Qual é a saída para evitar o aumento de jovens nem-nem e brecar ‘círculo vicioso’ da pobreza?


Para o economista Naercio Menezes Filho, ausência de investimentos focados nas crianças desde os primeiros anos de vida pode perpetuar a pobreza

Por Vanessa Fajardo
Atualização:
Foto: Insper/Divulgação
Entrevista comNaercio Menezes FilhoProfessor no Insper

A condição social do nascimento de uma criança - seja ela repleta de privilégios ou em situação de vulnerabilidade - pode dar diretrizes do que será sua vida ao longo dos anos, segundo aponta o economista Naercio Menezes Filho, diretor do Centro Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância (CPAPI).

Professor titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper e associado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da Universidade de São Paulo (USP), Naercio defende que o investimento na primeira infância deve ser o principal aliado no combate às desigualdades sociais e o instrumento mais poderoso para quebrar o círculo vicioso da pobreza entre as crianças nascidas em famílias pobres.

“Estas se tornam adolescentes nem-nem (nem trabalham e nem estudam), têm filhos mais cedo, que também serão pobres e assim por diante”, diz.

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Para o especialista, a educação de qualidade precisa ser garantida ao longo da vida escolar da criança, de forma encadeada, pelas diferentes instâncias do governo. Um dos entraves atuais do Brasil é a alfabetização: só 56% das crianças matriculadas em escolas públicas atingiram o patamar definido pelo Ministério da Educação para o 2.º ano do ensino fundamental.

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A falta de proficiência para ler e escrever desencadeia vários problemas que afetam a aprendizagem e desenvolvimento do aluno nos anos escolares subsequentes. O economista abordou este e outros temas, como a escola em tempo integral, na entrevista abaixo.

Naercio é um dos participantes do Reconstrução da Educação, evento promovido pelo Estadão, nesta segunda-feira, 18, no Museu do Ipiranga. As inscrições estão abertas neste link. Também é possível acompanhar a transmissão pelo YouTube.

Neste momento há uma Política Nacional Integrada para a Primeira Infância sendo construída, com apoio do Comitê Intersetorial, instituído pelo governo federal, que deve ser implementada no início do ano que vem. Qual sua expectativa em relação a ela? Que realidades essa política precisa mudar?

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Temos no Brasil várias políticas públicas que atuam desde o final dos anos 80, operacionalizadas por ministérios diferentes com contrapartida nos estados e municípios. Há o Bolsa Família, do Ministério de Desenvolvimento Social; as creches, da Educação; a estratégia da saúde na família, do Ministério da Saúde; e o Programa Criança Feliz que está sendo reformulado.

O problema é que esses programas não conversam entre si e não sabemos quais crianças são atendidas por cada um deles. Você tem uma menina matriculada na creche, mas não sabe se os pais recebem o Bolsa Família e se estão no programa Saúde da Família. Um dos principais pontos dessa nova política é usar o CPF, tendo em vista que toda criança que nasce já recebe o seu, e este será o identificador nacional único de todas as pessoas, para fazer os cruzamentos.

A gente gasta bastante dinheiro em cada dessas políticas, só que podemos maximizar o impacto se soubermos o que efetivamente cada criança precisa e qual o programa ela ainda não participa. É só uma questão de dados e não envolve muitos recursos adicionais. Acho que este é o principal avanço nessa nova política.

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'A pandemia fez a gente retroceder aos níveis de aprendizagem de 2019, perdemos uns três anos de evolução e temos de correr', diz o economista Naercio Menezes Filho. Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

O investimento na primeira infância pode ser um bom aliado no combate às desigualdades sociais de um país?

Diria que é o principal porque as desigualdades começam no nascimento. As crianças que nascem em famílias muito vulneráveis, vão ter muito mais dificuldades na vida para realizar seus projetos. Por outro lado, as crianças que nascem em famílias ricas terão mais facilidade. É o que eu chamo de ‘loteria da vida’, quando a criança abre o olho e ela pudesse enxergar se está em um hospital super bom, luxuoso, ou em uma maternidade bem simples em uma área vulnerável, já teria um prognóstico muito forte do que vai acontecer na sua vida.

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Uma criança de 5 ou 6 anos que nasce em uma família rica tem um vocabulário muito maior do que a nascida em uma família pobre. Uma repete mais o ano escolar, já a outra aprende mais fácil, as desigualdades só vão se amplificando.

É preciso agir na primeira infância para tentar dar igualdade de oportunidades, ou, pelo menos atenuar as desigualdades e fazer com que essas crianças mais pobres não sofram o estresse tóxico da pobreza, de morar em uma região com esgoto a céu aberto, em uma casa lotada, bem rudimentar, sem espaço para se locomover, brincar, estudar.

O combate da desigualdade depende fundamentalmente de políticas públicas na primeira infância que consigam brecar esse círculo vicioso, de crianças que nascem na pobreza e se tornam jovens nem-nem (nem trabalham e nem estudam), têm filhos mais cedo, que também serão pobres e assim por diante.

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A escola em tempo integral também pode ajudar na missão de reduzir desigualdade social e combater a pobreza?

A criança tem os marcos de desenvolvimento infantil, há o estágio certo para aprender a sentar, manter a cabecinha ereta, começar a andar, a falar, ampliar o vocabulário. Quando chega na escola ela precisa ser alfabetizada e aí está o primeiro ponto: só temos metade das crianças de 8 anos alfabetizadas no Brasil. É um número impressionante! Depois disso, podem entrar as escolas de tempo integral, temos vários estudos que mostram que o desempenho dos alunos matriculados nesta modalidade é melhor do que os das escolas de tempo parcial.

É uma coisa acontecendo seguida da outra: primeira infância com muitos programas, depois vem o ensino fundamental 1 que é responsabilidade do município, precisa ter um bom gestor, e alfabetizar as crianças. No fundamental 2 que geralmente é municipal, mas também pode ser estadual, teríamos de ter as escolas em tempo integral.

Depois vem o ensino médio, que é estadual, e necessita de políticas públicas para os jovens que têm outras prioridades. Precisa ser tudo encadeado, se tiver uma falha no elo não funciona. Há estudos que mostram que o ensino médio em tempo integral aumenta a participação e notas dos alunos no Enem, mas é preciso ter uma base boa também. É necessário haver políticas em todos os estágios.

Sobre o fato de termos somente 56% das crianças brasileiras alfabetizadas na idade certa, qual o principal problema deste cenário?

A criança foi para escola aos 6 anos, e aos 8, no 3º ano, ela ainda não sabe ler nem escrever. Quando ela vai aprender? Isso vai prejudicar todo o aprendizado futuro dela, porque ela não consegue entender questões e se expressar.

A pandemia fez a gente retroceder aos níveis de aprendizagem de 2019, perdemos uns três anos de evolução e temos de correr. Mas precisamos atuar mais fortemente porque se a criança não sabe ler e escrever na idade certa, no futuro pode ser um jovem nem-nem, sem perspectiva de carreira, de empreender ou conquistar um emprego. É o que acontece com 25% a 30% dos jovens.

É como se fosse um jogo de Copa do Mundo entre Brasil e França. A França tem 11 jogadores e o Brasil tem oito. O restante ficou pelo caminho. O país precisava crescer, exportar, inovar, mas fica muita gente para trás. Estamos há 40 anos com o crescimento de produtividade baixíssimo, a gente não sai do lugar, é basicamente isso que está acontecendo. Precisamos agir desde a primeira infância até ao ensino médio.

Sei que a tendência geral é de melhora, temos o Pacto pela Alfabetização, do governo federal, há tentativas e esforços. Os avanços são lentos, mas temos de ter esperança.

Mais tempo na escola não significa necessariamente acesso à educação de qualidade. O que define um bom currículo de uma escola em tempo integral?

No passado, tínhamos o Programa Mais Educação em que a criança voltava para a escola no contraturno e fazia esportes, mas sem muita orientação, os monitores eram pessoas contratadas na vizinhança. Não houve impacto na aprendizagem de matemática e língua portuguesa. Agora as novas políticas de tempo integral [do Ministério da Educação] são mais amplas, reformulando o currículo com ênfase em português e matemática, mas envolvendo atividades socioemocionais, esportes, recreação.

Muitas das atividades têm o ensino técnico vinculado, permitindo que o aluno tenha uma formação logo que sai do ensino médio. São algumas vantagens dessa nova geração de políticas de escolas em tempo integral. É claro que o investimento é maior, estudos falam em torno de 30% a mais [em relação às escolas de tempo parcial], mas os benefícios são maiores que o custo.

A formação de professores ainda é um entrave para que tenhamos tanto uma educação infantil quanto uma escola em tempo integral de qualidade?

Temos um problema de formação de professores no geral no Brasil. Basta ver que hoje a maioria se forma por meio do ensino à distância, acho isso muito complicado. O professor não está em uma faculdade em que interage com outros alunos, não faz estágio, é muito problemático esse aumento de matrícula de cursos à distância que formam professores. A formação também sempre foi um pouco teórica, falta vivência, experiência prática. Mas houve alguma melhora, hoje em dia temos os parâmetros curriculares e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Não temos um indicador nacional de educação infantil. Como você vê esta lacuna?

Temos alguns estudos feitos com especialistas que avaliam amostras de creches. Existe muita resistência em se criar um indicador oficial, mas primeiro é preciso definir o que é o resultado. No ensino fundamental e médio, você tem o conhecimento em português e matemática, as crianças fazem as provas e saem as notas. Agora o desenvolvimento infantil é mais difícil de medir. Temos um caminho a percorrer, mas eu sou favorável a termos uma avaliação. Dá para acompanhar, por exemplo, se a criança está andando na idade certa, se está se sentando, se está com os marcos de desenvolvimento em dia.

Em ambos os temas – educação infantil e escola em tempo integral – o Brasil não cumpriu as metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação (PNE). O que esperar do próximo que está em construção?

Acho que estas metas não têm origem em estudo, o PNE é um acordo. É claro que é bom ter metas, sou economista e gosto delas. No caso do Ideb, as metas foram bem desenhadas, tentando atingir o nível do Pisa em 2022. Foi feito um trabalho técnico, mas metas baseadas só em boa vontade não têm sentido.

É importante ter estratégia. Sobral investiu em políticas para educação por 20 anos com persistência e continuidade. Agora o governo federal pode fazer um pacto, mas não dá para entrar nos municípios e obrigá-los a alfabetizar as crianças, ele é uma entidade federativa, os municípios têm autonomia. Se ele não quiser investir em alfabetização, não tem como obrigar.

Qual o caminho então?

Dá para criar incentivos, transferir recursos baseados em resultados. O Ceará, por exemplo, tinha o ICMS Educação, onde uma parcela do imposto arrecadado era distribuída aos municípios com base nos resultados educacionais. Não sou a favor de federalizar, acho que é preciso respeitar a autonomia, mas o governo federal tem de dar incentivos. Quer dinheiro para construir uma ponte? Então, primeiro alfabetiza todo mundo do seu município que transferimos. É o único caminho que eu consigo ver.

Falta vontade política em muitos casos porque a educação de qualidade não se transforma em votos automaticamente. O prefeito quer alguma coisa para mostrar em quatro anos, ele vai criar um posto de saúde, construir uma ponte, asfaltar ruas, que dá retorno no curto prazo.

É preciso ser muito bom gestor e pensar em longo prazo e na sociedade para priorizar a educação, porque é necessário comprar brigas com professores, com muita gente e o retorno não é tão rápido. A geração que está se beneficiando de uma boa educação, as crianças, não é a mesma que vota, e o político, em última instância, quer se reeleger, fortalecer o partido, conseguir voto. Existe esse problema de compatibilização de retorno nas urnas e políticas educacionais.

Até na saúde, eu acho que é mais fácil, porque quando a criança está doente, você leva na UBS e consegue ver ela sendo atendida, tratada. Já a educação é mais intangível. Mas acredito que estamos progredindo, o problema é que é de forma lenta face às nossas necessidades.

Estadão promove o ciclo de debates Reconstrução da Educação. No próximo dia 18, o evento presencial do Reconstrução da Educação será realizado no Museu do Ipiranga e contará com a presença do ministro da Educação, Camilo Santana, e o professor da Faculdade de Educação da Universidade de Stanford Bruce McCandliss, entre outros. Faça a sua inscrição neste link.

A condição social do nascimento de uma criança - seja ela repleta de privilégios ou em situação de vulnerabilidade - pode dar diretrizes do que será sua vida ao longo dos anos, segundo aponta o economista Naercio Menezes Filho, diretor do Centro Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância (CPAPI).

Professor titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper e associado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da Universidade de São Paulo (USP), Naercio defende que o investimento na primeira infância deve ser o principal aliado no combate às desigualdades sociais e o instrumento mais poderoso para quebrar o círculo vicioso da pobreza entre as crianças nascidas em famílias pobres.

“Estas se tornam adolescentes nem-nem (nem trabalham e nem estudam), têm filhos mais cedo, que também serão pobres e assim por diante”, diz.

Leia também:

Para o especialista, a educação de qualidade precisa ser garantida ao longo da vida escolar da criança, de forma encadeada, pelas diferentes instâncias do governo. Um dos entraves atuais do Brasil é a alfabetização: só 56% das crianças matriculadas em escolas públicas atingiram o patamar definido pelo Ministério da Educação para o 2.º ano do ensino fundamental.

A falta de proficiência para ler e escrever desencadeia vários problemas que afetam a aprendizagem e desenvolvimento do aluno nos anos escolares subsequentes. O economista abordou este e outros temas, como a escola em tempo integral, na entrevista abaixo.

Naercio é um dos participantes do Reconstrução da Educação, evento promovido pelo Estadão, nesta segunda-feira, 18, no Museu do Ipiranga. As inscrições estão abertas neste link. Também é possível acompanhar a transmissão pelo YouTube.

Neste momento há uma Política Nacional Integrada para a Primeira Infância sendo construída, com apoio do Comitê Intersetorial, instituído pelo governo federal, que deve ser implementada no início do ano que vem. Qual sua expectativa em relação a ela? Que realidades essa política precisa mudar?

Temos no Brasil várias políticas públicas que atuam desde o final dos anos 80, operacionalizadas por ministérios diferentes com contrapartida nos estados e municípios. Há o Bolsa Família, do Ministério de Desenvolvimento Social; as creches, da Educação; a estratégia da saúde na família, do Ministério da Saúde; e o Programa Criança Feliz que está sendo reformulado.

O problema é que esses programas não conversam entre si e não sabemos quais crianças são atendidas por cada um deles. Você tem uma menina matriculada na creche, mas não sabe se os pais recebem o Bolsa Família e se estão no programa Saúde da Família. Um dos principais pontos dessa nova política é usar o CPF, tendo em vista que toda criança que nasce já recebe o seu, e este será o identificador nacional único de todas as pessoas, para fazer os cruzamentos.

A gente gasta bastante dinheiro em cada dessas políticas, só que podemos maximizar o impacto se soubermos o que efetivamente cada criança precisa e qual o programa ela ainda não participa. É só uma questão de dados e não envolve muitos recursos adicionais. Acho que este é o principal avanço nessa nova política.

'A pandemia fez a gente retroceder aos níveis de aprendizagem de 2019, perdemos uns três anos de evolução e temos de correr', diz o economista Naercio Menezes Filho. Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

O investimento na primeira infância pode ser um bom aliado no combate às desigualdades sociais de um país?

Diria que é o principal porque as desigualdades começam no nascimento. As crianças que nascem em famílias muito vulneráveis, vão ter muito mais dificuldades na vida para realizar seus projetos. Por outro lado, as crianças que nascem em famílias ricas terão mais facilidade. É o que eu chamo de ‘loteria da vida’, quando a criança abre o olho e ela pudesse enxergar se está em um hospital super bom, luxuoso, ou em uma maternidade bem simples em uma área vulnerável, já teria um prognóstico muito forte do que vai acontecer na sua vida.

Uma criança de 5 ou 6 anos que nasce em uma família rica tem um vocabulário muito maior do que a nascida em uma família pobre. Uma repete mais o ano escolar, já a outra aprende mais fácil, as desigualdades só vão se amplificando.

É preciso agir na primeira infância para tentar dar igualdade de oportunidades, ou, pelo menos atenuar as desigualdades e fazer com que essas crianças mais pobres não sofram o estresse tóxico da pobreza, de morar em uma região com esgoto a céu aberto, em uma casa lotada, bem rudimentar, sem espaço para se locomover, brincar, estudar.

O combate da desigualdade depende fundamentalmente de políticas públicas na primeira infância que consigam brecar esse círculo vicioso, de crianças que nascem na pobreza e se tornam jovens nem-nem (nem trabalham e nem estudam), têm filhos mais cedo, que também serão pobres e assim por diante.

A escola em tempo integral também pode ajudar na missão de reduzir desigualdade social e combater a pobreza?

A criança tem os marcos de desenvolvimento infantil, há o estágio certo para aprender a sentar, manter a cabecinha ereta, começar a andar, a falar, ampliar o vocabulário. Quando chega na escola ela precisa ser alfabetizada e aí está o primeiro ponto: só temos metade das crianças de 8 anos alfabetizadas no Brasil. É um número impressionante! Depois disso, podem entrar as escolas de tempo integral, temos vários estudos que mostram que o desempenho dos alunos matriculados nesta modalidade é melhor do que os das escolas de tempo parcial.

É uma coisa acontecendo seguida da outra: primeira infância com muitos programas, depois vem o ensino fundamental 1 que é responsabilidade do município, precisa ter um bom gestor, e alfabetizar as crianças. No fundamental 2 que geralmente é municipal, mas também pode ser estadual, teríamos de ter as escolas em tempo integral.

Depois vem o ensino médio, que é estadual, e necessita de políticas públicas para os jovens que têm outras prioridades. Precisa ser tudo encadeado, se tiver uma falha no elo não funciona. Há estudos que mostram que o ensino médio em tempo integral aumenta a participação e notas dos alunos no Enem, mas é preciso ter uma base boa também. É necessário haver políticas em todos os estágios.

Sobre o fato de termos somente 56% das crianças brasileiras alfabetizadas na idade certa, qual o principal problema deste cenário?

A criança foi para escola aos 6 anos, e aos 8, no 3º ano, ela ainda não sabe ler nem escrever. Quando ela vai aprender? Isso vai prejudicar todo o aprendizado futuro dela, porque ela não consegue entender questões e se expressar.

A pandemia fez a gente retroceder aos níveis de aprendizagem de 2019, perdemos uns três anos de evolução e temos de correr. Mas precisamos atuar mais fortemente porque se a criança não sabe ler e escrever na idade certa, no futuro pode ser um jovem nem-nem, sem perspectiva de carreira, de empreender ou conquistar um emprego. É o que acontece com 25% a 30% dos jovens.

É como se fosse um jogo de Copa do Mundo entre Brasil e França. A França tem 11 jogadores e o Brasil tem oito. O restante ficou pelo caminho. O país precisava crescer, exportar, inovar, mas fica muita gente para trás. Estamos há 40 anos com o crescimento de produtividade baixíssimo, a gente não sai do lugar, é basicamente isso que está acontecendo. Precisamos agir desde a primeira infância até ao ensino médio.

Sei que a tendência geral é de melhora, temos o Pacto pela Alfabetização, do governo federal, há tentativas e esforços. Os avanços são lentos, mas temos de ter esperança.

Mais tempo na escola não significa necessariamente acesso à educação de qualidade. O que define um bom currículo de uma escola em tempo integral?

No passado, tínhamos o Programa Mais Educação em que a criança voltava para a escola no contraturno e fazia esportes, mas sem muita orientação, os monitores eram pessoas contratadas na vizinhança. Não houve impacto na aprendizagem de matemática e língua portuguesa. Agora as novas políticas de tempo integral [do Ministério da Educação] são mais amplas, reformulando o currículo com ênfase em português e matemática, mas envolvendo atividades socioemocionais, esportes, recreação.

Muitas das atividades têm o ensino técnico vinculado, permitindo que o aluno tenha uma formação logo que sai do ensino médio. São algumas vantagens dessa nova geração de políticas de escolas em tempo integral. É claro que o investimento é maior, estudos falam em torno de 30% a mais [em relação às escolas de tempo parcial], mas os benefícios são maiores que o custo.

A formação de professores ainda é um entrave para que tenhamos tanto uma educação infantil quanto uma escola em tempo integral de qualidade?

Temos um problema de formação de professores no geral no Brasil. Basta ver que hoje a maioria se forma por meio do ensino à distância, acho isso muito complicado. O professor não está em uma faculdade em que interage com outros alunos, não faz estágio, é muito problemático esse aumento de matrícula de cursos à distância que formam professores. A formação também sempre foi um pouco teórica, falta vivência, experiência prática. Mas houve alguma melhora, hoje em dia temos os parâmetros curriculares e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Não temos um indicador nacional de educação infantil. Como você vê esta lacuna?

Temos alguns estudos feitos com especialistas que avaliam amostras de creches. Existe muita resistência em se criar um indicador oficial, mas primeiro é preciso definir o que é o resultado. No ensino fundamental e médio, você tem o conhecimento em português e matemática, as crianças fazem as provas e saem as notas. Agora o desenvolvimento infantil é mais difícil de medir. Temos um caminho a percorrer, mas eu sou favorável a termos uma avaliação. Dá para acompanhar, por exemplo, se a criança está andando na idade certa, se está se sentando, se está com os marcos de desenvolvimento em dia.

Em ambos os temas – educação infantil e escola em tempo integral – o Brasil não cumpriu as metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação (PNE). O que esperar do próximo que está em construção?

Acho que estas metas não têm origem em estudo, o PNE é um acordo. É claro que é bom ter metas, sou economista e gosto delas. No caso do Ideb, as metas foram bem desenhadas, tentando atingir o nível do Pisa em 2022. Foi feito um trabalho técnico, mas metas baseadas só em boa vontade não têm sentido.

É importante ter estratégia. Sobral investiu em políticas para educação por 20 anos com persistência e continuidade. Agora o governo federal pode fazer um pacto, mas não dá para entrar nos municípios e obrigá-los a alfabetizar as crianças, ele é uma entidade federativa, os municípios têm autonomia. Se ele não quiser investir em alfabetização, não tem como obrigar.

Qual o caminho então?

Dá para criar incentivos, transferir recursos baseados em resultados. O Ceará, por exemplo, tinha o ICMS Educação, onde uma parcela do imposto arrecadado era distribuída aos municípios com base nos resultados educacionais. Não sou a favor de federalizar, acho que é preciso respeitar a autonomia, mas o governo federal tem de dar incentivos. Quer dinheiro para construir uma ponte? Então, primeiro alfabetiza todo mundo do seu município que transferimos. É o único caminho que eu consigo ver.

Falta vontade política em muitos casos porque a educação de qualidade não se transforma em votos automaticamente. O prefeito quer alguma coisa para mostrar em quatro anos, ele vai criar um posto de saúde, construir uma ponte, asfaltar ruas, que dá retorno no curto prazo.

É preciso ser muito bom gestor e pensar em longo prazo e na sociedade para priorizar a educação, porque é necessário comprar brigas com professores, com muita gente e o retorno não é tão rápido. A geração que está se beneficiando de uma boa educação, as crianças, não é a mesma que vota, e o político, em última instância, quer se reeleger, fortalecer o partido, conseguir voto. Existe esse problema de compatibilização de retorno nas urnas e políticas educacionais.

Até na saúde, eu acho que é mais fácil, porque quando a criança está doente, você leva na UBS e consegue ver ela sendo atendida, tratada. Já a educação é mais intangível. Mas acredito que estamos progredindo, o problema é que é de forma lenta face às nossas necessidades.

Estadão promove o ciclo de debates Reconstrução da Educação. No próximo dia 18, o evento presencial do Reconstrução da Educação será realizado no Museu do Ipiranga e contará com a presença do ministro da Educação, Camilo Santana, e o professor da Faculdade de Educação da Universidade de Stanford Bruce McCandliss, entre outros. Faça a sua inscrição neste link.

A condição social do nascimento de uma criança - seja ela repleta de privilégios ou em situação de vulnerabilidade - pode dar diretrizes do que será sua vida ao longo dos anos, segundo aponta o economista Naercio Menezes Filho, diretor do Centro Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância (CPAPI).

Professor titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper e associado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da Universidade de São Paulo (USP), Naercio defende que o investimento na primeira infância deve ser o principal aliado no combate às desigualdades sociais e o instrumento mais poderoso para quebrar o círculo vicioso da pobreza entre as crianças nascidas em famílias pobres.

“Estas se tornam adolescentes nem-nem (nem trabalham e nem estudam), têm filhos mais cedo, que também serão pobres e assim por diante”, diz.

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Para o especialista, a educação de qualidade precisa ser garantida ao longo da vida escolar da criança, de forma encadeada, pelas diferentes instâncias do governo. Um dos entraves atuais do Brasil é a alfabetização: só 56% das crianças matriculadas em escolas públicas atingiram o patamar definido pelo Ministério da Educação para o 2.º ano do ensino fundamental.

A falta de proficiência para ler e escrever desencadeia vários problemas que afetam a aprendizagem e desenvolvimento do aluno nos anos escolares subsequentes. O economista abordou este e outros temas, como a escola em tempo integral, na entrevista abaixo.

Naercio é um dos participantes do Reconstrução da Educação, evento promovido pelo Estadão, nesta segunda-feira, 18, no Museu do Ipiranga. As inscrições estão abertas neste link. Também é possível acompanhar a transmissão pelo YouTube.

Neste momento há uma Política Nacional Integrada para a Primeira Infância sendo construída, com apoio do Comitê Intersetorial, instituído pelo governo federal, que deve ser implementada no início do ano que vem. Qual sua expectativa em relação a ela? Que realidades essa política precisa mudar?

Temos no Brasil várias políticas públicas que atuam desde o final dos anos 80, operacionalizadas por ministérios diferentes com contrapartida nos estados e municípios. Há o Bolsa Família, do Ministério de Desenvolvimento Social; as creches, da Educação; a estratégia da saúde na família, do Ministério da Saúde; e o Programa Criança Feliz que está sendo reformulado.

O problema é que esses programas não conversam entre si e não sabemos quais crianças são atendidas por cada um deles. Você tem uma menina matriculada na creche, mas não sabe se os pais recebem o Bolsa Família e se estão no programa Saúde da Família. Um dos principais pontos dessa nova política é usar o CPF, tendo em vista que toda criança que nasce já recebe o seu, e este será o identificador nacional único de todas as pessoas, para fazer os cruzamentos.

A gente gasta bastante dinheiro em cada dessas políticas, só que podemos maximizar o impacto se soubermos o que efetivamente cada criança precisa e qual o programa ela ainda não participa. É só uma questão de dados e não envolve muitos recursos adicionais. Acho que este é o principal avanço nessa nova política.

'A pandemia fez a gente retroceder aos níveis de aprendizagem de 2019, perdemos uns três anos de evolução e temos de correr', diz o economista Naercio Menezes Filho. Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

O investimento na primeira infância pode ser um bom aliado no combate às desigualdades sociais de um país?

Diria que é o principal porque as desigualdades começam no nascimento. As crianças que nascem em famílias muito vulneráveis, vão ter muito mais dificuldades na vida para realizar seus projetos. Por outro lado, as crianças que nascem em famílias ricas terão mais facilidade. É o que eu chamo de ‘loteria da vida’, quando a criança abre o olho e ela pudesse enxergar se está em um hospital super bom, luxuoso, ou em uma maternidade bem simples em uma área vulnerável, já teria um prognóstico muito forte do que vai acontecer na sua vida.

Uma criança de 5 ou 6 anos que nasce em uma família rica tem um vocabulário muito maior do que a nascida em uma família pobre. Uma repete mais o ano escolar, já a outra aprende mais fácil, as desigualdades só vão se amplificando.

É preciso agir na primeira infância para tentar dar igualdade de oportunidades, ou, pelo menos atenuar as desigualdades e fazer com que essas crianças mais pobres não sofram o estresse tóxico da pobreza, de morar em uma região com esgoto a céu aberto, em uma casa lotada, bem rudimentar, sem espaço para se locomover, brincar, estudar.

O combate da desigualdade depende fundamentalmente de políticas públicas na primeira infância que consigam brecar esse círculo vicioso, de crianças que nascem na pobreza e se tornam jovens nem-nem (nem trabalham e nem estudam), têm filhos mais cedo, que também serão pobres e assim por diante.

A escola em tempo integral também pode ajudar na missão de reduzir desigualdade social e combater a pobreza?

A criança tem os marcos de desenvolvimento infantil, há o estágio certo para aprender a sentar, manter a cabecinha ereta, começar a andar, a falar, ampliar o vocabulário. Quando chega na escola ela precisa ser alfabetizada e aí está o primeiro ponto: só temos metade das crianças de 8 anos alfabetizadas no Brasil. É um número impressionante! Depois disso, podem entrar as escolas de tempo integral, temos vários estudos que mostram que o desempenho dos alunos matriculados nesta modalidade é melhor do que os das escolas de tempo parcial.

É uma coisa acontecendo seguida da outra: primeira infância com muitos programas, depois vem o ensino fundamental 1 que é responsabilidade do município, precisa ter um bom gestor, e alfabetizar as crianças. No fundamental 2 que geralmente é municipal, mas também pode ser estadual, teríamos de ter as escolas em tempo integral.

Depois vem o ensino médio, que é estadual, e necessita de políticas públicas para os jovens que têm outras prioridades. Precisa ser tudo encadeado, se tiver uma falha no elo não funciona. Há estudos que mostram que o ensino médio em tempo integral aumenta a participação e notas dos alunos no Enem, mas é preciso ter uma base boa também. É necessário haver políticas em todos os estágios.

Sobre o fato de termos somente 56% das crianças brasileiras alfabetizadas na idade certa, qual o principal problema deste cenário?

A criança foi para escola aos 6 anos, e aos 8, no 3º ano, ela ainda não sabe ler nem escrever. Quando ela vai aprender? Isso vai prejudicar todo o aprendizado futuro dela, porque ela não consegue entender questões e se expressar.

A pandemia fez a gente retroceder aos níveis de aprendizagem de 2019, perdemos uns três anos de evolução e temos de correr. Mas precisamos atuar mais fortemente porque se a criança não sabe ler e escrever na idade certa, no futuro pode ser um jovem nem-nem, sem perspectiva de carreira, de empreender ou conquistar um emprego. É o que acontece com 25% a 30% dos jovens.

É como se fosse um jogo de Copa do Mundo entre Brasil e França. A França tem 11 jogadores e o Brasil tem oito. O restante ficou pelo caminho. O país precisava crescer, exportar, inovar, mas fica muita gente para trás. Estamos há 40 anos com o crescimento de produtividade baixíssimo, a gente não sai do lugar, é basicamente isso que está acontecendo. Precisamos agir desde a primeira infância até ao ensino médio.

Sei que a tendência geral é de melhora, temos o Pacto pela Alfabetização, do governo federal, há tentativas e esforços. Os avanços são lentos, mas temos de ter esperança.

Mais tempo na escola não significa necessariamente acesso à educação de qualidade. O que define um bom currículo de uma escola em tempo integral?

No passado, tínhamos o Programa Mais Educação em que a criança voltava para a escola no contraturno e fazia esportes, mas sem muita orientação, os monitores eram pessoas contratadas na vizinhança. Não houve impacto na aprendizagem de matemática e língua portuguesa. Agora as novas políticas de tempo integral [do Ministério da Educação] são mais amplas, reformulando o currículo com ênfase em português e matemática, mas envolvendo atividades socioemocionais, esportes, recreação.

Muitas das atividades têm o ensino técnico vinculado, permitindo que o aluno tenha uma formação logo que sai do ensino médio. São algumas vantagens dessa nova geração de políticas de escolas em tempo integral. É claro que o investimento é maior, estudos falam em torno de 30% a mais [em relação às escolas de tempo parcial], mas os benefícios são maiores que o custo.

A formação de professores ainda é um entrave para que tenhamos tanto uma educação infantil quanto uma escola em tempo integral de qualidade?

Temos um problema de formação de professores no geral no Brasil. Basta ver que hoje a maioria se forma por meio do ensino à distância, acho isso muito complicado. O professor não está em uma faculdade em que interage com outros alunos, não faz estágio, é muito problemático esse aumento de matrícula de cursos à distância que formam professores. A formação também sempre foi um pouco teórica, falta vivência, experiência prática. Mas houve alguma melhora, hoje em dia temos os parâmetros curriculares e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Não temos um indicador nacional de educação infantil. Como você vê esta lacuna?

Temos alguns estudos feitos com especialistas que avaliam amostras de creches. Existe muita resistência em se criar um indicador oficial, mas primeiro é preciso definir o que é o resultado. No ensino fundamental e médio, você tem o conhecimento em português e matemática, as crianças fazem as provas e saem as notas. Agora o desenvolvimento infantil é mais difícil de medir. Temos um caminho a percorrer, mas eu sou favorável a termos uma avaliação. Dá para acompanhar, por exemplo, se a criança está andando na idade certa, se está se sentando, se está com os marcos de desenvolvimento em dia.

Em ambos os temas – educação infantil e escola em tempo integral – o Brasil não cumpriu as metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação (PNE). O que esperar do próximo que está em construção?

Acho que estas metas não têm origem em estudo, o PNE é um acordo. É claro que é bom ter metas, sou economista e gosto delas. No caso do Ideb, as metas foram bem desenhadas, tentando atingir o nível do Pisa em 2022. Foi feito um trabalho técnico, mas metas baseadas só em boa vontade não têm sentido.

É importante ter estratégia. Sobral investiu em políticas para educação por 20 anos com persistência e continuidade. Agora o governo federal pode fazer um pacto, mas não dá para entrar nos municípios e obrigá-los a alfabetizar as crianças, ele é uma entidade federativa, os municípios têm autonomia. Se ele não quiser investir em alfabetização, não tem como obrigar.

Qual o caminho então?

Dá para criar incentivos, transferir recursos baseados em resultados. O Ceará, por exemplo, tinha o ICMS Educação, onde uma parcela do imposto arrecadado era distribuída aos municípios com base nos resultados educacionais. Não sou a favor de federalizar, acho que é preciso respeitar a autonomia, mas o governo federal tem de dar incentivos. Quer dinheiro para construir uma ponte? Então, primeiro alfabetiza todo mundo do seu município que transferimos. É o único caminho que eu consigo ver.

Falta vontade política em muitos casos porque a educação de qualidade não se transforma em votos automaticamente. O prefeito quer alguma coisa para mostrar em quatro anos, ele vai criar um posto de saúde, construir uma ponte, asfaltar ruas, que dá retorno no curto prazo.

É preciso ser muito bom gestor e pensar em longo prazo e na sociedade para priorizar a educação, porque é necessário comprar brigas com professores, com muita gente e o retorno não é tão rápido. A geração que está se beneficiando de uma boa educação, as crianças, não é a mesma que vota, e o político, em última instância, quer se reeleger, fortalecer o partido, conseguir voto. Existe esse problema de compatibilização de retorno nas urnas e políticas educacionais.

Até na saúde, eu acho que é mais fácil, porque quando a criança está doente, você leva na UBS e consegue ver ela sendo atendida, tratada. Já a educação é mais intangível. Mas acredito que estamos progredindo, o problema é que é de forma lenta face às nossas necessidades.

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