Privatização da gestão do ensino básico?
Roberto Lobo* 19 de Junho 2024
Periodicamente, ressurge no Brasil a discussão sobre propostas que visam transferir para a iniciativa privada parte da responsabilidade de gestão e manutenção das escolas de ensino fundamental. As propostas mais radicais transferem todas as responsabilidades dessa nova modalidade de escolas ao setor privado, concedendo autonomia financeira e de gestão, à semelhança das Charter Schools americanas. Outra linha, mais cautelosa, propõe que seja transferido para o setor privado somente na parte de obras e manutenção. A ideia é que as unidades sejam construídas e administradas pela iniciativa privada ao longo de 25 anos. Segundo os governos de São Paulo e Paraná, "a empresa contratada ficaria responsável por serviços como operação, limpeza, manutenção, segurança e infraestrutura das escolas". Já a parte pedagógica, como a definição sobre o material didático, direção da unidade e planejamento do ano letivo, permaneceria sob o guarda-chuva da Secretaria Estadual de Educação. Uma proposta aparentemente conciliadora, mas que, na verdade, cria dois comandos paralelos dentro da mesma instituição. Dificilmente dará certo. Mesmo que a proposta desses governos estaduais seja tímida, ela já vem provocando revolta e críticas contundentes por parte da imprensa, dos sindicatos de professores e de alguns educadores que defendem o "ensino público e gratuito" e que consideram que a "gestão democrática do ensino" com escolha dos dirigentes por meio de colégios eleitorais poderia resolver nossos problemas do ensino fundamental, nos erguendo acima do patamar vergonhoso em que nos encontramos atualmente em exames internacionais como o PISA (Programme for International Student Assessment) nas dificuldades dos egressos do ensino médio de darem conta dos conteúdos necessários para o acompanhamento de um bom curso superior ou, de posse do diploma universitário, no formado dar conta das exigências de seu trabalho profissional. De modo geral, os defensores de maior ação e peso do estado defendem a manutenção do modelo atual, onde as escolas públicas respondem aos governos, nos diferentes níveis, em todos os aspectos: tanto financeiros quanto educacionais. Já o setor mais conservador e liberal, se encanta com a possibilidade de retirar do estado superdimensionado parte das atividades educacionais mediante a transferência destes encargos ao setor privado, gratuito ao aluno, mas remunerando os custos por meio do estado. Seria um tipo de concessão, como acontece com o transporte público, com a telefonia (um sucesso retumbante fruto da decisão corajosa da época de Sergio Motta no governo de Fernando Henrique Cardoso) e outros, com o serviço prestado pela concessionária sendo acompanhado pelo estado por meio de uma agência reguladora. Aconteceu com a telefonia e deu certo, mas há muitas concessões que não funcionam tão bem, não cumprem o prometido na hora da licitação e aumentam exorbitantemente os preços dos serviços prestados sem uma qualidade de serviço equivalente etc. A constatação de alguns fracassos dessa política leva parte dos brasileiros a desacreditar de parcerias público-privadas. É importante observar que, no Brasil, defensores do ensino público e gratuito em todos os níveis, bateram palmas para o aumento de matrículas no ensino superior, que só foi possível alcançar com a abertura do sistema para instituições privadas sem e com fins lucrativos. Esse crescimento teria sido impossível sem o aporte de recursos e da gestão do setor privado, tendo feito parte da política educacional do governo Fernando Henrique Cardoso e seu ministro da educação Paulo Renato Souza. Como não se faz omelete sem quebrar ovos, a crescente presença do setor privado com fins lucrativos no ensino superior permitiu um aumento significativo das matrículas, mas, ao mesmo tempo, introduziu uma série de distorções no sistema educacional brasileiro que será preciso corrigir. O artigo "Escolas charter superam escolas públicas nos EUA, com resultados de NY entre os melhores do país" de Carl Campanille, publicado ano passado no New York Post, afirma que escolas charter nos EUA estão superando, em todo o país e significativamente, as escolas públicas tradicionais - e por margens particularmente grandes na cidade de Nova York e em outras áreas urbanas. Este artigo se baseou em estudos realizados por Margaret Macke Raymond, diretora do prestigioso Centro de Pesquisa sobre Resultados Educacionais da Universidade de Stanford - CREDO, que realizou o estudo comparativo e concluiu que os resultados favoráveis às Charter Schools não poderiam ser um acaso. Disse ela no artigo: "O setor de escolas charter melhorou muito em todo o país - os resultados de New York estão entre os melhores do país". Há, atualmente, quase 4 milhões de estudantes matriculados em 8 mil escolas charter. Os pesquisadores de Stanford analisaram os resultados dos testes dos 4 milhões de estudantes de 2015 a 2019 de 29 estados e da cidade de Nova York e Washington, DC e traduziram os ganhos em dias equivalentes de aprendizado para os alunos. Esses ganhos de conhecimento eram equivalentes entre 30 e 100 dias de aprendizado a mais nas charters schools. Nos EUA, as charters schools podem ser administradas por organizações sociais e outras entidades sem fins lucrativos ou por empresas educacionais com fins lucrativos - o que nos preocuparia, tendo em vista algumas experiências desabonadoras ocorridas em nosso país. A experiência americana não é única. Tendo aberto sua primeira escola charter em 1992, os Estados Unidos são pioneiros nesta iniciativa, que permite que escolas selecionadas operem no setor público com mais autonomia do que as escolas públicas regulares. Pelo menos, outros 14 países, abrangendo três continentes, seguem o modelo nos quais governos nacionais e regionais tomaram medidas recentes para introduzir alguma forma de escolarização baseada no mercado em seus sistemas públicos de ensino: Reino Unido, Argentina, Austrália, Canadá, Chile, partes da China, França, Japão, Holanda, Nicarágua, Paquistão, Catar, Cingapura e Tanzânia (na China estas medidas fazem parte do que eles denominam "socialismo de mercado"). Em oposição aos que defendem as Charter Schools, Linda Darling-Hammond, da Stanford University School of Education, no artigo: "What Can PISA Tell Us about U.S. Education Policy?" publicado pela New England Journal of Public Policy em 2014 critica fortemente os esforços do governo americano para melhorar o desempenho da educação básica e dos resultados nos exames PISA, um permanente e humilhante libelo sobre a educação americana frente ao conjunto de países que participa do exame internacional, incluindo aí as Charter Schools americanas. Os EUA estão estacionados ou sendo ultrapassados por países sem grande tradição em educação básica. Mas boa parte destas críticas aponta para o tamanho e as desigualdades sociais e econômicas existentes nos EUA e na forma de estabelecer a atingir metas objetivas, priorizando exames do tipo vestibular, com questões de múltipla escolha, ao invés de questões discursivas e problemas de aplicação de fórmulas e não de questões mais abertas (como no PISA). Por outro lado, um defensor radical das Charter Schools é o economista negro Thomas Sowell graduado em economia pela Universidade Harvard em 1958, com mestrado em economia pela Universidade Columbia e doutor em economia pela Universidade de Chicago. Ele é membro do Instituto Hoover na Universidade de Stanford e ganhou notoriedade por, sendo negro, opor-se às ações afirmativas como as cotas raciais. Como intelectual, escreveu mais de 30 livros. Em 2002 recebeu a Medalha Nacional de Humanidades. Em 2020, Sowell publicou o livro "Charter Schools and their enemies". Foi seu quinquagésimo sexto livro, publicado em seu nonagésimo aniversário. No prefácio, ele traça a gênese das Charter Schools a partir de discussões no início dos anos 1970, que resultou em dois artigos em meados do mesmo ano. O que o levou a desenvolver ainda mais seu pensamento agora são o que considera os crescentes perigos políticos que ameaçam as escolas charter sob a bandeira da "reforma", o que minaria ainda mais "a tarefa urgente de educar os jovens nas habilidades que determinarão que tipo de futuro eles terão disponíveis quando adultos". O capítulo inicial começa fazendo referência às "conclusões extremamente diferentes" a que as pessoas chegaram sobre o sucesso, ou o fracasso das escolas charter, apesar de seu rápido crescimento (diante de restrições políticas e processuais que Sowell discute mais adiante no livro) desde a década de 1990, alimentado pela demanda dos pais que continua a gerar longas listas de espera e loterias para vagas disponíveis nessas escolas. Com uma enorme quantidade de dados coletados e de estudos, pareceria que mais consenso deveria ter sido alcançado. Para ele, e para todos nós que trabalhamos com educação, é muito difícil separar adequadamente as variáveis para determinar estatisticamente a vantagem de um processo educacional sobre outro, como: a origem social dos alunos e o acesso a ambientes mais ou menos cultos, a formação e valores de seus pais e sua participação na formação da criança, a influência de amigos, a região onde foi criado, o acesso à informação, etc. Nos EUA, somente 7% das matrículas do ensino básico estão nas charters schools - volume insuficiente para alterar as estatísticas relativas ao desempenho global das escolas americanas nos últimos anos. No Reino Unido, mais de 40% dos estudantes do ensino básico estão matriculados nas academies, equivalentes às charter schools, e este ocupou o 11º lugar no PISA de 2022. Como escreve Sowell, "Infelizmente uma grande complicação nos estudos que comparam escolas charter públicas com escolas públicas tradicionais é que as origens raciais, étnicas e socioeconômicas dos alunos nas escolas charter como um todo acabam sendo muito diferentes das dos alunos das escolas tradicionais", o que torna "difícil saber exatamente o quanto de quaisquer diferenças podem existir nos resultados educacionais são devidos às próprias escolas e o quanto são devidos à sua diferente mistura de alunos de diferentes origens étnicas e socioeconômicas". No capítulo 3 Sowell analisa o "notável sucesso" das escolas charter estudadas e o nível impressionante de hostilidade contra elas por professores e administradores de escolas públicas, seus sindicatos, escolas de educação e políticos que buscam apoio sindical. E a razão é simples, segundo ele: "São as escolas charter bem-sucedidas que constituem a verdadeira ameaça às escolas públicas sindicalizadas tradicionais". No Brasil, esta mobilização nos soa conhecida... Analisando o livro, o professor Gary Galles, da Pepperdine University, fez uma longa análise do livro denominada "The Independent Review" também no Journal of Political Economy em 2020, onde afirma: "A discussão no capítulo 3 sobre a extensão da hostilidade em relação às escolas charter e os tipos de restrições que os sindicatos de professores desejam impor a elas é uma leitura ao mesmo tempo fascinante e deprimente. Aqueles que levam a sério a melhoria dos resultados educacionais, especialmente para aqueles que enfrentam as piores opções, sentirão sua pressão arterial aumentar drasticamente, começando com a lista do que os sindicatos de professores exigem para permitir fretar escolas. As exigências geralmente não trazem benefícios educacionais para os alunos para os quais elas deveriam ser orientadas. Talvez o mais impressionante sejam os muitos exemplos de subterfúgios usados para negar às escolas charter espaço para funcionar, mas que são escondidos da vista do público". Por exemplo, a cidade de Detroit, com os piores resultados educacionais do país, impôs uma condição de "uso residencial apenas" a uma venda de edifícios escolares não utilizados para impedi-los de serem usados por escolas charter. Cincinnati fez o mesmo com uma cláusula "não para uso pelas escolas". Milwaukee usou uma cláusula de "não uso concorrente" da mesma forma. Cleveland demoliu, usou para armazenamento, ou categorizou como "diversos" trinta edifícios fechados para fazer o mesmo. Washington, D.C., converteu escolas não utilizadas e subutilizadas para fins administrativos, incluindo o uso por outras agências governamentais e organizações sem fins lucrativos, e transformou outras propriedades em apartamentos, uso de varejo etc., apesar da exigência legal de um "direito de preferência" para escolas charter. São relatados no livro vários outros exemplos de medidas semelhantes. Talvez o mais flagrante tenha sido quando Oakland revogou a carta das American Indian Model Schools com base em alegações que eram infundadas e irrelevantes, mesmo tendo sido a escola de melhor desempenho no Condado de Alameda e a Newsweek a classificou como uma das cem melhores escolas públicas de ensino médio do país. O capítulo 4 concentra-se nas alegações de que as escolas charter não são "responsáveis", ao contrário das escolas públicas. Infelizmente, segundo o autor, os professores e administradores das escolas públicas são quase exclusivamente responsáveis perante o governo e os sindicatos por seguirem os procedimentos exigidos, ilustrados com vários exemplos de confrontos de posição, e usam todas as desculpas possíveis para impedir que testes de alto risco revelem seus resultados educacionais, muitas vezes sombrios, ou afetem seus rendimentos ou empregos. Eles são, portanto, quase completamente irresponsáveis perante os pais pelo aprendizado dos alunos. Em contraste, as escolas charter são altamente responsáveis perante os pais, que podem facilmente remover seus filhos se eles produzirem resultados educacionais ruins e defende que as escolas charter são as únicas opções reais que muitas pessoas mais pobres têm para melhor educar seus filhos. O capítulo 5 trata das diferenças entre os alunos, sendo as mais notáveis as diferenças de atitudes em relação à educação. Nas escolas charter, que estão em comunidades majoritariamente minoritárias, "alunos de minorias motivadas são educados entre outros alunos de minorias motivados". Quando combinado com uma disciplina mais rígida nas escolas charter, isso permite que esses alunos "busquem livremente o desempenho acadêmico" (p. 95). Em contraste, por meio de leis de frequência obrigatória, incentivos financeiros vinculados à frequência em vez de aprendizagem e com disciplina corroída, as escolas públicas muitas vezes deixam "alguns alunos disruptivos e violentos arruinar a educação de um número muito maior de outros alunos que estão na escola para aprender". No Brasil, infelizmente, esta discussão necessária está contaminada pela radicalização ideológica. A experiência brasileira em outras áreas nos leva a olhar com desconfiança e um pé atrás, a privatização de serviços essenciais à população, pela falta de real acompanhamento do serviço prestado por parte dos órgãos fiscalizadores e pela ideologia da estatização que prepondera em certos segmentos da sociedade brasileira, além da previsível reação decorrente da ameaça à perda de controle pelos sindicatos e do poder de nomeação dos políticos em vários níveis. Como nossa educação está precisando de um choque, talvez devêssemos correr o risco de tentar esse modelo em pequenas proporções, de forma descentralizada, acompanhá-lo em seus resultados, corrigindo rumos quando necessário, e torcer para que esta alternativa possa contribuir para a melhoria do nosso problemático ensino público fundamental. A vantagem é que será difícil piorá-lo!
*Roberto Lobo é PhD em física pela Purdue University, foi reitor da USP e é presidente do Instituto Lobo