Não adianta apenas estar na escola - o crescimento de uma nação depende da qualidade da educação dada às suas crianças e jovens. É o que diz a vencedora em 2019 do prêmio Nobel de Economia, a francesa Esther Duflo, que está no Brasil esta semana para palestras, uma delas sobre a importância da educação infantil. “O desenvolvimento de um país está muito relacionado com o que as crianças aprendem quando vão à escola”, afirma, em entrevista exclusiva ao Estadão.
“Hoje em dia, é muito menos sobre quantidade, porque a maioria vai à escola, mas se olhar os gráficos, os países africanos mais pobres têm resultados piores em avaliações, e depois vêm países de renda média e os de alta renda.” Um dos problemas, diz ela, é que as crianças não conseguem relacionar questões cotidianas com a aprendizado escolar.
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Ela cita um estudo que fez na Índia, com adolescentes que trabalham em mercados e fazem contas facilmente para vender produtos, mas não conseguem resolver cálculos simples quando aplicados em provas. “Pensamos que essas habilidades poderiam ser transferidas de um domínio para outro, mas isso não ocorre naturalmente. Esse é o papel da escola: ajudar a criança a aprender em sua vida cotidiana.”
O centro dirigido por ela, Abdul Latif Jameel Poverty Action Lab (J-Pal), do Massachusetts Institute of Technology (MIT), começou este ano um programa no Brasil para mapear iniciativas que melhorem a aprendizagem de crianças na pré-escola (4 e 5 anos idade).
Em parceria com a Fundação Bracell, organização brasileira voltada para a educação infantil, o projeto pretende replicar nos Estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Bahia o que tiver evidência de sucesso. “Nossa ambição e esperança é experimentar com parceiros para mostrar o que funciona e o que não funciona. E, se algo funcionar, espalhar a mensagem e torná-la mais amplamente utilizada”, explica.
Para ela, a educação infantil é essencial no desenvolvimento porque faz a ponte entre a fase em que a criança aprende de forma natural, em casa, com a família, para o momento em que é alfabetizada, por exemplo. “A pré-escola prepara as crianças para essa transição crucial, dando as habilidades sociais, cognitivas e emocionais necessárias para lidar com as exigências da educação formal.”
A economista que ganhou o Nobel por seus trabalhos sobre redução da pobreza tem defendido mundialmente também a taxação dos super ricos e o uso desse dinheiro para amenizar os impactos da crise climática.
Questionada se os recursos também poderiam ir para a educação, ela diz que não. “A única maneira de resolver este problema é dizer: vamos fazer algo muito simples com esse dinheiro. E se chegarmos à educação, isso não é simples, porque você tem de fazer muitas escolhas. É por isso que recomendo transferências diretas de dinheiro (para pessoas e países).”
Veja a seguir os principais trechos da entrevista:
Como a senhora vê a relação entre educação e o desenvolvimento de um país?
Eles se complementam em todos sentidos. A educação é muito importante para o desenvolvimento do país, não apenas para fazer o desenvolvimento, mas também porque pais educados são melhores em ajudar seus filhos. Fizemos um estudo em Gana, onde a escola não é gratuita, e as crianças vão até certo ponto, mas não conseguem continuar se não tiverem dinheiro para pagar as taxas escolares. A educação costumava ser cara. Então, de 2000 a 2008, oferecemos bolsas para meninas e meninos irem para o ensino médio, e desde então conseguimos acompanhá-los.
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Agora eles têm filhos e descobrimos algo realmente importante: a taxa de mortalidade infantil foi reduzida pela metade quando a mãe foi à escola. Quando seus filhos chegaram aos 7 anos e era hora de eles irem à escola, suas próprias pontuações cognitivas eram muito melhores quando sua mãe era educada. Isso realmente mostra o quão importante, o quão crítico é ter acesso à educação.
Agora, no mundo, há bom acesso à escola primária, mas o acesso ao ensino médio e superior é o próximo passo. Isso se conecta ao meu segundo ponto, que é a qualidade da educação. E aí há uma conexão no sentido oposto, ou seja, os países pobres têm escolas de qualidade muito inferior. Está claro que o desenvolvimento do país está relacionado com o que as crianças aprendem quando vão à escola.
Hoje em dia, é muito menos sobre quantidade, porque a maioria das pessoas vai à escola, mas se olhar em um gráfico, os países africanos mais pobres têm resultados piores em avaliações, e depois (com resultados melhores) vêm os países de renda média e os de alta renda. No topo, estão Cingapura e Coreia.
A qualidade da educação está em níveis inferiores. As próximas duas fronteiras, de certa forma, são o acesso ao ensino superior e a qualidade da educação para as escolas, como as crianças estão aprendendo, o que estão aprendendo.
A senhora falou em ensino médio, o que acha de programas que dão dinheiro para o aluno não abandonar a escola, como o que o Brasil lançou há pouco tempo, o Pé de Meia?
A mensagem para crianças mais velhas é útil, dar a elas uma razão para ficar. Mas a próxima questão é: uma vez que estão na escola, certifique-se de que esse tempo seja bem utilizado. Uma das coisas que o Pisa (avaliação feita pela OCDE com estudantes de 15 anos) também mostra, e não sei se é verdade no Brasil, mas é definitivamente verdade na Índia: não é apenas uma questão de ser um país de renda média ou não. É preciso entender a relevância do que estão aprendendo.
No Pisa, as crianças foram solicitadas a aplicar conceitos matemáticos a problemas práticos e descobriu-se que eles acham isso muito difícil de fazer. Fizemos um estudo na Índia com jovens de 14 e 15 anos que trabalham em mercados. As crianças que trabalham nos mercados são muito boas em aritmética, fazem cálculos rapidamente.
Elas são flexíveis, conseguem contar. Mas se apresentar o problema de forma abstrata, como por exemplo, 27 menos 13, elas não conseguem resolver. E não é porque não conseguem ler, pois seria possível perguntar de várias maneiras. Mas é porque os sistemas mentais que elas têm para resolver problemas se perdem assim que é apresentado como problema escolar.
Portanto, elas são completamente travadas pela abstração. Por outro lado, as crianças que estão na escola ou que estão acostumadas a lidar com esse tipo de problema abstrato se saem melhor, mas têm dificuldades com problemas práticos que surgem no mercado ou na comunidade escolar.
Isso mostra que, normalmente, pensamos que essas habilidades poderiam ser transferidas de um domínio para outro, mas isso não acontece naturalmente. Esse é um papel da escola, ajudar as crianças a aprenderem em sua vida cotidiana. E, inversamente, como aplicar princípios gerais na vida real. E atualmente parece que é nessa faixa etária, do ensino médio que é necessário direcionar melhor essas habilidades por meio da escola.
E qual a importância da pré-escola, foco do seu projeto aqui no Brasil?
A pré-escola desempenha papel importante em vários aspectos. Quando as crianças são muito pequenas, aprendem de maneira incrível. Desde o nascimento, elas já têm uma estrutura matemática básica em seus cérebros, que não precisam ser ensinadas. Absorvem muitas informações rapidamente, como aprender palavras e outras habilidades.
No entanto, quando começam a frequentar o 1º ano do fundamental há mudança significativa. É um ponto crítico onde passam, de aprender de forma natural e interativa com o mundo ao seu redor, para aprender principalmente por meio de um professor ou de livros.
Isso representa uma transição enorme, e aprender a ler é um marco fundamental nesse processo. Quando uma criança aprende a ler, há uma explosão no ritmo e na profundidade do aprendizado, o que provoca mudanças nas conexões cerebrais.
Essa transição do ambiente doméstico para o escolar pode ser bastante difícil, pois é uma mudança drástica na forma como a criança absorve conhecimento. A pré-escola, portanto, prepara as crianças para essa transição crucial, dando as habilidades sociais, cognitivas e emocionais necessárias para lidar com as exigências da educação formal.
No estudo realizado em Gana, observamos que pais mais escolarizados desempenham papel crucial em ajudar a reduzir essa lacuna de transição. Um dos pontos importantes é o envolvimento dos pais.
Mesmo os que não têm educação formal, podem contribuir significativamente desde o início, interagindo e conversando com seus filhos. Estudos mostram que esse envolvimento precoce é fundamental, mesmo antes de a criança começar a falar, pois ajuda no desenvolvimento cognitivo e na preparação para a educação formal.
E a pré-escola complementa o que eles fazem, proporcionando um ambiente estruturado onde as crianças aprendem de forma lúdica e interagem com diferentes pessoas, desenvolvendo habilidades sociais essenciais para a transição para o ensino fundamental.
Devemos encarar a pré-escola, especialmente para famílias pobres, como um lugar holístico que não apenas prepara as crianças, mas também envolve os pais no processo educacional dos filhos. É um ambiente onde a experimentação é incentivada, buscando maneiras eficazes de preparar as crianças para o sucesso acadêmico e social.
O problema é que a pré-escola não é obrigatória em muitos países (no Brasil é obrigatória a partir dos 4 anos).
Na França é, inclusive, gratuita. Mas nos Estados Unidos, não, e ainda é muito cara. As famílias ricas estão pagando por isso e as probabilidades não são boas para subsidiar programas. Isso é terrível. Vemos que, quando as crianças frequentam esses programas subsidiados, ainda há benefícios vários anos depois, especialmente quando a pré-escola é de boa qualidade.
Qual é o objetivo do programa de pré-escola que vocês farão no Brasil?
Olhar para o que está sendo feito. É um lugar de experimentação. No Brasil, há uma estrutura descentralizada, com os municípios, etc, onde há muitas escolas e as pessoas têm todo tipo de boas ideias. A ideia é também olhar para isso, talvez trazer algumas experiências para nós.
Tenho trabalhado em educação matemática na pré-escola com um psicólogo de Harvard (universidade americana), e temos um programa na Índia que estamos interessados em trazer para cá. Então, queremos descobrir o que está sendo feito, tentar experimentar com parceiros para mostrar o que funciona e o que não funciona. E, se algo funcionar, espalhar a mensagem e torná-lo mais amplamente utilizado. Essa é a ambição e a esperança para os próximos anos.
Qual o trabalho que a senhora faz com matemática?
Eu estava dizendo que as crianças nascem com uma estrutura matemática, não apenas as crianças. Na verdade, até os pássaros conseguem comparar mais e menos. Elas conseguem se orientar no espaço antes mesmo de você lhes ensinar como fazer isso, entendem a diferença entre formas, lidam com pequenos números com precisão.
Isso é o que chamamos de matemática não simbólica ou matemática intuitiva. E isso pode também ser cultivado com jogos. Desenvolvemos um jogo, com um especialista em jogos, que as crianças podem jogar na pré-escola. Começa treinando essas habilidades não simbólicas através de jogos, e então faz a transição para o simbólico.
Assim, usando a mesma estrutura de jogos, antes você comparava pontos e agora tem realmente o número. Já percebemos ganhos e está sendo ampliado em vários Estados na Índia. Estamos interessados em explorar a adoção desses jogos no Brasil.
A senhora tem defendido a taxação dos super ricos e que esse dinheiro seja direcionado para o impacto da crise climática. Pode explicar melhor a proposta?
Na maioria dos países, a taxa de imposto é progressiva até certo ponto e, em seguida, em algum momento, quando atinge um determinado patamar, pode escapar totalmente da tributação. Assim, as pessoas mais ricas nos Estados Unidos, por exemplo, pagam menos impostos. Estamos falando do topo: não são os ricos, são os muito, muito ricos.
E a razão é muito simples: elas não têm um salário. Elas têm empresas. Elas não se pagam um salário. E elas nunca retiram o dinheiro; ele é constantemente reinvestido. Os ganhos de capital que obtêm não são contabilizados como renda. Ou mesmo a renda que recebem de seus investimentos não aparece como renda tributável.
Portanto, como resultado, há um número relativamente pequeno de pessoas que estruturam sua renda de tal maneira que a maior parte dela não é tributável. É meio senso comum que isso deveria ser incorporado a um nível de tributação que seja o mesmo para todos na economia. É por isso que essa proposta está surgindo, de taxação de 2% sobre a riqueza a cada ano.
Qualquer país poderia decidir implementar o sistema e depois usar o dinheiro para qualquer necessidade que tenha. E as mudanças climáticas acontecem devido às emissões de pessoas ricas, principalmente em nações ricas, mas também algumas pessoas ricas em países de renda média baixa. Mas está afetando principalmente as pessoas pobres, que não estão protegidas e vivem em locais mais vulneráveis. É realmente uma injustiça chocante.
Isso precisa ser abordado do ponto de vista ético moral, para que todos possam reconhecer. Se por um lado decidimos consumir o que mata as pessoas e devemos fazer algo para compensá-las, por outro lado, do ponto de vista político pragmático, os países pobres também precisão reduzir emissões no futuro. Não há muitas emissões agora, mas eles se tornarão parte do problema.
É importante ter algo como um acordo, encontrar uma maneira de compensar pelo menos pelo subproduto das emissões atuais, compensar os mais pobres e fazer isso de uma forma que vai salvar vidas e meios de subsistência. E assim penso em transferências de dinheiro (para pessoas e países). E talvez em troca haverá um esforço para reduzir emissões.
E esse dinheiro poderia ir para a educação também?
Se houvesse dinheiro, não há dinheiro agora, mas se houvesse mais dinheiro, como gastaríamos e quem administraria? Acho que a única maneira de resolver este problema é dizer: vamos fazer algo muito simples com isso. E se chegarmos à educação, isso não é simples. Porque você tem de fazer escolhas. É por isso que recomendo transferências de dinheiro.
A senhora se preocupa com os impactos da crise climática na educação, como ocorreu nos Rio Grande do Sul, em que várias escolas foram destruídas e crianças ficaram sem aula por muito tempo?
Isso é preocupante. São milhões de crianças que perderam dias de aula em maio devido às ondas de calor no Sudão, todas as escolas foram fechadas no Paquistão e na Índia. Os fechamentos das escolas na pandemia tiveram consequências graves, e ainda sofremos com esses efeitos, tentando nos recuperar.