O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2024 acontece nos próximos dois domingos, dias 3 e 10 de novembro, com 4,3 milhões de inscritos, sendo 1,6 milhões aptos a concorrer a uma vaga na universidade. O exame é dividido em cinco provas, quatro de múltipla escolha e uma redação.
No primeiro domingo, as provas de Linguagens, Ciências Humanas e Redação são aplicadas; no segundo domingo, as provas de Matemática e Ciências da Natureza. No total, somam-se 180 questões de múltipla escolha, que são corrigidas pela Teoria de Resposta ao Item (TRI). A TRI avalia os alunos tendo em vista a coerência de suas respostas: questões fáceis valem mais nota, e questões difíceis valem menos.
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A redação é a única prova em que o candidato pode tirar nota máxima, de mil pontos. Isso ocorre porque o texto dissertativo-argumentativo escrito pelos candidatos não é corrigido pela TRI, e sim por professores de português.
No ano passado, 60 candidatos tiraram a nota máxima na prova de redação do Enem, frente aos 2,7 milhões que fizeram a prova. Entre os alunos que tiraram nota mil, apenas quatro eram oriundos de escola pública. Em 2022, o número de candidatos com nota máxima foi ainda menor, de apenas 18 alunos.
Historicamente, os temas da prova de redação do Enem discutem problemas sociais. O tema do ano passado foi “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”.
Veja algumas redações nota mil do ano passado, e saiba o que as estudantes fizeram para atingir a nota:
1. Caroline Souza, 22 anos: ‘listinha de erros’ e aprovada em Medicina
De Goiânia (GO), Caroline Souza, de 22 anos, está entre os candidatos que receberam nota mil na redação do Enem no ano passado. Ela já estava no quarto ano de cursinho após o Ensino Médio, e sonhava com uma vaga no curso de Medicina. Nos três primeiros anos, Caroline fez cursinho presencial, e no quarto ano decidiu migrar para os estudos online para economizar tempo de deslocamento e dinheiro. De acordo com ela, a maturidade dos anos de estudo a apoiaram a tirar a nota máxima.
“Nos outros anos, eu fazia apenas uma redação por semana, mas no ano passado eu comecei a fazer duas. Ali na reta final, eu fazia até três por semana”. Além disso, a estudante afirma que passou a fazer correções pormenorizadas de suas redações. “Uma coisa que me ajudou muito foi fazer uma listinha de erros. A cada redação, eu analisava de forma bem objetiva meus erros, e escrevia nessa listinha a forma correta.”
Hoje, Caroline é aluna de Medicina na UFG. A nota mil na redação ajudou a jovem a entrar logo na primeira chamada. “Estou muito realizada, foi um alívio, depois de tanta luta, alcançar esse objetivo”.
Leia a redação de Caroline abaixo:
“Na Grécia Antiga, berço das civilizações ocidentais, a mulher era excluída da cidadania ateniense, fato que reflete a marginalização da figura feminina na população da época. Essa herança excludente se perpetuou ao longo dos séculos e exerce considerável influência na sociedade contemporânea, em especial, no que tange à invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil, problemática que se materializa na sobrecarga laboral e na reduzida remuneração. Por essa razão, é preciso discutir os desafios para o enfrentamento das adversidades em questão: a negligência do Estado e a omissão da comunidade.
De início, cabe pontuar que a inoperância do governo, expressa na falta de políticas públicas voltadas à valorização da cuidadora de idosos, por exemplo, constitui um bloqueio ao combate da invisibilidade desse ofício. Sem dúvidas, isso ocorre, pois a escassez de fiscalização em clínicas de repouso da terceira idade para averiguar as condições de trabalho das cuidadoras sedimenta o descaso do Estado em exercer seu papel administrativo, já que o excesso de carga laboral vivenciado por elas ceifa o direito à dignidade humana, previsto no artigo primeiro da Carta Magna de 1988. Sob essa ótica, as condições impróprias de ofício são normalizadas no cotidiano pela inobservância governamental e as mulheres, historicamente segregadas da atenção estatal, são ainda mais invisibilizadas na execução de suas funções. Logo, a ineficiência do poder público dificulta o enfrentamento do problema abordado.
Além disso, vale ressaltar que a omissão da população, ao ignorar a desvalorização salarial de trabalhadores de cuidado, como o zelo doméstico, solidifica os empecilhos para coibir a invisibilidade dessa temática. De fato, esse cenário ocorre a partir da indiferença social, conduta que despreza as mazelas alheias — consideradas irrisórias —, de modo a alicerçar a carência de notoriedade do ofício, bem como outras defasagens salariais enfrentadas por aquelas que limpam e cozinham, por exemplo. Sob essa perspectiva, além do preconceito de gênero histórico, as mulheres cuidadoras são secundarizadas do olhar social atual, confirmando a citação do romancista Juan Montalvo, para o qual “não há nada mais duro do que a suavidade da indiferença”, uma vez que o descaso de remuneração se mantém pela falta de debates sociais acerca do problema. Portanto, a inação coletiva é um desafio.
Em suma, o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil tem como desafios a negligência do Estado e a omissão da coletividade. Para mitigar esses entraves, o Ministério Público deve exigir maior exercício constitucional do Estado, por meio de fiscalizações nas clínicas de repouso — haja vista as cuidadoras vítimas da sobrecarga trabalhista serem alijadas do direito à dignidade —, a fim de conferir maior valorização a essa classe. Ademais, a sociedade deve superar as amarras da indiferença social para combater a falta de notoriedade do cuidado de um grupo vitimado desde a Grécia Antiga.”
2. Letícia de Morais, 21 anos: treinos cronometrados e vaga em Medicina
Letícia de Morais, de 21 anos, se formou no Ensino Médio em 2021 em uma escola pública de Inhumas-GO, e também sonhava em passar no curso de Medicina. Porém, sem condições de arcar com um cursinho pré-vestibular presencial, a aluna optou por assinar cursinhos online para seguir com a preparação para o vestibular. Foi no segundo ano dedicado exclusivamente aos estudos que Letícia recebeu a nota mil na prova de redação do Enem, que a fez ser aprovada em Medicina na UFG, junto com Caroline.
“Eu tirava sempre um dia da semana para dedicar à redação, e cronometrava para fazer como se fosse um simulado do dia da prova.” Para Letícia, além da prática, é necessário entender a teoria por trás da redação. “A gente acha que redação é só prática, mas não. Tem a cartilha do INEP falando como são cobradas as competências, e saber o que precisa colocar no texto ajuda muito.”
Além disso, a estudante aconselha a focar não só nos estudos, mas também na saúde mental na reta final para a prova. “Eu sempre falo que é muito bom manter uma rotina de saúde, de cuidado, exercício físico, boa alimentação, tirar um tempo para descansar. Isso tudo foi essencial no ano da minha aprovação.”
Leia a redação de Letícia abaixo:
São inegáveis os desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil. A obra literária “Orgulho e Preconceito”, de Jane Austen, retrata o desejo da Sra. Bennet de casar as cinco filhas. Fora da ficção, observa-se semelhanças entre a Sra. Bennet e a sociedade, a qual associa o casamento e o cuidado familiar ao sucesso feminino. Todavia, nota-se a falta de valorização, que gera invisibilidade, ao trabalho de cuidado realizado pela mulher. Portanto, é imprescindível verificar os motivos que impedem a solução do problema.
Em primeiro lugar, há de se ressaltar a omissão governamental diante da invisibilidade do trabalho de cuidado feito pela mulher. Consoante sociólogo Thomas Hobbes, o Estado deve garantir o bem-estar social. Entretanto, a ausência de valorização do trabalho de cuidado feito pela mulher contraria o pensamento de Hobbes. Nesse contexto, 75% do trabalho de cuidado não remunerado é realizado por mulheres. Dessa maneira, as mulheres têm a qualidade de vida privada ou prejudicada, uma vez que não há programas governamentais os quais garantam segurança financeira para as mulheres que deixam o trabalho remunerado para cuidar dos entes. Sendo assim, a falta de apoio governamental corrompe o bem-estar social.
Em segundo lugar, sabe-se que a sociedade contribui para a ausência de valorização do trabalho de cuidado realizado pela mulher. Nessa perspectiva, a história brasileira apresenta valores e percepções sociais enraizadas em relação ao trabalho feminino. Desse modo, a imagem da mulher caracterizou-se como reprodutora e cuidadora, devido ao passado no qual a mulher foi inferiorizada. Paralelamente, na atualidade, a perpetuação de tal imagem referente à mulher impediu a valorização e o reconhecimento do trabalho de cuidado realizado pela mulher, formando, assim, uma sociedade baseada no preconceito e na discriminação de gênero.
Logo, para superar os desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil, cabe ao poder público, em parceria com o Ministério da Família, promover a valorização do trabalho feminino de cuidado. Dessa forma, por meio de campanhas na mídia nacional que sensibilizem a população, bem como pela promulgação de projetos de apoio financeiro destinados às mulheres que saem do trabalho formal para realizar o trabalho de cuidado, tem-se o intuito de mitigar o legado histórico de preconceito e de garantir o devido valor do trabalho de cuidado feito pelas mulheres no Brasil. Posto isto, espera-se assegurar a importância do trabalho de cuidado feito pela mulher e superar o cenário mostrado por Jane Austen.
3. Ana Luiza Coutinho, 19 anos: dedicação integral no Ensino Médio e aprovada em Direito
Ana Luiza Coutinho, de 19 anos, mora no Rio de Janeiro, e, no seu último ano do Ensino Médico, conseguiu nota mil na redação do Enem. Na época, ela estudava no Colégio PH, no Rio de Janeiro, e passava muitas horas na escola.
“Durante o terceiro ano, eu ficava praticamente o dia inteiro na escola. Chegava pouco antes das 7h, e às vezes ficava até as 19h. Eu frequentava o contraturno, ficava nas monitorias para estudar as matérias que tinha dificuldade, e nos finais de semana, tinha um simulado igualzinho ao Enem”.
Como resultado na boa nota na prova, Ana Luiza foi aprovada no curso de Direito na UFRJ, onde estuda atualmente.
“A minha dica para quem vai fazer a prova agora é olhar como simplesmente uma etapa que é preciso passar para chegar nos seus sonhos. Eu acho que o momento agora é de olhar para a jornada de cada um e descansar. Você fez tudo o que estava ao seu alcance e agora é acreditar em si mesmo”, aconselha ela.
Leia a redação de Ana Luiza Coutinho abaixo:
“Um dos contos presentes no livro ‘Laços de Família’, de Clarice Lispector, acompanha a epifania da personagem Ana ao fugir de seus afazeres domésticos. Ela, que se via sentenciada a cuidar da casa e dos filhos, assemelha-se a muitas mulheres brasileiras, que exercem essas e outras tarefas diariamente, sem valorização e, até mesmo, sem remuneração. Nesse sentido, cabe analisar as causas socioeconômicas da invisibilidade do trabalho de cuidado no Brasil contemporâneo.
Em primeira perspectiva, a sociedade limita a mulher e sua função social ao ambiente caseiro e à realização de cuidados especiais. Isso ocorre porque, de acordo com o corpo social estabelecido, a essência cuidadosa é algo inerente ao feminino, muitas vezes associado à maternidade. Todavia, essa característica é construída e imposta às mulheres, que são frequentemente moldadas - assim como elucidado por Simone de Beauvoir: " Não se nasce mulher, torna-se”. Esse cenário é instigado pela cultura patriarcal e machista da nação, que atribui o cuidado e o lar somente ao sexo feminino. Desse modo, esse trabalho é visto como uma obrigação da mulher e não como um trabalho de fato, o que, por conseguinte, gera a desvalorização de tão importante exercício.
Ademais, o cuidado não é percebido com valor de mercado. Isso porque não é uma atividade altamente lucrativa e produtiva do ponto de vista mercadológico, o que, segundo Byung-Chul Han em ‘A Sociedade do Cansaço’, são fatores valorizados nos dias atuais. Esse panorama se dá pela lógica capitalista que norteia as relações de trabalho do mundo hoje, priorizando o lucro de indústrias e empresas em detrimento do cuidado com pessoas — majoritariamente exercido por mulheres. Consequentemente, há a má remuneração dessa ocupação, o que afeta a igualdade de gênero na inserção no mercado de trabalho e atrapalha a emancipação feminina.
Portanto, fazem-se evidentes as matrizes da invisibilidade do trabalho de cuidado em solo nacional. Logo, não se deve hesitar: são necessárias medidas para a erradicação da problemática. É responsabilidade, então, do Ministério da Educação — órgão federal que gere o ensino brasileiro- alterar a estrutura machista e patriarcal nas salas de aula. Isso pode ser feito por meio da inserção na Base Nacional Comum Curricular de formas de empoderamento feminino como assunto obrigatório na formação cidadã. Essa mudança deve ser alcançada com a finalidade de valorizar o trabalho exercido por mulheres, principalmente os mais invisíveis, como o de cuidado. Outrossim, cabe ao Governo Federal aumentar o salário mínimo atual, com o objetivo de garantir uma remuneração adequada a todos, bem como às mulheres que se ocupam com o cuidado, favorecendo suas independências financeiras. Quem sabe, assim, todas as ‘Anas’ que cuidam do Brasil tornar-se-ão visíveis, valorizadas e prestigiadas.”