forma como o governo encaminhou, compromete a educação profissional. Não só pelas 2,4 mil horas, mas pela vedação à contratação por notório saber. São dois componentes que dificultam os melhores cursos técnicos profissionais. Por outro lado, difícil dizer que o governo não tem interesse na educação técnico-profissional quando o ministro e o presidente (Lula) têm falado disso. E a meta de expansão das escolas de tempo integral abre espaço para a expansão do técnico-profissional.
Mas, independentemente do modelo de ensino médio que for aprovado no Congresso, há um plano para implementação? Isso me preocupa mais do que saber se serão 2,1 mil ou 2,4 mil horas. É possível uma formação adequada com 2,1 mil horas de formação geral básica e o restante, por exemplo, no itinerário profissional. Mas é necessário que haja recursos na formação de professores, no desenvolvimento dos conteúdos, na infraestrutura, no material didático. Essa discussão passa ao largo.
O governo lançou o Compromisso Criança Alfabetizada, mas ele pouco andou, inclusive em repasses. O ritmo está aquém do necessário?
O ritmo é baixo, mas no Compromisso, o MEC acertadamente priorizou construir a governança. É uma das lições do Ceará: ter a governança para que a engrenagem alcance a escola. O MEC deu posse a articuladores municipais em praticamente todo o País. Não é simples nem rápido.
A velocidade da execução precisa aumentar bastante. Ano que vem teremos clareza se esse pacto tem condição de ser bem implementado. Mas cito outro caso onde me parece que a velocidade de implantação é pior ainda: as escolas conectadas. Foi anunciado como prioridade e ainda hoje não existe plano de implementação e há recursos parados faz alguns anos.
Há dificuldades de execução verdadeiras. Está longe de ser incompetência, tem a ver com burocracia, com a fragilização da máquina pública depois de anos de desgoverno.
Há lentidão generalizada na capacidade operacional do MEC?
Tem em quase todo governo. São seis anos de governos fracos. Dois anos do (Michel) Temer depois do impeachment traumático em que ele basicamente segurou a casa, mas era um governo sem perspectiva de futuro.
Logo depois, quatro anos de desgoverno Jair Bolsonaro, fragilizando a máquina, sem concursos, com pessoas saindo dos seus órgãos de origem. Os sistemas de gestão e informação do governo de maneira geral, mas do MEC em particular, são desatualizados, pouco funcionam.
Há uma fragilização da estrutura operacional do Executivo que compromete não só o MEC, mas outros ministérios: Saúde, Desenvolvimento Social, Meio Ambiente, com déficit de funcionários gigantesco. E há demanda represada depois de anos sem diálogo.
Mas já temos tempo suficiente para dizer que há problemas para além dessas duas razões. Mesmo nas políticas mais prioritárias, o MEC não tem conseguido imprimir ritmo satisfatório e isso precisa ser revertido. Nossos desafios são gigantescos e pioraram depois da pandemia.
Quanto tempo será necessário para se recuperar disso?
Aí é bola de cristal. Mas o MEC fez concurso. Receberá novos profissionais. É um governo que logo sofreu tentativa de golpe, o que afetou a capacidade de articulação política. Há um tempo de aprender a executaro. A equipe hoje tem mais experiência, mas precisará acelerar muito o trabalho, porque eles próprios estão insatisfeitos com o ritmo.
Na época dos ataques a escolas, o governo anunciou verba a Estados e municípios e criou material sobre o tema. É suficiente?
O governo teve rapidez, lançou uma Política Nacional de Prevenção à Violência no Ambiente Escolar. É um problema multidimensional. O que as escolas podem fazer é limitado, mas relevante. O governo ouviu especialistas, sociedade civil, organizou-se com os outros ministérios e tem uma política. Mas essa política desde Brasília basicamente vai distribuir recursos e prover formação.
O resto são aspectos na vida das cidades, que precisam de inteligência policial, assistência à saúde mental. Nas escolas, o fomento à convivência democrática e a prevenção ao bullying devem ajudar.
Já tem uma política, agora temos de ver a capacidade de implementá-la .
O governo encerrou o programa de escolas cívico-militares. Foi certo?
Completamente acertado. O programa apoiava um número ridículo de escolas: cerca de 200; e há 140 mil. Era mais um uma veleidade ideológica do que um programa sério.
Havia desvio de recursos: o MEC financiava militares aposentados. Não há evidências robustas de que essas escolas tenham melhores resultados acadêmicos do que as ‘comuns’.
Tudo o que precisamos é civilizar o Brasil, não militarizar. Civilizar num duplo sentido: tornar civil e menos militar, e tornar civilizado, portanto respeitoso, democrático.
O presidente anunciou 100 novos institutos federais. Mas universidades e os próprios institutos cobram mais verba. Qual deve ser o foco?
Primeiro, as instituições federais têm dificuldades na gestão de seus recursos, sofreram redução significativa nos últimos 10 anos na disponibilidade orçamentária, mas, além disso, têm problemas de eficiência.
Há muitas vagas ociosas nas universidades e nos institutos federais. O tempo de permanência dos estudantes é maior do que poderia ser considerado plausível. Só expandir sem aprimorar a gestão e a eficácia é um erro.
A grande agenda da educação superior, para além da Lei de Cotas, é melhorar a eficiência e a eficácia. Formas de contratação, uso dos espaços dos câmpus podem gerar mais receita, a produção de pesquisa etc. Precisa de investimento, mas também melhorar a aplicação do recurso.
O tempo médio para um aluno se formar numa federal é de sete anos, sete anos e meio. A Lei de Cotas permite que muita gente mais pobre entrasse , mas o número de bolsas de assistência estudantil não acompanhou. E há pessoas fazendo esforço enorme para ficar na universidade, mas que não têm renda. Abandonam ou estendem a permanência para trabalhar enquanto estudam.
Talvez seja mais econômico aumentar o gasto com assistência estudantil, porque elas poderão se formar mais rapidamente e em melhores condições, do que bloquear a vaga por anos seguidos.
Também é preciso melhorar os processos vocacionais de escolha de curso. É um número grande de estudantes que muda após um ano.
Não é tentativa de cercear a autonomia universitária, limitar liberdade de cátedra, mas como qualquer outra instituição que usa recurso público, precisa ser cobrada em termos de eficácia e eficiência.
O Brasil ainda não tem desempenho adequado no Pisa. As políticas educacionais até agora apresentadas são suficientes para dar conta desse desafio? O que precisa ser colocado no radar?
A principal característica da educação básica pública no Brasil é ser muito heterogênea. Há escolas com ótimos resultados mesmo com alunos pobres em lugares pobres. Há escolas com ótima infraestrutura e péssimos resultados. Precisamos aprender mais com nossos bons exemplos, mas o Brasil se acostumou com um ritmo lento de melhoria e não tem conseguido enfrentar as resistências para implementar medidas mais inovadoras.
Sabemos que mentoria de professores, de diretores escolares, feita pelos próprios pares ou por especialistas externos com experiência, auxilia os profissionais. E isso se transforma em melhoria de aprendizagem. Não conseguimos fazer isso em escala. Sabemos o quanto a gestão educacional é importante. É o segundo fator mais diretamente associado ao desempenho dos estudantes depois da qualidade dos professores.
O MEC não tem nenhum programa voltado à melhoria da gestão escolar. São pequenos recursos no PDDE (Programa Dinheiro Direto na Escola, do ministério), formações isoladas. Há problemas do tipo: a formação inicial dos professores continua afastada da realidade, ainda muito teórica, e mesmo na parte teórica, pouco aprofundada nos conteúdos disciplinares das licenciaturas. Essa leniência tem feito com que simplesmente renovemos a cada ciclo as mesmas cobranças, mas o problema é que estamos fazendo o que já fizemos no passado e não tentando coisas novas. Dificilmente isso vai dar certo.
Olhando para o ano que vem, o que deve ser prioridade do MEC?
Assumindo que o MEC já pôs alfabetização como sua maior prioridade, minha tradução é ver o compromisso ser implementado na prática: recursos chegando nas redes, professores sendo formados com qualidade, materiais didáticos adequados sendo distribuídos. E um bom monitoramento.
Segundo: o ensino médio. Mais importante do que a discussão legislativa é garantir que redes estaduais e o governo federal juntos façam um plano adequado para implementar o modelo que se viabilizar legalmente. Isto é crucial, se não daqui a poucos anos vamos querer rediscutir o desenho, porque não nos preparamos para implementação.
O terceiro é não se perder nos debates sobre o novo Plano Nacional de Educação. O MEC pode ficar preso a um debate legislativo olhando para 10 anos no futuro e se fragilizar politicamente e eventualmente nem conseguir implementar suas prioridades.
Fora isso, há uma urgência no Inep, que tem a ver com um novo Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica), portanto um novo Ideb ( Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, que avalia a qualidade das escolas e das redes conforme os resultados em exames federais e nas taxas de aprovação). O ciclo de Ideb expira esse ano. Não temos mais metas de desempenho.
E ainda a decisão sobre o novo Enem.
Questões do Enem foram criticadas pela abordagem feita sobre temas como o agronegócio. As críticas sobre viés ideológico no Enem são pertinentes? É preciso aprimorar a forma como as questões são construídas?
Completamente impertinentes. As questões foram elaboradas ano passado, não eram perguntas sobre concordância ou discordância. Eram textos de circulação ampla, com questões de interpretação textual. E, sim, precisamos melhorar a forma de elaborar itens.
Nosso número de itens é pequeno, o que impede fazermos provas em vários momentos do ano, como o SAT (Scholastic Assessment Test, espécie de Enem dos Estados Unidos). Nossos itens são simples, sem um construto teórico que os ampare e indique claramente os níveis de proficiência que esperamos. Pior: só fazemos testes de múltipla escolha. Precisamos passar para provas com diferentes tipos de questões: múltipla escolha, resposta discursiva aberta.
Qual o saldo do MEC neste primeiro ano?
Um copo meio cheio, meio vazio. Interprete como quiser. São promissores alguns dos sinais do MEC, mas são insatisfatórios os resultados e o ritmo até aqui.
Em São Paulo, tivemos a gestão do secretário Renato Feder pontuada por polêmicas. Isso atrapalhou a condução de políticas educacionais no Estado?
O nível de exposição a polêmicas banais que se viu exposta a rede paulista comprometeu (o desenvolvimento de políticas), porque compromete o engajamento, o interesse, a credibilidade das lideranças do Executivo paulista. Isso certamente comprometeu. Até o provão Paulista não gerou o mesmo entusiasmo que poderíamos ver. São Paulo além de tudo, e aqui falando até politicamente dado que o governador se coloca como um opositor ao governo nacional, poderia ter aparecido.
Onde o governo federal titubeia São Paulo poderia dar soluções, não é o caso. O ensino médio de São Paulo e a proposta para lidar com ele no próximo ano é horrível. Essa ideia de digitalização de materiais é estapafúrdia. São Paulo se perdeu no debate, não tem nenhuma voz no debate público educacional do País hoje.
Na sua avaliação, qual o saldo de um ano da gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) na área?
Muito barulho por nada.