Assim que soube que as escolas abririam na capital, eu pensei em Murilo. Ele tem 9 anos e não pisava numa sala de aula desde março de 2020. Ano passado, a escola municipal em que estudava não abriu, já que era opcional. Em fevereiro de 2021, Murilo mudou para outra, cujo contrato com a empresa de limpeza não havia sido renovado pela Prefeitura e, portanto, demorou mais para ter aulas presenciais. Quando finalmente a burocracia se resolveu e ele pode voltar, descobriu na porta da escola que a professora havia contraído covid-19.
O menino e a mãe Telma Lima da Silva, empregada doméstica, voltaram para casa. Já era março. Não deu tempo nem de a professora se recuperar e vieram as fases vermelha e emergencial no Estado. Mais um mês de escolas fechadas, feriados adiantados. Algumas famílias de classe média e alta da cidade lamentaram mais uma vez seus filhos terem de se fechar em quartos e em computadores.
Já Murilo precisou se virar com poucas atividades, vídeos e PDFs de gibis mandados pela internet. Instruções por escrito, faça e mande de volta. As lições de inglês nunca fez porque a mãe não consegue entender. O menino ainda não aprendeu a escrever em letra cursiva, só a bastão. Telma se preocupa porque ele não compreende o mapa do Brasil. E na Matemática esqueceu muita coisa, não passa das somas simples.
Murilo nunca teve uma aula online, dessas que até cansaram os alunos de escolas particulares, nem em 2020 nem em 2021. Até esta semana, conhecia a sua professora do 4..º ano apenas pela foto que aparece no aplicativo Google Sala de Aula.
Recentemente, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas, António Guterres, chamou o impacto da pandemia na educação, por causa das escolas fechadas, de “catástrofe geracional”. Um relatório de março da Unesco, órgão da ONU, deixa claro que os prejuízos vão durar décadas, considerando efeitos no desenvolvimento econômico dos países e na construção de sociedades mais igualitárias.
O documento estima que só em 2030 se poderá voltar à trajetória de aprendizagem em que estavam os alunos brasileiros e de outros países latinos, tamanha a perda neste período. A Unesco fala em prejuízos de desenvolvimento até para bebês que estavam na barriga das mães em 2020. Os mais afetados são, claro, as nações mais pobres e os estudantes mais vulneráveis.
Mas, no mundo todo, cerca de 100 milhões de crianças de até 8 anos deixarão de aprender o que se espera em leitura e matemática. Muito desse prejuízo vem do distanciamento dos professores. Principalmente nos primeiros anos, o vínculo com o professor é crucial para a aprendizagem. O impacto é claro em Murilo, que mal viu uma professora durante um ano.
Mas na última quinta-feira, com as escolas autorizadas a abrir na capital, ele acordou às 4 horas da manhã de tanta ansiedade. Era o dia em que ele voltaria, de acordo com o rodízio estipulado pela direção. Na caminhada até a escola, ele pensava nos amigos e na professora que iria conhecer. Sorria sem parar.
A mãe gravou os últimos momentos antes da entrada, desejou “boa aula” com lágrimas nos olhos:
Na saída, Murilo contou feliz que fez três amigos, aprendeu sobre o mundo, sobre o Brasil. Nossas escolas precisam estar abertas, com segurança, para os milhões de Murilos. E os governos devem urgentemente investir em estratégias para recuperar o que essas crianças perderam e ainda perdem durante a pandemia. Sob o grave risco, como alerta a ONU, de arruinarmos uma geração inteira.
* É REPÓRTER ESPECIAL DO ESTADO E FUNDADORA DA ASSOCIAÇÃO DE JORNALISTAS DE EDUCAÇÃO (JEDUCA)