Instituições, sistemas e indicadores da educação superior, da ciência e da tecnologia no Brasil e no mundo

Julio de Mesquita Filho: a defesa sem concessões do ideal ético da universidade


Por Roberto Lobo

Julio de Mesquita Filho: a defesa sem concessões do ideal ético da universidade

Roberto Lobo* 19 de fevereiro de 2024 Fontes**

Julio de Mesquita Filho recebeu recentemente uma justa homenagem póstuma: a medalha Armando de Salles Oliveira, honraria outorgada pela Universidade de São Paulo por ocasião de seu 90º aniversário. Foi um necessário resgate de quem, revoltado com o proselitismo que identificava na universidade em certos momentos, devolveu seu título de doutor honoris causa que havia recebido da USP em 1934, por ocasião de sua fundação, juntamente com outros membros do grupo que ajudaram a conceber a universidade. Não acompanhei a história completa de Julio de Mesquita Filho, mas pelo que sei ele tinha, em relação à USP, a postura de um pai amoroso, enérgico e inflexível, comum naquela geração (e que parece estar rareando atualmente). Em 1934, Armando de Salles Oliveira era o interventor em São Paulo e foi quem criou formalmente a Universidade de São Paulo, baseado nas propostas do "Grupo do Estado" que a idealizara e lutava pela sua criação. Dois anos antes, a elite paulista havia saído derrotada de um conflito com o governo federal: a Revolução Constitucionalista de 1932. O surgimento da USP visava a três aspectos: o fortalecimento de São Paulo, que partia do cultural para atingir o político e o econômico; o empenho na formação de uma elite econômica capaz, imune às possíveis influências do governo federal contrárias aos interesses do Estado; e, sobretudo, a uma aspiração de reconquista de hegemonia perdida com a derrota de 1932. O projeto USP tinha sido desenvolvido por um grupo de intelectuais paulistas a partir do modelo europeu de universidade, em particular da universidade alemã de Humbolt, que exerceu grande influência no Novo Mundo. Caberia à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências (FFLC) fazer esta integração, por isso, era considerada a "alma da Universidade". A FFLC seria o local onde se desenvolveriam os estudos de cultura livre e desinteressada, ministrando os cursos básicos para todas as escolas profissionais, evitando a fragmentação do saber ocasionada pela crescente especialização. Dentro do mesmo espírito, Abraham Flexner, americano que produziu um relatório contundente sobre as escolas de medicina dos EUA, no início do século XX, a pedido do Congresso Americano, que levou ao fechamento de várias escolas e à reestruturação dos cursos médicos naquele país, criou o Instituto de Estudos Avançados de Princeton (Institute of Advanced Studies), fora da universidade, como um centro de pesquisa e reflexão livre e descomprometido com qualquer tipo de restrição ou burocracia e que veio a abrigar, entre outros eminentes cientistas, gente do calibre do físico Albert Einstein e do matemático Kurt Gödel. Nesse modelo a prioridade da criação de conhecimentos relevantes, a formação de lideranças intelectuais para o Brasil, a liberdade de pensamento e de investigação e o apoio à pesquisa desinteressada eram as marcas desta nova universidade pensada para São Paulo e para o Brasil, com a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências como órgão integrador do conhecimento onde conviveriam diferentes interesses culturais e científicos. A USP em seus primeiros anos trouxe da Europa pesquisadores, na maioria ainda jovens, que se tornariam renomados cientistas nos anos seguintes. Era um início magnífico para a nova universidade que crescia. Em 1937 implantou-se a ditadura Getúlio Vargas. Os novos rumos da política brasileira se fizeram sentir na USP. O projeto original foi se modificando e a instituição passou a ter um perfil mais profissionalizante, tendo seus professores estrangeiros expulsos. Em 1938, Ademar de Barros, interventor de São Paulo, ameaçou fechar a Faculdade de Filosofia. Nas palavras de Mesquita Filho na época "não a quiseram tal qual a ideamos. Em 1945, Júlio de Mesquita Filho discursou aos formandos sobre a universidade criada por Armando de Salles Oliveira, que era o paraninfo anteriormente escolhido pela turma que se formava, mas que tinha falecido alguns meses antes da cerimônia. Transcrevo parte deste discurso que reflete a posição do jornalista: "...Sem esses focos de pesquisa científica e de alta cultura, sem a rigorosa seleção pelo mérito, em benefício da ciência pura e aplicada, da política e da produção e sem uma consciência cada vez mais profunda do interesse geral, não há democracia que resista ao assalto das forças demagógicas e reacionárias..." "...Por toda a parte uma dupla pressão de políticos e de intelectuais procura arrastar as universidades para o tumulto partidário. Dos políticos quando querem submetê-las aos interesses dos extremismos da esquerda ou da direita e dos intelectuais, quando, professores, em vez de servir a ciência, se servem nas suas cátedras da ciência para fins políticos. A universidade, segundo a palavra de um eminente professor americano, L. D. Coffman -- é Armando de Salles Oliveira quem o cita ainda, - ensina politica, mas não advoga, nem pode advogar pelo fascismo nem pelo comunismo; ensina comércio sem dedicar-se aos negócios; estuda os problemas de assistência sem envolver-se na administração dos fundos de socorro; instrui sobre tática militar, mas isso não significa que fomente a guerra; informa e pesquisa sobre a paz, mas não funda clubes pacifistas, em resumo, a universidade estuda tudo que diga respeito ao bem da humanidade, sem quebrar lanças em nenhuma cruzada, exceto a cruzada pela liberdade do ensino. A única liberdade que importa a universidade é a liberdade do ensino e não a de fazer prosélitos..." Por esse tempo já as universidades americanas haviam passado a ter importância internacional e significativa no desenvolvimento dos EUA seguindo um modelo diferente do europeu. As universidades americanas combinaram as ênfases britânica no ensino de graduação em humanidades, a alemã na pesquisa de pós-graduação em ciências e na ligação estreita da universidade com a sociedade. A injeção maciça de fundos federais de pesquisa durante e após a Segunda Guerra Mundial alimentou ainda mais a ascensão do que Clark Kerr chamou de "multiversidade".*** A universidade, segundo ele, deixara de ser enclausurada, passando a ser central para a sociedade, "instrumento primordial de propósito nacional". Sua função era produzir novos conhecimentos, com informação em todas as suas formas. Como declarou Kerr, "o novo conhecimento é o fator mais importante para o crescimento econômico e social". A facilidade de comunicação decorrente dos avanços tecnológicos, estimulou a ligação dos pesquisadores com seus pares internacionais, reduzindo o interesse nas discussões que ocorriam no interior das universidades, o que Kerr chamou de efeito centrífugo. Essa nova tendência, irreversível, da universidade que chegou ao Brasil incomodava seus criadores. Apesar das críticas, as décadas de 50 e 60 foram efervescentes para a USP como centro de estudos, ideais e de pesquisas. Isso, porém, não impediu que, ainda nos anos 50, Paulo Duarte**** apontasse graves problemas existentes na Universidade de São Paulo. Nas páginas da Revista Anhembi ele demonstrava a deprimente situação vivida pela USP com a concessão de títulos de doutor honoris causa, acusando o Conselho Universitário de ter perdido a noção da ética e dignidade universitárias devido à distribuição oportunista de títulos acadêmicos, revelando o relaxamento moral e ético que também atingiram a Universidade. Júlio de Mesquita Filho não se conformou com a concessão do título de doutor honoris causa a Getúlio Vargas e Adhemar de Barros, em 1941. Tal situação levou-o a devolver, em 1955, o seu título, concedido em 1934, sob a alegação de que a Universidade outorgava láureas a "indivíduos cuja vida política se resume numa desabalada corrida às posições de mando e que se dispuseram a participar de golpes contra as instituições democráticas". Lembrando que ele reagiu com coragem à censura durante o período do regime militar. Tempos de gente idealista e corajosa, que não se submetia facilmente ao poder do momento e que eram defensores implacáveis da liberdade acadêmica e do respeito a seus princípios de livre pensar e pesquisar. O Brasil precisa de mais gente com a fibra de Julio de Mesquita Filho.

continua após a publicidade

*Roberto Lobo é PHD em Física e Doutor Honoris Causa pela Purdue University, foi Vice-reitor e Reitor da Universidade de São Paulo (USP), Reitor da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), Diretor do CNPq onde concebeu o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, entre outros cargos. Atualmente é Presidente do Instituto Lobo e Pesquisador Sênior do IEA-USP

** Fontes consultadas: - Discurso de Julio de Mesquita Filho "O Que é uma Universidade?", proferido em 1945 na USP, - "A Universidade Brasileira: O Caso da USP (1950-1977), de Marli Guimarães Hayashi, Thesis, Revista Eletrônica, São Paulo, ano II, número 4, 2005

*** Clark Kerr foi reitor da Universidade da California, escreveu um livro que ficou famoso "The Uses of the University", Harvard University Press, 2001

continua após a publicidade

**** Paulo Duarte foi advogado e jornalista que trabalhou no Jornal O Estado de São Paulo e junto com Julio de Mesquita Filho fez parte do grupo de criação da USP, sendo responsável pela escolha de professores franceses para integrar os quadros da universidade.

Julio de Mesquita Filho: a defesa sem concessões do ideal ético da universidade

Roberto Lobo* 19 de fevereiro de 2024 Fontes**

Julio de Mesquita Filho recebeu recentemente uma justa homenagem póstuma: a medalha Armando de Salles Oliveira, honraria outorgada pela Universidade de São Paulo por ocasião de seu 90º aniversário. Foi um necessário resgate de quem, revoltado com o proselitismo que identificava na universidade em certos momentos, devolveu seu título de doutor honoris causa que havia recebido da USP em 1934, por ocasião de sua fundação, juntamente com outros membros do grupo que ajudaram a conceber a universidade. Não acompanhei a história completa de Julio de Mesquita Filho, mas pelo que sei ele tinha, em relação à USP, a postura de um pai amoroso, enérgico e inflexível, comum naquela geração (e que parece estar rareando atualmente). Em 1934, Armando de Salles Oliveira era o interventor em São Paulo e foi quem criou formalmente a Universidade de São Paulo, baseado nas propostas do "Grupo do Estado" que a idealizara e lutava pela sua criação. Dois anos antes, a elite paulista havia saído derrotada de um conflito com o governo federal: a Revolução Constitucionalista de 1932. O surgimento da USP visava a três aspectos: o fortalecimento de São Paulo, que partia do cultural para atingir o político e o econômico; o empenho na formação de uma elite econômica capaz, imune às possíveis influências do governo federal contrárias aos interesses do Estado; e, sobretudo, a uma aspiração de reconquista de hegemonia perdida com a derrota de 1932. O projeto USP tinha sido desenvolvido por um grupo de intelectuais paulistas a partir do modelo europeu de universidade, em particular da universidade alemã de Humbolt, que exerceu grande influência no Novo Mundo. Caberia à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências (FFLC) fazer esta integração, por isso, era considerada a "alma da Universidade". A FFLC seria o local onde se desenvolveriam os estudos de cultura livre e desinteressada, ministrando os cursos básicos para todas as escolas profissionais, evitando a fragmentação do saber ocasionada pela crescente especialização. Dentro do mesmo espírito, Abraham Flexner, americano que produziu um relatório contundente sobre as escolas de medicina dos EUA, no início do século XX, a pedido do Congresso Americano, que levou ao fechamento de várias escolas e à reestruturação dos cursos médicos naquele país, criou o Instituto de Estudos Avançados de Princeton (Institute of Advanced Studies), fora da universidade, como um centro de pesquisa e reflexão livre e descomprometido com qualquer tipo de restrição ou burocracia e que veio a abrigar, entre outros eminentes cientistas, gente do calibre do físico Albert Einstein e do matemático Kurt Gödel. Nesse modelo a prioridade da criação de conhecimentos relevantes, a formação de lideranças intelectuais para o Brasil, a liberdade de pensamento e de investigação e o apoio à pesquisa desinteressada eram as marcas desta nova universidade pensada para São Paulo e para o Brasil, com a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências como órgão integrador do conhecimento onde conviveriam diferentes interesses culturais e científicos. A USP em seus primeiros anos trouxe da Europa pesquisadores, na maioria ainda jovens, que se tornariam renomados cientistas nos anos seguintes. Era um início magnífico para a nova universidade que crescia. Em 1937 implantou-se a ditadura Getúlio Vargas. Os novos rumos da política brasileira se fizeram sentir na USP. O projeto original foi se modificando e a instituição passou a ter um perfil mais profissionalizante, tendo seus professores estrangeiros expulsos. Em 1938, Ademar de Barros, interventor de São Paulo, ameaçou fechar a Faculdade de Filosofia. Nas palavras de Mesquita Filho na época "não a quiseram tal qual a ideamos. Em 1945, Júlio de Mesquita Filho discursou aos formandos sobre a universidade criada por Armando de Salles Oliveira, que era o paraninfo anteriormente escolhido pela turma que se formava, mas que tinha falecido alguns meses antes da cerimônia. Transcrevo parte deste discurso que reflete a posição do jornalista: "...Sem esses focos de pesquisa científica e de alta cultura, sem a rigorosa seleção pelo mérito, em benefício da ciência pura e aplicada, da política e da produção e sem uma consciência cada vez mais profunda do interesse geral, não há democracia que resista ao assalto das forças demagógicas e reacionárias..." "...Por toda a parte uma dupla pressão de políticos e de intelectuais procura arrastar as universidades para o tumulto partidário. Dos políticos quando querem submetê-las aos interesses dos extremismos da esquerda ou da direita e dos intelectuais, quando, professores, em vez de servir a ciência, se servem nas suas cátedras da ciência para fins políticos. A universidade, segundo a palavra de um eminente professor americano, L. D. Coffman -- é Armando de Salles Oliveira quem o cita ainda, - ensina politica, mas não advoga, nem pode advogar pelo fascismo nem pelo comunismo; ensina comércio sem dedicar-se aos negócios; estuda os problemas de assistência sem envolver-se na administração dos fundos de socorro; instrui sobre tática militar, mas isso não significa que fomente a guerra; informa e pesquisa sobre a paz, mas não funda clubes pacifistas, em resumo, a universidade estuda tudo que diga respeito ao bem da humanidade, sem quebrar lanças em nenhuma cruzada, exceto a cruzada pela liberdade do ensino. A única liberdade que importa a universidade é a liberdade do ensino e não a de fazer prosélitos..." Por esse tempo já as universidades americanas haviam passado a ter importância internacional e significativa no desenvolvimento dos EUA seguindo um modelo diferente do europeu. As universidades americanas combinaram as ênfases britânica no ensino de graduação em humanidades, a alemã na pesquisa de pós-graduação em ciências e na ligação estreita da universidade com a sociedade. A injeção maciça de fundos federais de pesquisa durante e após a Segunda Guerra Mundial alimentou ainda mais a ascensão do que Clark Kerr chamou de "multiversidade".*** A universidade, segundo ele, deixara de ser enclausurada, passando a ser central para a sociedade, "instrumento primordial de propósito nacional". Sua função era produzir novos conhecimentos, com informação em todas as suas formas. Como declarou Kerr, "o novo conhecimento é o fator mais importante para o crescimento econômico e social". A facilidade de comunicação decorrente dos avanços tecnológicos, estimulou a ligação dos pesquisadores com seus pares internacionais, reduzindo o interesse nas discussões que ocorriam no interior das universidades, o que Kerr chamou de efeito centrífugo. Essa nova tendência, irreversível, da universidade que chegou ao Brasil incomodava seus criadores. Apesar das críticas, as décadas de 50 e 60 foram efervescentes para a USP como centro de estudos, ideais e de pesquisas. Isso, porém, não impediu que, ainda nos anos 50, Paulo Duarte**** apontasse graves problemas existentes na Universidade de São Paulo. Nas páginas da Revista Anhembi ele demonstrava a deprimente situação vivida pela USP com a concessão de títulos de doutor honoris causa, acusando o Conselho Universitário de ter perdido a noção da ética e dignidade universitárias devido à distribuição oportunista de títulos acadêmicos, revelando o relaxamento moral e ético que também atingiram a Universidade. Júlio de Mesquita Filho não se conformou com a concessão do título de doutor honoris causa a Getúlio Vargas e Adhemar de Barros, em 1941. Tal situação levou-o a devolver, em 1955, o seu título, concedido em 1934, sob a alegação de que a Universidade outorgava láureas a "indivíduos cuja vida política se resume numa desabalada corrida às posições de mando e que se dispuseram a participar de golpes contra as instituições democráticas". Lembrando que ele reagiu com coragem à censura durante o período do regime militar. Tempos de gente idealista e corajosa, que não se submetia facilmente ao poder do momento e que eram defensores implacáveis da liberdade acadêmica e do respeito a seus princípios de livre pensar e pesquisar. O Brasil precisa de mais gente com a fibra de Julio de Mesquita Filho.

*Roberto Lobo é PHD em Física e Doutor Honoris Causa pela Purdue University, foi Vice-reitor e Reitor da Universidade de São Paulo (USP), Reitor da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), Diretor do CNPq onde concebeu o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, entre outros cargos. Atualmente é Presidente do Instituto Lobo e Pesquisador Sênior do IEA-USP

** Fontes consultadas: - Discurso de Julio de Mesquita Filho "O Que é uma Universidade?", proferido em 1945 na USP, - "A Universidade Brasileira: O Caso da USP (1950-1977), de Marli Guimarães Hayashi, Thesis, Revista Eletrônica, São Paulo, ano II, número 4, 2005

*** Clark Kerr foi reitor da Universidade da California, escreveu um livro que ficou famoso "The Uses of the University", Harvard University Press, 2001

**** Paulo Duarte foi advogado e jornalista que trabalhou no Jornal O Estado de São Paulo e junto com Julio de Mesquita Filho fez parte do grupo de criação da USP, sendo responsável pela escolha de professores franceses para integrar os quadros da universidade.

Julio de Mesquita Filho: a defesa sem concessões do ideal ético da universidade

Roberto Lobo* 19 de fevereiro de 2024 Fontes**

Julio de Mesquita Filho recebeu recentemente uma justa homenagem póstuma: a medalha Armando de Salles Oliveira, honraria outorgada pela Universidade de São Paulo por ocasião de seu 90º aniversário. Foi um necessário resgate de quem, revoltado com o proselitismo que identificava na universidade em certos momentos, devolveu seu título de doutor honoris causa que havia recebido da USP em 1934, por ocasião de sua fundação, juntamente com outros membros do grupo que ajudaram a conceber a universidade. Não acompanhei a história completa de Julio de Mesquita Filho, mas pelo que sei ele tinha, em relação à USP, a postura de um pai amoroso, enérgico e inflexível, comum naquela geração (e que parece estar rareando atualmente). Em 1934, Armando de Salles Oliveira era o interventor em São Paulo e foi quem criou formalmente a Universidade de São Paulo, baseado nas propostas do "Grupo do Estado" que a idealizara e lutava pela sua criação. Dois anos antes, a elite paulista havia saído derrotada de um conflito com o governo federal: a Revolução Constitucionalista de 1932. O surgimento da USP visava a três aspectos: o fortalecimento de São Paulo, que partia do cultural para atingir o político e o econômico; o empenho na formação de uma elite econômica capaz, imune às possíveis influências do governo federal contrárias aos interesses do Estado; e, sobretudo, a uma aspiração de reconquista de hegemonia perdida com a derrota de 1932. O projeto USP tinha sido desenvolvido por um grupo de intelectuais paulistas a partir do modelo europeu de universidade, em particular da universidade alemã de Humbolt, que exerceu grande influência no Novo Mundo. Caberia à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências (FFLC) fazer esta integração, por isso, era considerada a "alma da Universidade". A FFLC seria o local onde se desenvolveriam os estudos de cultura livre e desinteressada, ministrando os cursos básicos para todas as escolas profissionais, evitando a fragmentação do saber ocasionada pela crescente especialização. Dentro do mesmo espírito, Abraham Flexner, americano que produziu um relatório contundente sobre as escolas de medicina dos EUA, no início do século XX, a pedido do Congresso Americano, que levou ao fechamento de várias escolas e à reestruturação dos cursos médicos naquele país, criou o Instituto de Estudos Avançados de Princeton (Institute of Advanced Studies), fora da universidade, como um centro de pesquisa e reflexão livre e descomprometido com qualquer tipo de restrição ou burocracia e que veio a abrigar, entre outros eminentes cientistas, gente do calibre do físico Albert Einstein e do matemático Kurt Gödel. Nesse modelo a prioridade da criação de conhecimentos relevantes, a formação de lideranças intelectuais para o Brasil, a liberdade de pensamento e de investigação e o apoio à pesquisa desinteressada eram as marcas desta nova universidade pensada para São Paulo e para o Brasil, com a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências como órgão integrador do conhecimento onde conviveriam diferentes interesses culturais e científicos. A USP em seus primeiros anos trouxe da Europa pesquisadores, na maioria ainda jovens, que se tornariam renomados cientistas nos anos seguintes. Era um início magnífico para a nova universidade que crescia. Em 1937 implantou-se a ditadura Getúlio Vargas. Os novos rumos da política brasileira se fizeram sentir na USP. O projeto original foi se modificando e a instituição passou a ter um perfil mais profissionalizante, tendo seus professores estrangeiros expulsos. Em 1938, Ademar de Barros, interventor de São Paulo, ameaçou fechar a Faculdade de Filosofia. Nas palavras de Mesquita Filho na época "não a quiseram tal qual a ideamos. Em 1945, Júlio de Mesquita Filho discursou aos formandos sobre a universidade criada por Armando de Salles Oliveira, que era o paraninfo anteriormente escolhido pela turma que se formava, mas que tinha falecido alguns meses antes da cerimônia. Transcrevo parte deste discurso que reflete a posição do jornalista: "...Sem esses focos de pesquisa científica e de alta cultura, sem a rigorosa seleção pelo mérito, em benefício da ciência pura e aplicada, da política e da produção e sem uma consciência cada vez mais profunda do interesse geral, não há democracia que resista ao assalto das forças demagógicas e reacionárias..." "...Por toda a parte uma dupla pressão de políticos e de intelectuais procura arrastar as universidades para o tumulto partidário. Dos políticos quando querem submetê-las aos interesses dos extremismos da esquerda ou da direita e dos intelectuais, quando, professores, em vez de servir a ciência, se servem nas suas cátedras da ciência para fins políticos. A universidade, segundo a palavra de um eminente professor americano, L. D. Coffman -- é Armando de Salles Oliveira quem o cita ainda, - ensina politica, mas não advoga, nem pode advogar pelo fascismo nem pelo comunismo; ensina comércio sem dedicar-se aos negócios; estuda os problemas de assistência sem envolver-se na administração dos fundos de socorro; instrui sobre tática militar, mas isso não significa que fomente a guerra; informa e pesquisa sobre a paz, mas não funda clubes pacifistas, em resumo, a universidade estuda tudo que diga respeito ao bem da humanidade, sem quebrar lanças em nenhuma cruzada, exceto a cruzada pela liberdade do ensino. A única liberdade que importa a universidade é a liberdade do ensino e não a de fazer prosélitos..." Por esse tempo já as universidades americanas haviam passado a ter importância internacional e significativa no desenvolvimento dos EUA seguindo um modelo diferente do europeu. As universidades americanas combinaram as ênfases britânica no ensino de graduação em humanidades, a alemã na pesquisa de pós-graduação em ciências e na ligação estreita da universidade com a sociedade. A injeção maciça de fundos federais de pesquisa durante e após a Segunda Guerra Mundial alimentou ainda mais a ascensão do que Clark Kerr chamou de "multiversidade".*** A universidade, segundo ele, deixara de ser enclausurada, passando a ser central para a sociedade, "instrumento primordial de propósito nacional". Sua função era produzir novos conhecimentos, com informação em todas as suas formas. Como declarou Kerr, "o novo conhecimento é o fator mais importante para o crescimento econômico e social". A facilidade de comunicação decorrente dos avanços tecnológicos, estimulou a ligação dos pesquisadores com seus pares internacionais, reduzindo o interesse nas discussões que ocorriam no interior das universidades, o que Kerr chamou de efeito centrífugo. Essa nova tendência, irreversível, da universidade que chegou ao Brasil incomodava seus criadores. Apesar das críticas, as décadas de 50 e 60 foram efervescentes para a USP como centro de estudos, ideais e de pesquisas. Isso, porém, não impediu que, ainda nos anos 50, Paulo Duarte**** apontasse graves problemas existentes na Universidade de São Paulo. Nas páginas da Revista Anhembi ele demonstrava a deprimente situação vivida pela USP com a concessão de títulos de doutor honoris causa, acusando o Conselho Universitário de ter perdido a noção da ética e dignidade universitárias devido à distribuição oportunista de títulos acadêmicos, revelando o relaxamento moral e ético que também atingiram a Universidade. Júlio de Mesquita Filho não se conformou com a concessão do título de doutor honoris causa a Getúlio Vargas e Adhemar de Barros, em 1941. Tal situação levou-o a devolver, em 1955, o seu título, concedido em 1934, sob a alegação de que a Universidade outorgava láureas a "indivíduos cuja vida política se resume numa desabalada corrida às posições de mando e que se dispuseram a participar de golpes contra as instituições democráticas". Lembrando que ele reagiu com coragem à censura durante o período do regime militar. Tempos de gente idealista e corajosa, que não se submetia facilmente ao poder do momento e que eram defensores implacáveis da liberdade acadêmica e do respeito a seus princípios de livre pensar e pesquisar. O Brasil precisa de mais gente com a fibra de Julio de Mesquita Filho.

*Roberto Lobo é PHD em Física e Doutor Honoris Causa pela Purdue University, foi Vice-reitor e Reitor da Universidade de São Paulo (USP), Reitor da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), Diretor do CNPq onde concebeu o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, entre outros cargos. Atualmente é Presidente do Instituto Lobo e Pesquisador Sênior do IEA-USP

** Fontes consultadas: - Discurso de Julio de Mesquita Filho "O Que é uma Universidade?", proferido em 1945 na USP, - "A Universidade Brasileira: O Caso da USP (1950-1977), de Marli Guimarães Hayashi, Thesis, Revista Eletrônica, São Paulo, ano II, número 4, 2005

*** Clark Kerr foi reitor da Universidade da California, escreveu um livro que ficou famoso "The Uses of the University", Harvard University Press, 2001

**** Paulo Duarte foi advogado e jornalista que trabalhou no Jornal O Estado de São Paulo e junto com Julio de Mesquita Filho fez parte do grupo de criação da USP, sendo responsável pela escolha de professores franceses para integrar os quadros da universidade.

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.