Secretários estaduais de Educação entregaram na tarde desta segunda-feira, 3, documento ao Ministério da Educação (MEC) que pede aumento da carga horária das disciplinas de formação básica do ensino médio, como Português, Matemática, História e Biologia. A reforma dessa etapa de ensino reduziu o tempo destinado a essas matérias para incluir no currículo itinerários formativos de áreas variadas, o que tem sido alvo de críticas de parte dos especialistas, professores e alunos.
A proposta, segundo o Estadão apurou, se assemelha ao que o governo federal pretende anunciar após o fim da consulta pública sobre o novo modelo. Antes da reforma do ensino médio, os três anos dessa etapa tinham 2,4 mil horas de disciplinas obrigatórias. Com a mudança, esse total passou a ser de 1,8 mil horas e o restante (1,2 mil horas) corresponde a carga flexível do currículo.
Segundo o documento ao qual o Estadão teve acesso, o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) pede que 300 horas das 1,2 mil horas dos itinerários formativos sejam usadas para formação geral básica ou mesmo mantidas nos itinerários, de acordo com as necessidades de cada Estado. Essas 300 horas seriam “ajustáveis” , afirmou com o presidente do Consed, Vitor de Angelo.
O documento ainda sugere que o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) tenha um primeiro dia que avalie a formação geral básica, além da redação, e um segundo dia de provas de acordo com o aprofundamento escolhido pelo estudante. Para os secretários, já em 2024 o Enem deve mudar para contemplar as mudanças do novo ensino médio. “Ainda que haja um processo de construção que siga por 2025, 2026, até que cheguemos a um ponto de maturidade, não abrimos mão da defesa de que já em 2024 tenhamos um Enem que não contemple apenas a formação geral básica, mas no seu segundo dia também os itinerários”, disse de Angelo.
“Esses itinerários representam a diversidade de interesses, aptidões e projetos de vida dos jovens, e devem ser valorizados como parte integrante da sua formação e, consequentemente, como critério para acesso ao ensino superior”, diz o texto do Consed apresentado ao MEC. A ideia, segundo de Angelo, é utilizar o que os itinerários têm em comum para a avaliação.
O conselho também defende elaborar uma base dos itinerários formativos, ou seja, um direcionamento maior de como a parte flexível do currículo deve ser oferecida. Pelo modelo implementado, as redes de ensino têm liberdade para definir os itinerários formativos.
Para os secretários é preciso ter “um orientador comum nacional que mitigue a desigualdade entre as redes na parte dos itinerários”. A falta de qualidade de boa parte dos percursos formativos oferecidos é uma das principais queixas em relação á reforma.
Ainda de acordo com os secretários, só com pagamento de cerca de 40 mil novos professores para o novo ensino médio, os Estados passaram a investir R$ 2,2 bilhões ao ano.
A consulta pública no MEC sobre o novo ensino médio foi prorrogada até 6 de julho a pedido de entidades, uma delas o Consed. A pasta recebeu até sexta-feira, 30, cerca de 75,5 mil respostas aos formulários disponibilizados na internet durante o processo dee escuta - 57 mil alunos, 15 mil professores e 3 mil gestores. Com o fim da consulta, o MEC deve divulgar em até um mês um documento com propostas de mudanças para o novo ensino médio.
A pesquisa feita pelo MEC já identificou algumas tendências de alunos e professores a respeito da reforma. Um dos consensos é a opinião de que a educação a distância, permitida nos itinerários, deve ser usada só de forma complementar. Outro ponto identificado é que os professores consideram que a formação recebida para lidar com o novo ensino médio é insuficiente.
O governo descarta uma revogação total do modelo - como reivindicado por parte das entidades, incluindo algumas de esquerda - e pretende fazer ajustes que conciliem as principais críticas à reforma, como o aumento da carga horária destinada à formação básica. A proposta de aumentar esse teto segue em linha também com o que pedem organizações ligadas à área, como o Todos Pela Educação e de pesquisadores do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP) por meio da cátedra Instituto Ayrton Senna. O ministério pretende construir um documento baseado em consensos para evitar desgastes.
“Não tem solução fácil para problemas complexos. Todo mundo acha que pode ser fácil, numa canetada, mas não é fácil”, afirmou a secretária de Educação Básica do MEC, Kátia Schweickardt, sobre a consulta pública, durante o evento em que receberam o documento do Consed. “A grande lição dessa consulta é que estamos com a possibilidade de discutir democraticamente essa e tantas outras políticas públicas importantes.” Segundo ela, é preciso olhar para os 6,6 milhões de jovens que estão no ensino médio e para os 460 mil que já o abandonaram porque “a escola não fala com eles”.
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Mudança no Enem foi adiada após pressão
Após pressões de entidades estudantis e parte das associações do setor que pediam a revogação da lei sobre a reforma, o governo federal suspendeu em abril o cronograma de implementação do novo ensino médio.
A medida, na prática, impediu apenas que o Enem fosse mudado em 2024 para se adequar ao novo formato. Para o exame deste ano, já não eram previstas mudanças e a prova segue o mesmo formato de ediçõres anteriores.
O novo modelo do ensino médio está funcionamento nas escolas públicas e particulares do País desde 2022. Em entrevista ao Roda Viva, da TV Cultura, no mês passado, o ministro da Educação, Camilo Santana, disse que foi um “grande equívoco reduzir a carga horária da base comum curricular”, referindo-se às horas que ficaram destinadas à formação básica – disciplinas tradicionais como Português, Matemática e Biologia - no novo modelo.
“Também temos de olhar o Enem e estimular a formação do ensino profissionalizante, focar nas vocações do mercado de trabalho”, acrescentou Camilo.
Outro ponto que o MEC pretende explorar é o afunilamento dos itinerários oferecidos, assim como pede o Consed. A pasta quer construir com os Estados um mecanismo para regular a formação flexível, de modo que as redes tenham mais controle sobre o que é oferecido aos alunos.
Atualmente, uma das principais críticas contra a reforma é a discrepância entre os itinerários oferecidos em todo País. A pasta pretende garantir que haja opções de escolha, por exemplo, em municípios onde há apenas uma escola de ensino médio. Apesar de o Consed pedir também uma melhor organização dos itinerários, o presidente do órgão e secretário do Espírito Santo, Vitor de Angelo, diz que há muitos temas relevantes nas trilhas que os Estados oferecem. “Isso para afastar a ideia de que esses itinerários surigram do nada, aos montes, e que isso cria um cenário caótico que invibiliza a reforma, o que que não é nossa conclusão”, afirmou.
Segundo o estudo do Centro Lemann na Universidade de Stanford, intitulado Policy Review: Insumos para a reforma do Ensino Médio, países desenvolvidos têm currículos flexíveis, o que é uma das ideias principais do novo ensino médio, mas as opções de escolha são reduzidas. A pesquisa mostra ainda que essas nações investem fortemente para que o alunos cursem o ensino profissional e tecnológico junto com o médio. No Brasil, só 10% dos alunos estão nessa modalidade, quando a taxa é de 68% na Finlândia e de 49% na Alemanha. O técnico é hoje uma das opções de itinerários que podem ser oferecidas no novo ensino médio brasileiro.
Em geral, no exterior, são duas ou três trilhas possíveis para o adolescente escolher, que incluem um caminho mais acadêmico e outro técnico profissional, como na Finlândia, em Portugal e na Austrália. Há países, como a Alemanha, em que o estudante sequer pode optar, o que determina seu ensino médio são suas notas e avaliações feitas por professores aos 10 anos de idade.
No Brasil, Estados atualmente oferecem até 17 itinerários formativos no novo ensino médio, segundo o estudo, mas nem sempre com qualidade ou em todas as escolas. Críticos da reforma afirmam que a amplitude e o pouco direcionamento do MEC para criação das trilhas foi um dos motivos dos problemas atuais.
Uma das preocupações que a pasta também pretende sanar é relacionada ao ensino médio noturno. Há visão de que é preciso adaptar o modelo aos estudantes que recorrem a esse turno. Isso porque, em sua maioria, são alunos que trabalham durante o dia, o que dificulta a extensão da carga horária, que muitas vezes é oferecida de forma precária no novo modelo. O impacto da reforma no ensino médio noturno é um dos principais questionamentos de entidades de esquerda como a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE).
Em abril, antes de anunciar oficialmente a suspensão do cronograma de implementação do novo ensino médio, o ministro da Educação participou de uma reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para explicar a questão. Na ocasião, uma das pessoas chamadas por Lula para participar do encontro foi o presidente da CNTE, Heleno Araújo, que defende a revogação da reforma.
Uma pesquisa feita pela Rede Escola Pública e Universidade (Repu) sobre a rede estadual de São Paulo, em 2022, identificou que 28,6% das aulas de itinerários do período noturno estavam sem professor. A pesquisa é um dos estudos usados pelas entidades contrárias à reforma para argumentar pela sua queda.
O documento do Consed também diz que os secretários são contra revogação do novo modelo. “Não é razoável pensar em descartar todo esse esforço técnico e financeiro despendido pelas redes estaduais ao longo dos últimos anos. Além de inviável, essa opção, em nenhum momento, foi considerada pelos gestores estaduais, que são os responsáveis pela etapa de ensino na rede pública”, diz o texto.
Segundo levantamento feito pelo Consed em 20 Estados, 42.946 novos professores foram contratados de 2020 a 2023 para atender o novo ensino médio. Além disso, 19.693 professores que já atuavam nas redes tiveram sua carga horária aumentada. “Se for considerado o piso nacional do magistério de R$4.420 para esses 43 mil novos professores, são pelo menos R$ 190 milhões de investimento dos Estados por mês para implementar a reforma, o que resulta em R$ 2,2 bilhões ao ano, sem considerar o pagamento dos professores que tiveram sua carga horária ampliada”, informa o documento.
O que é o novo ensino médio? E o que é a reforma do ensino médio?
É uma mudança no formato do ensino médio (1º, 2º e 3º anos), aprovada em 2017, a ser seguida por todas as escolas do País, sendo públicas ou particulares. Cerca de 60% da carga horária passa a ser de conteúdos obrigatórios comum a todos, como Português, Matemática e Química. O restante (40%) é a parte flexível, com percursos optativos segundo o interesse do aluno ou uma formação técnica. O jovem pode, por exemplo, fazer curso técnico em Eletrônica ou aprofundamento de estudos em Linguagens durante o ensino médio, além da carga obrigatória.
Por que foi feita a mudança?
O argumento era de que o modelo anterior (com 13 disciplinas obrigatórias) era engessado e desinteressante ao jovem. No ensino médio, 90% dos concluintes saem sem saber o que se espera em Matemática e 60%, em Português. Além disso, há altos índices de abandono e a abertura da carga flexível serve ainda como oportunidade de abrir espaço para a formação técnica, muito valorizada, por exemplo, em países europeus.
Quem define os itinerários formativos?
A reforma deu liberdade para que as redes de ensino ou até as próprias escolas, no caso das particulares, definissem seus itinerários formativos, conforme os interesses dos alunos e a disponibilidade de recursos. É permitido às escolas, por exemplo, firmar parcerias com outras instituições (institutos federais, por exemplo), para ofertar essa carga horária flexível.