Pedagogos e especialistas do mundo todo defendem que o ensino presencial é insubstituível na educação básica. O ensino remoto, implementado com mais ou menos sucesso durante os meses da pandemia, foi uma solução emergencial. Mas lugar de criança e de adolescente é na escola. A questão agora é outra: como terá de ser essa escola?
Além de lidar com deficiências históricas, que ficaram ainda mais expostas na pandemia, as escolas precisam encarar desafios cujas proporções ainda são desconhecidas. Os longos períodos de fechamento podem ter um impacto irreversível no aprendizado de crianças, especialmente as que se encontram em situação mais vulnerável.
"A pandemia aprofundou e escancarou as desigualdades. Temos a responsabilidade coletiva de apoiar os mais vulneráveis, de contribuir para reduzir fissuras sociais duradouras que ameaçam a humanidade", afirma Marlova Jovchelovitch Noleto, diretora e representante da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil.
Um objetivo que somente será alcançado se todo o sistema educacional for revisto: financiamento; infraestrutura das escolas; currículo escolar; formação de professores; comunicação com as famílias. E desde que tudo isso seja feito a partir de uma ação articulada dos três níveis de governo.
Na questão do financiamento, o que se vê, por enquanto, é o País na contramão. Dados do relatório Education at a Glance 2021, feito pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e divulgado no último dia 16, mostram que o Brasil não registrou nenhuma mudança fiscal no orçamento para a educação básica nos anos de 2020 e 2021. Seguiu direcionando 4% de seu PIB para essa área. A maioria dos países, aponta o levantamento, aumentou o orçamento para fornecer suporte digital aos alunos durante a suspensão das aulas presenciais; para contratar mais professores e assegurar reforço escolar; ou ainda para reduzir o número de alunos em sala de aula.
Além de aumentar o investimento na área, é também preciso repensar o currículo. Um caminho é "contemporizar" a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Apesar de ter sido desenhada em um contexto pré-pandemia, ela pode ajudar no replanejamento curricular. "A BNCC pode ser utilizada para definir o que é mais essencial e o que pode ser dado posteriormente, porque é impossível imaginar que alguma escola vai conseguir cumprir tudo que deveria ter acontecido em 2020 e 2021", avalia Maria Helena Guimarães de Castro, presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE).
E o essencial, neste momento, é acolher os estudantes. "Psiquiatras e pedagogos mostram, com pesquisas, os problemas enfrentados pelos pequenos ao voltar às aulas, como medo e insegurança. As escolas têm o desafio de fazer as crianças voltarem a enxergar a escola como espaço de aprendizado e interação", diz Maria Helena.
Uma vez acolhidos, o desafio será lidar com as defasagens de conhecimento. Um exemplo dado pelo secretário de Estado da Educação de São Paulo, Rossieli Soares, ajuda a entender o tamanho do gargalo. Imagine uma criança que concluiu o 3º ano do ensino fundamental em 2019. Ela ainda estava terminando de consolidar seu processo de alfabetização quando as aulas foram interrompidas. Após percorrer o 4º e o 5º ano sem frequentar a escola, ela voltará ao colégio em 2022 já matriculada no 6º ano.
"Falamos de alunos que vão de um estágio para outro no qual há uma grande mudança e eles não viveram isso dentro da escola", diz Rossiele. "Não dá para dizer que vamos cumprir tudo do currículo. Teremos de fazer escolhas, priorizar algumas habilidades mais essenciais."
A rede estadual de São Paulo produziu material de reforço desenhado exclusivamente para a pandemia. E, no ano que vem, segundo o secretário, esse conteúdo será ainda mais específico, a partir das avaliações diagnósticas que estão sendo feitas agora, no retorno presencial.
Entre as ações consideradas, estão a recuperação no contraturno e a contratação de professores alfabetizadores para suprir déficits de aprendizagem, como é o caso da criança que pode chegar ao 6º ano sem estar completamente alfabetizada.
No caso dos adolescentes, o desafio da escola será atrair o estudante de volta à sala de aula. E só a perspectiva de aprender não deverá ser suficiente. "Em 2019, antes da pandemia, a taxa de abandono dos alunos com idade entre 15 e 17 anos já era muito alta, de 28%. Imagine agora. Temos uma crise econômica e esse jovem está em uma situação na qual precisa trabalhar. Precisa ter política pública de complementação da renda para que esses jovens consigam voltar", afirma Maria Helena, do CNE.
São pontos que mostram que abrir o portão é apenas o primeiro passo. A escola que surge depois da pandemia tem desafios complexos, e não são apenas os relacionados à aprendizagem.
Vulnerabilidade e exclusão
Estudos, pesquisas e os acontecimentos do dia a dia mostram que as escolas, além de serem voltadas ao aprendizado, representam locais de proteção social. Criança na escola diminui casos de violência, de negligência, de fome.
A falta de acesso a escolas também resulta em maiores desigualdades de gênero, com risco de um retrocesso na condição social de milhares de alunas. "Escolas fechadas significam, para muitas meninas, um aumento na carga de trabalho não remunerado, seja na própria residência ou na dos outros. Elas retomam uma prática de trabalho doméstico que pode significar um condicionamento do seu destino", analisa Marlova, da Unesco.
O prejuízo de manter escolas fechadas também é muito grande para crianças e adolescentes no contexto de inclusão. "Pesquisas do mundo todo mostram que crianças com deficiências têm de receber prioridade no retorno. Porque, muitas vezes, essa criança não consegue ter o que precisa para se desenvolver em casa. Uma interrupção para esse público pode ser mais grave (do que para crianças sem essa condição)", observa Maria Helena.
De toda forma, como lembra a presidente do Conselho Nacional de Educação, a obrigatoriedade da frequência escolar está prevista em lei e é preciso progressivamente preparar o retorno às aulas, garantindo e respeitando os protocolos de biossegurança sanitária.
A rede estadual de São Paulo planeja o retorno obrigatório ao ensino presencial, atualmente opcional. O plano envolve diálogo com as equipes de saúde sobre as condições ideais para a medida. "Entendemos que deverá haver uma fase intermediária, com o distanciamento entre os alunos e um revezamento. A escolha opcional pelo ensino remoto permaneceria para os casos de comorbidades graves", diz Rossieli.
No Brasil, a volta às aulas é atribuição de cada município. É o prefeito quem decide se as escolas, sejam elas públicas ou privadas, podem voltar a funcionar e qual o protocolo a seguir.
Dados do já citado relatório Education at a Glance 2021, da OCDE, também mostram que o Brasil foi o país que manteve a pré-escola e o ensino fundamental sem aulas presenciais por mais tempo, durante a pandemia em 2020, entre todas as nações analisadas, o que incluiu países como EUA, Portugal, Alemanha, Canadá, México e Peru. Ao todo, foram 178 dias com as escolas fechadas no País durante o ano passado.