A pesquisadora e escritora Cida Bento acredita que é preciso estar atento a possíveis reações de ressentimento das pessoas brancas em instituições que passam a promover projetos de equidade. “Por que agora só contrata negros, estão tão preocupados em trazer esse tema, de ler só esses livros?”, diz, referindo-se aos questionamentos que elas podem fazer.
Uma das grandes especialistas das relações entre raça, racismo e psicologia, Cida falou ao Estadão sobre o caso da Escola Vera Cruz, colégio particular de São Paulo onde a filha da atriz Samara Felippo teve o caderno roubado por colegas que escreveram uma ofensa de cunho racial nas páginas, além de terem arrancado folhas com um trabalho escolar.
“Elas não deveriam ser expulsas. Deveria ter um trabalho com essas crianças. Elas deveriam ficar na escola e lá aprender”, afirma Cida. “Entender o quanto foi grave o que ela fez, fazendo uma ação rotineira por certo tempo na escola. A escola tem de aprender e ser mobilizada a partir disso.”
Sobre a dificuldade da aluna vítima de racismo conviver com as colegas, Cida diz que é preciso focar no trabalho de construção de políticas de equidade. “É difícil mesmo, mas a gente vive todo dia. A convivência é importante. Não dá para você tirar todos os racistas das instituições”, acrescenta ela, que trabalha também com a discriminação racial no mercado de trabalho.
O colégio, na zona oeste, foi um dos primeiros na capital paulista a implementar um projeto antirracista. Em 2020, criou bolsas de estudos, contratou profissionais negros, fez mudanças no currículo e arrecadou R$ 4 milhões entre os pais. O programa inspirou outras escolas da rede particular nos últimos anos.
Para ela, é preciso acompanhar de perto, com “análise sistêmica”, como o assunto impacta as pessoas. “Esse exercício que o branco pode fazer ao implementar cada coisinha, no cotidiano, faz as pessoas avançarem. E não adianta só virar especialista de tanto ouvir palestra sobre racismo.”
Cida defende ainda criar “canais de escuta, acolher queixas de discriminação, situações de tensão” para entender “como é que está o termômetro da escola”.
A mãe prestou depoimento nesta terça-feira, 30, à polícia, criticou a escola e pediu expulsão das duas meninas de 14 anos. O Vera Cruz suspendeu as alunas, mas as famílias envolvidas comunicaram a decisão de tirar as filhas da escola.
Veja a seguir os principais trechos da entrevista.
Como você vê o caso de racismo que aconteceu no Vera Cruz e como as escolas devem agir de maneira geral?
Tenho acompanhado muito escolas particulares em São Paulo e é importante trabalhar com essas crianças e adolescentes porque são eles que vão ocupar lugares de parlamentares, empresários, juízes. Eles vêm dessas escolas, né? Tenho essa preocupação com a educação que essas crianças e adolescentes estão recebendo.
É importante uma atuação mais sistêmica, de uma escola não só ficar fazendo palestras. Ela tem de envolver várias dimensões. Escolas compram livros, brinquedos, cuidam da formação de professores. O tema equidade tem de entrar em tudo. E também a escuta, já que está trabalhando este tema, o que é que ele está suscitando entre alunos, professores. Nunca entrei numa instituição em que todo mundo concordasse com o tratamento desse tema. As pessoas ficam incomodadas, mas têm as relações empregatícias... É preciso acompanhar de perto como você está impactando as pessoas.
Você diz que as pessoas brancas podem ficar incomodadas de se dar preferência para contratação de pessoas negras?
Exatamente. Às vezes a pessoa liga o ‘piloto da branquitude’ no sentido de que, embora a escola comece a mudar a sua perspectiva, olhar para o currículo, para as suas relações, as brancas são as pessoas em lugares de decisão e são afetadas em diferentes níveis. O ressentimento aparece.
Por que agora só contrata negros, estão tão preocupados em trazer esse tema, de ler só esses livros? (Elas pensam) ‘agora tudo é racismo, tudo é preto’. É preciso estar atento a essa reação. E não é só o branco, é o masculino, é o cisgênero, é a pessoa sem deficiência, como ela reage quando você tem foco num determinado grupo.
E como fazer isso?
Você não vai tirar da escola aquele professor maravilhoso, mas que não aceita discutir isso, que acha que isso afeta o sistema meritocrático. Ele permanece na escola. Mas como é que vai trazer este tema e criar espaços para isso? Criar comitês de acompanhamento, saber de tudo que acontece, comitês que possam acolher queixas de discriminação, situações de tensão e aferir um pouco como é que está o termômetro da escola.
As pessoas brancas começam a entender racismo, mas o grande desafio é quando trazem isso para o cotidiano. Alguém que trabalha na gestão e tem de incluir esse tema no curso de formação de liderança.
Trabalhei com uma ‘head hunter’ para uma grande instituição de São Paulo e ela era uma mulher branca. Ela se sentia traindo as outras mulheres brancas quando estava trazendo negras, porque a vaga era uma vaga afirmativa, exigia inglês. Tinha negras com inglês fluente, mas havia brancas que tinham morado nos Estados Unidos e na Europa, conheciam a cultura. Ela achava que a instituição podia ter muito mais se contratasse as brancas. Você via nela um sentimento de dor.
É preciso compreender os processos que os brancos vivem, que os homens vivem quando se discute gênero, porque ele faz parte do que você tem de trabalhar dentro da instituição. É preciso trazer para a gestão, vai contratar um fornecedor para alguma coisa, traz a diversidade, dá uma olhada na lista de fornecedores que a escola tem para você trazer fornecedores mulheres, negros, pequenos negócios de pessoas com deficiência.
Que comece a exercitar isso. Você tem professores negros, bolsistas negros? Como é que começa a avaliar e entender a verdadeira integração deles na escola, como é que o currículo traz isso? Nos brinquedos, nas músicas. Esse exercício que o branco pode fazer ao implementar cada coisinha, no cotidiano, faz as pessoas avançarem. Não adianta só virar especialista de tanto ouvir palestra sobre racismo.
Discutir a branquitude também é importante?
O tema da branquitude é importante, assim como o da masculinidade, o das pessoas sem deficiência. Porque circula no imaginário de todos nós certa hierarquização, que se reflete na relação das crianças também. Está no degrau debaixo uma pessoa negra, uma pessoa indígena, no degrau debaixo de onde eu, criança branca, estou. O desafio de pensar a desigualdade e a diferença, tem de se exercitar todo dia porque tudo que as crianças aprendem na televisão e no cotidiano é contrário a isso.
Deveria haver expulsão das meninas que praticaram o ato racista no Vera Cruz?
Elas não deveriam ser expulsas. Deveria ter um trabalho com essas crianças, elas deveriam ficar na escola e lá na escola aprender, fazer alguma contribuição rotineira neste campo. Por exemplo, vamos fazer uma pesquisa para trazer livros de histórias sobre princesas negras para nossa biblioteca ou fazer algum tipo de atividade que elas fossem desenvolvendo ao longo do tempo, resenha sobre livros, uma pesquisa sobre brinquedos. E envolver todos os professores, os gestores, numa ação sistêmica mesmo. É bem importante você criar processos de aprendizagem para crianças. Entender o quanto foi grave o que ela fez, fazendo uma ação rotineira por um certo tempo na escola. A escola tem que aprender ser mobilizada a partir disso e não expulsar a criança.
A atriz Samara Felippo tem dito que é muito difícil para a filha conviver com as agressoras na mesma escola.
É difícil mesmo, mas a gente vive todo dia. Os jovens vivem com a polícia, não são nem vítimas de racismo, eles têm execução sumária. Ele se distraiu e qualquer coisa a polícia mata o jovem negro. Eu estou falando um caso extremo. Mas a convivência é importante. Não dá para você tirar todos os racistas das instituições. Então tem, sim, todo um trabalho de construção de políticas de equidade e ele é muito desafiador para quem fez o racismo e para quem sofreu. Guardadas as diferenças, não é a mesma coisa, não quero relativizar porque foi muito pesado o que as meninas fizeram, rasgaram e escreveram uma expressão horrorosa. Mas onde nasce isso é a grande questão.
Como assim?
Minha experiência é que algumas pessoas muito insatisfeitas fazem isso dentro das instituições. Elas têm ações violentas em alguns momentos. Elas estão muito desconfortáveis com aquele assunto que surgiu o tempo inteiro e elas não conseguiram avançar num território de equidade. Por isso que eu estou falando que eu acho que a discussão da branquitude é importante, a reação branca dentro de uma instituição. Os focos de rebeldia com relação ao tratamento deste tema, em algum momento ele explode. Eu não quero desanimar nenhuma instituição, ela tem que avançar nisso, mas é preciso ter uma estratégia sistêmica, ter alguém acompanhando para escutas regulares, semestrais, para ver como é que está o clima organizacional sobre isso para poder se antecipar também.
E como vê o papel do Ministério da Educação e das secretarias de educação?
Tem uma legislação específica sobre isso, que garante o pleno desenvolvimento de todas as crianças, pensar nas diferentes identidades. Mas precisa de mais campanhas sobre isso, mais materiais disponibilizados, mais processos de formação que possam ser acessados pelos professores. E mais instrução de como sistemicamente uma escola possa atuar, como, por exemplo, com espaços para queixas de discriminação, recebidas e acompanhadas. Mais informação sobre como a gestão pode lidar com isso, como pedagogicamente você pode lidar com isso. Racismo é crime inafiançável, as pessoas precisam entender o que é isso. Acontece em muitas escolas particulares e públicas, mas precisa avançar mais rápido no MEC e nas secretarias de educação.
Eu acho que o anti-racismo é o pilar principal da democracia. De certa maneira, é isso o que a sociedade tem que enfrentar, não é só essa escola, são todas, são os parlamentos, o Judiciário, as empresas. Elas têm que deixar de ser monolíticas, elas têm que ter políticas de equidade e tem que aprender a conviver a diversidade buscando a equidade.