Entrar na faculdade é o sonho de muitos brasileiros. Dentre os que alcançam esse objetivo, porém, mais da metade abandona o curso antes de terminar. Segundo o Mapa do Ensino Superior no Brasil, do Instituto Semesp, 55,5% dos alunos que começaram a faculdade em 2017 já tinham desistido em 2021. Entre os motivos, estão a falta de dinheiro para bancar as mensalidades e a necessidade de se dedicar só ao trabalho.
Na área de tecnologia, a evasão é ainda maior: 66,5% desistem do curso antes de acabar. Entre os campeões de desistência estão: Design de Games (75,9%) e Banco de Dados EAD (72,7%). Mas por que uma das áreas consideradas mais promissoras sofre com altos índices de abandono?
Além de questões financeiras, agravadas pela crise econômica nos últimos anos e a redução de financiamentos com ajuda do governo (Fies), há dificuldade de faculdades manterem cursos conectados à realidade das empresas. O mercado bastante aquecido, que muitas vezes contrata sem exigir diploma (basta o conhecimento prático), aumenta o desafio.
Foi o que aconteceu com o analista de segurança da informação Rogério Santos, de 22 anos, que abandonou a graduação de TI em uma faculdade privada. “O mercado de trabalho me ensinou mais que a própria faculdade. O que aprendi (na graduação) era muito básico. Muitas coisas eu já tinha visto no ensino médio, no curso técnico em Informática”, conta. “E eu já estava inserido no mercado, com salário bom. Não vi necessidade de continuar.”
Em setembro de 2022, quando já tinha desistido do curso, a empresa onde Santos trabalhava passou por uma rodada de demissão em massa – cada vez mais comum no setor de tecnologia – e ele teve de voltar a procurar emprego. Mesmo sem diploma, não teve dificuldade de se recolocar - atua em uma empresa de segurança digital.
“Boa parte das empresas não confere se você tem ou não diploma”, afirma. “E quando aparece um profissional que sabe fazer o que a vaga exige, as empresas não querem deixar escapar. Como tenho quatro anos de experiência, fica mais fácil encontrar oportunidades, mesmo sem ter terminado a faculdade.”
No caso de Yan Coelho, de 27 anos, a decisão de abandonar as salas de aula foi resultado de dois fatores: um ensino que pouco agregava na rotina do trabalho, na visão dele, e o fim das classes remotas. Ele ingressou no curso de Redes de Computadores em 2021, na pandemia, mas no ano seguinte, quando as aulas voltaram para o presencial, ficou difícil equilibrar trabalho e faculdade.
“O trabalho ocupava o dia inteiro, até às 18h ou 19h, e ainda tinha de ir para a faculdade para algo que não estava valendo tanto para mim”, diz ele, que estudava em uma instituição pública. “Era superficial, com matérias que eu já tinha aprendido no trabalho. Não vi sentido em continuar.”
Segundo Coelho, tudo o que aprendeu na área foi ensinado pelo banco onde é funcionário da área de tecnologia. “Havia preferência da empresa em contratar profissionais que acabaram de ingressar na faculdade. Eu mesmo consegui emprego com um mês de curso. E eles ofereciam programa de treinamento voltado para o dia a dia. Em dois meses de trabalho, eu já tinha aprendido muito mais que na faculdade”, conta.
Ele diz que pretende voltar à universidade, mas não é sua prioridade agora. “Pode ser um diferencial no futuro. Acredito que, para uma promoção, possa fazer a diferença. Mas para vagas de analista, como a minha, não muda muito.”
‘Não é algo que pode ser atualizado semestralmente’
Para coordenadores de cursos e especialistas ouvidos pelo Estadão, relatos como os de Santos e de Coelho são cada vez mais comuns. São desafios manter os cursos conectados às demandas do mercado, que mudam cada vez mais rapidamente, e também relevantes para a formação de longo prazo. Também é preciso lidar com lacunas de aprendizagem que os alunos trazem do ensino básico.
Para Rodrigo Capelato, diretor executivo do Semesp, entidade que reúne as faculdades privadas, as universidades devem repensar seus currículos de TI, inclusive com disciplinas cursadas dentro das empresas, com certificações. “Hoje, se o aluno faz microcertificações independentes, tem mais chance de crescer no emprego do que fazer um bacharelado de 4 anos.”
Manter o curso atualizado, porém, não é tão simples quanto parece, dizem os gestores. “Para uma mudança muito grande no currículo, é necessário um trâmite burocrático com o MEC (Ministério da Educação). Não é algo que pode ser atualizado semestralmente”, diz Kátia Cristina Marcolino, coordenadora dos cursos de TI da Faculdade de Educação Paulistana (FAEP).
A Matemática é outro gargalo desde o 1º semestre. “O aluno acaba não acompanhando o conteúdo”, diz Kátia. “Disciplinas de Algoritmo e Lógica de Programação, por exemplo, exigem que os estudantes entendam o problema para desenvolver uma resposta. Muitos não conseguem.” Segundo o MEC, só 5% dos alunos terminam o ensino médio com desempenho adequado em Matemática.
A falta de afinidade de parte dos estudantes com a área é outro fator por trás do abandono. Muitos ingressam motivados pelas promessas de alto salário, de ser nômade digital ou pela pressão das famílias. “E, quando chegam na faculdade, não é exatamente o que imaginavam”, afirma Kátia.
Antes de ingressar, fique atento:
- O mercado de trabalho atrativo pode levar à escolha de cursos que não combinam com as afinidades e habilidades do aluno.
- Entenda por quais motivos você busca um curso na área de tecnologia. Se for motivado só pelo salário, pelo desejo dos pais ou por uma expectativa equivocada da carreira, é melhor repensar.
- Identifique se suas habilidades combinam com a área de TI, que exige que você tenha de lidar com lógica e cálculos, por exemplo.
- Verifique se a área de TI corresponde ao seu perfil. Conversar com profissionais da área pode ajudar na decisão do curso.
- Pesquise a grade curricular nos sites das universidades e saiba quais assuntos serão abordados nos cursos. Assim, são menores as chances de frustração.
- Lembre-se que a área de TI é um setor que muda constantemente. Mesmo com formação, o profissional deve ser autodidata e buscar atualizações com frequência.
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Não só programadores, mas líderes
Para os estudantes, é importante levar em conta que conhecimentos empíricos ou estritamente técnicos, como aqueles adquiridos em cursos rápidos, não contemplam a demanda por habilidades socioemocionais. “Serão ótimos programadores, por exemplo, mas terão dificuldade de assumir cargos de liderança, trabalhar em equipe, lidar com problemas, ter pensamento critico, se comunicar bem”, acrescenta Capelato.
“Estamos falando sobre aprimorar a capacidade de pensamento crítico”, afirma Marcelo Martin, especialista em carreiras e performance profissional, ao ressaltar a importância de uma graduação.
Foi sabendo disso que o desenvolvedor de sistemas Guilherme Braga, de 22 anos, resolveu mudar de faculdade, em vez de desistir. Após três semestres em um curso que, segundo ele, estava desatualizado, Braga ingressou na Faculdade de Informática e Administração Paulista (FIAP), no ensino a distância.
Para ele, a decisão de continuar na universidade, mesmo já trabalhando na área, não veio com o objetivo de adquirir habilidades práticas, mas com vistas em crescer na carreira. “Para o mercado, é mais importante saber fazer do que ter diploma quando você busca emprego, mas não quando quer se manter e crescer em uma posição. Nesse caso, apenas com a mentalidade que a universidade te entrega”, avalia.
Conforme explica Andrea Deis, especialista em desenvolvimento de empresas e pessoas, são as habilidades comportamentais desenvolvidas na universidade que diferenciam o profissional que provavelmente ocupará os cargos de lideranças em grandes empresas do setor.
“Sem formação universitária, você não tem visão estratégica e global. Seu olhar fica voltado para uma coisa só, para um conhecimento. E isso torna mais difícil que essas pessoas ocupem cargos de coordenação, gestão e liderança”, diz.
Como melhorar a retenção dos alunos de TI?
Preocupadas com o risco de evasão, as instituições de ensino têm adotado estratégias para reter alunos. A Faculdade de Informática e Administração Paulista (FIAP) diz apostar em atualizações semestrais da grade curricular, com objetivo de manter o curso atrativo e conectado às necessidades do mercado.
Segundo Wagner Sanchez, pró-reitor da faculdade, tecnologias de inteligência artificial, como o ChatGPT, que ganharam força no último ano, devem fazer parte dos assuntos aprendidos pelos alunos no próximo semestre. “Essa agilidade é importante para o aluno se sentir realizado, em especial nos cursos de tecnologia, em que tudo muda muito rápido. E isso reflete em taxas de evasão menores.”
Além disso, estudantes da FIAP também recebem certificações parciais a cada semestre concluído. Para Sanchez, esse é outro caminho para motivar o estudante. “É uma forma de atestar as habilidades e competências do aluno ao longo da jornada acadêmica e não apenas no final da graduação”, afirma.
No Instituto Mauá de Tecnologia, o primeiro ano dos cursos de tecnologia possui matriz curricular comum, com matérias focadas na formação básica em computação. Outra estratégia é oferecer aos alunos mentorias e palestras com profissionais da área. Para Ana Paula Serra, coordenadora dos cursos de Ciência da Computação e Sistemas de Informação do instituto (inaugurados em 2022), isso ajuda a identificar o curso que mais combina com cada perfil e ter escolhas mais assertivas.
“Também temos parcerias com empresas que trazem problemas reais para o aluno resolver”, explica. “Isso é bem importante para que o estudante esteja antenado ao que o mercado pede e saiba como aplicar o conhecimento aprendido.” O resultado, de acordo com ela, é uma tendência menor de abandono do que a vista no mercado. “A taxa de evasão nos cursos de Ciência da Computação e Sistemas de Informação é de 3%.” COLABOROU RENATA CAFARDO