O Brasil viu na última década um aumento na abertura de cursos de Medicina. Apesar das restrições impostas pelo Ministério da Educação (MEC), grande parte das faculdades têm conseguido protocolar pedidos de novos cursos por meio de decisões favoráveis na Justiça.
As graduações na área são um negócio atrativo para as instituições particulares. Isso porque as mensalidades são elevadas e as taxas de evasão e inadimplência, baixas.
Como o Estadão mostrou, há casos até de cursos que fizeram o vestibular e iniciaram as aulas antes que o processo de avaliação pelo MEC tivesse sido concluído. Agora, centenas de alunos de oito graduações de Medicina pelo País correm o risco de perder a vaga e nem conseguir transferência para outra faculdade.
“Não se pode formar médicos a granel, sem preparo. Essas pessoas irão tomar decisões erradas e os erros médicos vão aumentar”, disse ao Estadão o cirurgião gástrico Raul Cutait, que atua no Hospital Sírio-Libanês e membro da Academia Nacional de Medicina, sobre o aumento de abertura de cursos no País.
A Lei do Mais Médicos, em 2013, trouxe uma série de exigências estruturais para a liberar os cursos, como necessidade social, taxa de leitos por estudante e equipes de Saúde da Família na região. O objetivo da política é descentralizar os médicos para regiões onde há poucos profissionais por habitantes.
Em 2018, o governo editou uma moratória, vigente até o ano passado, que suspendia a criação de graduações em Medicina, mas as faculdades conseguiram protocolar o pedido da abertura de cursos por meio de decisões judiciais. A própria Lei do Mais Médicos foi questionada na Justiça, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) ratificou a constitucionalidade da regra. Outra crítica frequente das instituições de ensino é a demora do MEC na análise dos processos.
Para Cutait, a estratégia da Lei do Mais Médicos de interiorizar os cursos faz sentido, mas deve vir acompanhada de reforço de estrutura para o sistema de saúde nessas regiões e melhores condições para fixar os profissionais. Além disso, é necessário definir melhor os parâmetros de qualidade exigidos na formação.
“Quem vai ser responsável pelo erro médico? Porque os médicos estão despreparados para tomar decisões”, avalia ele, também professor da Universidade de São Paulo (USP). Leia os principais trechos da entrevista:
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A estratégia de abertura de cursos de Medicina priorizando regiões interioranas é adequada?
É uma boa estratégia em termos de conjunto de atendimento. Mas o sistema de saúde tem de ser favorável para que a Medicina possa existir lá. É preciso definir melhor o que se quer para formar um bom médico. A partir daí, depura. Se a faculdade está em um lugar pequeno, mas tem o que precisa, bom. Basta você criar a estrutura. E aí está o grande desafio. Não basta o médico, porque ele não é o sistema de saúde. Ele é parte do sistema de saúde. E isso está sendo conduzido como se ele fosse aquele que levará a saúde para a população, como um Dom Quixote. Não funciona assim.
Ele precisa estar preparado porque o médico tem a caneta. Pode fazer grandes intervenções e grandes bobagens se não estiver preparado para tomar decisões.
Como atrair médicos para essas regiões?
Os médicos vão, primeiramente, onde há condições de trabalho melhor, onde podem se desenvolver, estabelecer suas famílias. Os médicos estão concentrados, principalmente na região Sul e Sudeste, e “quase inexistentes” nas regiões Norte e Nordeste. Na verdade, seria preciso reestruturar o País.
Como avalia o cenário de judicialização dos cursos de medicina?
A iniciativa privada entrou para valer e virou um grande negócio. Tem vagas de faculdade de Medicina no interior do Norte e Nordeste sendo vendidas por R$ 2 milhões, R$ 2,5 milhões. De todas essas solicitações de abertura de faculdades, há as instituições que são ótimas e as que não têm estrutura para funcionar. Não é que se deva proibir de abrir (cursos de medicina). Deve proibir de funcionar aquelas que não têm competência.
Existe uma situação gravíssima porque a iniciativa privada tem o direito de abrir faculdade de Medicina e o MEC faz exigências não tão fortes. Logo, é um bom negócio. Houve pressão grande para liberar essas liminares todas, mas também uma pressão grande das entidades médicas para que isso não aconteça porque o mercado está ficando saturado de faculdades. E por questão de qualidade de formação, já que a partir do momento que se forma médicos mal preparados, dá um tiro no pé, criando a chance para a gente mal preparada atender a população.
Por que não deveriam ser abertas tantas faculdades de Medicina?
Toda a problemática não é abrir, já abriu demais. Temos o País com mais faculdade de Medicina no mundo. Mais que a Índia, que tem uma população 6 a 7 vezes maior que a nossa, um absurdo. Agora a batalha é: vamos dificultar a abertura de novas (faculdades); vamos apertar as faculdades para que funcionem bem. Aquelas que não atingirem um patamar de competência terão de se redirecionar, melhorar ou fechar.
Por que o senhor entende que as exigências do MEC não são “tão fortes”, mesmo com as regras e contrapartidas exigidas no edital do Mais Médicos?
Porque foi assim que foi feita a Lei dos Mais Médicos, não exigindo grandes comprometimentos no treinamento em nível hospitalar e atenção básica de saúde. Isso (lista de regras e contrapartidas exigidas) não significa nada. O ensino médico é diferente de atendimento médico. O hospital SUS é feito para atender, com todas as suas restrições e limitações, e não para ensinar. Para ensinar a estrutura de funcionamento é distinta. Posso ser um médico que opera muito bem, mas não tem o menor preparo para ensinar. São dois conceitos diferentes.
Além disso, havia o comprometimento de essas faculdades de terem programas de residência. Isso não está acontecendo. Nos dias atuais, já há um terço dos formandos sem acesso à residência médica. Com todas essas novas faculdades, mais da metade não terão acesso à residência, o que é um drama, porque a residência faz parte da formação do médico. Mesmo do generalista, não só do especialista.
O que a Lei dos Mais Médicos deveria exigir para que contemplasse melhor essas questões?
É uma longa discussão. É o MEC que define isso, é necessário que crie cenários mais difíceis de serem alcançados em relação a professores, instalações, instituições de treinamento. Se criar dificuldades, que não é para atrapalhar, mas sim para zelar pela qualidade do ensino, quem for bom sobrevive.
Criar mais dificuldades para abertura de cursos de medicina não pode tornar a classe médica ainda mais elitizada?
Não é verdade mais. Os médicos hoje vivem às custas de dar vários plantões, trabalhando excessivamente. Você está pensando nos médicos que trabalham nos grandes centros. Esses são exceção hoje. O médico hoje é um assalariado mal pago. Quando trabalha para plano de saúde, também é mal pago. Tem alguns médicos que ganham muito bem, mas o grosso ganha R$ 10 mil por mês. Ele precisa dar três, quatro, cinco plantões por semana para chegar no fim do mês e fazer uns R$ 20 mil. Para começo de carreira, se ele conseguir dar todos os plantões, até que sai na frente de outras atividades. Acontece que daqui 20 anos, ele estará nesse mesmo esquema, porque não está seguindo uma carreira, não está crescendo, está simplesmente dando plantão.
Mas na realidade brasileira, quem ganha de R$ 10 mil a R$ 20 mil é um profissional de classe alta.
A palavra elitizada não cabe. Pode-se dizer que, comparado com outras profissões, o médico começa melhor. Mas os conhecimentos médicos são efêmeros. O médico precisa se reciclar continuamente, fazer cursos de aperfeiçoamento, participar de congressos. Isso significa parar de trabalhar, gastar com as viagens, e os médicos novos não estão conseguindo fazer isso. É uma profissão diferente, não é puramente técnica. Não dá para simplificar: “Vou ter boas aulas, vou ser bom médico”. Preciso ter alguém que me ensine a me comportar como médico.
E, como professor, ao acompanhar esses alunos, qual a maior lacuna de aprendizagem que o senhor percebe e que poderia ser revista no ensino da Medicina?
Recebo estudantes das mais variadas faculdades de Medicina para passarem algumas semanas comigo. Vejo o grau de falta de aprendizado que eles têm, tanto de conhecimentos quanto de comportamento. Dou a eles a oportunidade de passar em visitas comigo, de ver como converso, como a gente toma decisão. Eles assistem a cirurgias, participam de reuniões clínicas. Quando acaba o estágio e pergunto o que mais gostaram, a maioria responde que foi ter entendido como me relaciono com seus pacientes. De novo, é o comportamento.