‘Se um branco diz o mesmo que eu, é visto como gênio’, diz 1ª reitora eleita para uma federal


Levantamento aponta que apenas oito de 302 instituições públicas de ensino superior do País são chefiadas por reitores negros

Por Laila Nery
Atualização:
Foto: Malu Carvalho/Divulgação
Entrevista comJoana GuimarãesReitora da Universidade Federal do Sul da Bahia (Ufsb)

Vinda de uma família que saiu da área rural no interior da Bahia, Joana Guimarães, de 63 anos, já fez história ao se tornar professora universitária e pesquisadora fora do Brasil. Em 2018, porém, veio um marco ainda mais significativo: ela se tornou a primeira mulher negra eleita como reitora de uma universidade federal: a do Sul da Bahia (Ufsb), que tem câmpus nas cidades de Itabuna, Teixeira de Freitas e Porto Seguro.

Levantamento do Observatório da Branquitude, divulgado no ano passado, mostrou que apenas oito de 302 instituições públicas de ensino superior do País eram chefiadas por reitores negros.

“Ainda escuto que eu sou a reitora, mas quem manda na universidade é o meu vice – ele é um homem branco”, afirma Joana, que é geóloga com doutorado em Engenharia Ambiental. “Essas questões ainda existem e as pessoas também fingem que não me escutam em alguns ambientes, me ignoram”, relata.

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Joana Guimarães, primeira reitora negra em uma universidade federal, está à frente da Ufsb desde 2018 Foto: Malu Carvalho/Divulgação

“O racismo é um potencializador de desigualdades e um demonstrativo é olhar para os espaços ocupados por negros e brancos”, afirma o vice-diretor da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), Delton Felipe. “Temos de nos atentar para as políticas de reparação, como cotas e ações afirmativas”, defende ele, professor da Universidade Estadual de Maringá.

Seu currículo inclui passagem em universidades federais e pesquisas em instituições nos Estados Unidos. De onde vem o interesse pela academia?

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Estudar era o sonho da minha mãe, mas ela nasceu em uma família muito grande e humilde. Meus familiares trabalhavam nas lavouras da zona rural de Itajuípe (sul da Bahia) e o pai de Jorge Amado (o escritor) foi patrão do meu avô. Ele deu uma casinha na cidade para que o meu avô conseguisse matricular os filhos na escola, foi assim que o meu pai começou a estudar.

Minha mãe também era filha de trabalhadores rurais e ela era muito apegada a esse sonho de estudar. Ela lia muito e por causa daquela casinha conseguimos nos mudar para a cidade, era um lugar humilde e que não comportava toda a nossa família. Tenho 137 primos, família enorme, era difícil ter concentração. Mas, incentivada pela minha mãe, me apaixonei pela leitura e continuei nutrindo o sonho de estudar.

Quando eu tinha 15 anos, o meu pai conseguiu uma oportunidade de trabalho em Salvador e nos mudamos para lá. Foi quando tive a oportunidade de frequentar a escola técnica. Mas, era muito difícil, às vezes passávamos dificuldade e eu ouvia o meu pai dizer à minha mãe ‘amor, vamos voltar pra roça, porque temos comida lá, a gente planta e colhe’ e ela respondia ‘eu morro de fome, mas meus filhos não saem da escola’.

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Posso falar que a minha mãe foi a grande incentivadora e, por causa dela, eu e os meus cinco irmãos nutrimos esse amor pela leitura. Eu lia tanto quanto a minha mãe. Uma lembrança engraçada de infância é que quando ela queria me colocar de castigo tirava os meus livros. Essa motivação reverberou em tudo o que sou e o que a nossa família se tornou.

É possível dizer que avançamos na ocupação de espaço da população negra nas universidades?

Durante minha infância e juventude, o acesso à universidade era sistematicamente negado a todos nós. Fui a primeira da minha família a adentrar esse ambiente acadêmico e, naquela época, fui frequentemente confrontada com a ideia de que aquele não era um espaço destinado a mim.

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Essa perspectiva provinha tanto daqueles que já ocupavam as Universidades, quanto daqueles que compartilhavam minha realidade, pois muitos indivíduos que enfrentavam circunstâncias semelhantes também consideravam essa conquista como algo inatingível. Entretanto, à medida que comecei a pavimentar novas trilhas para minha própria trajetória, percebi que meu exemplo inspirou muitas outras pessoas a enxergarem a possibilidade concreta de realização. Era possível.

No entanto, não podemos ignorar o fato de que ainda há um longo caminho a percorrer. Nossa competência intelectual continua a ser questionada em excesso, como se estivéssemos eternamente dependentes de orientação e supervisão para trilhar esses espaços. Ainda escutamos que somos tutelados por alguém.

Aqui na Ufsb estamos nos esforçando para que a presença de estudantes pretos, pardos, indígenas, PCDs, todos os estudantes, tenham confiança em um ambiente confortável para o desenvolvimento das suas aptidões. São cerca de 5,5 mil estudantes, desses 56% de estudantes pretos e pardos, 303 estudantes indígenas que corresponde a cerca de 5% do total de alunos, além disso temos 86 alunos de comunidades quilombolas

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Esse desejo em ser reitora sempre existiu na sua trajetória na docência?

Minha trajetória é profundamente influenciada pelo meu interesse pela literatura e, consequentemente, pela pesquisa. Iniciei minha jornada acadêmica em Salvador, porém, ao casar com um gaúcho, decidi acompanhar meu marido quando ele obteve aprovação para o mestrado no Rio Grande do Sul. Juntos, decidimos mudar de região e fiz um novo vestibular. Foi assim que iniciei os estudos de Geologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Após a conclusão da graduação, decidimos pelo retorno à Salvador, onde realizei o mestrado na Federal da Bahia (UFBA).

Nesta mesma época, o meu marido prestou concurso e se tornou docente da UFBA e novas oportunidades surgiram para a nossa família. Ele conseguiu uma licença para buscar o doutorado nos Estados Unidos. Foi nesse ponto da trajetória que comecei a atuar como assistente de ensino nos EUA, garantindo uma bolsa para realizar meu próprio doutorado.

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Com o término de nossos estudos nos EUA, retornamos e também fui aprovada em um concurso e iniciei minha docência no Instituto de Geociências da Federal da Bahia. Naquela época, meu foco era dar continuidade às minhas pesquisas, e eu mantinha a convicção de que não desejava envolver-me com a gestão acadêmica.

Entretanto, ter uma pesquisa de doutorado reconhecida me gerava muitos convites para assumir cargos de gestão. Eu sempre dizia não. Até que em razão da expansão das instituições de ensino superior no Estado fui convidada para atuar na implementação da UFBA em Barreiras, no oeste da Bahia, e aceitei o desafio.

A senhora já foi confundida com outros profissionais ou questionada sobre a sua capacidade de gerir uma universidade?

Naquela época, eu não tinha planos de retornar para o sul da Bahia, mas retornar com uma posição de reitora encheu a minha família de orgulho. Saí daqui jovem, vivíamos numa casa precária, que nem tinha banheiro. Hoje sou vista de outra maneira na região – eu mudei, e todos ao meu redor enxergam em mim essa possibilidade.

Ainda escuto que sou a reitora, mas quem manda na universidade é o meu vice – ele é um homem branco. Essas questões ainda existem e as pessoas também fingem que não me escutam em alguns ambientes, me ignoram. Quando um homem branco diz a mesma coisa que eu, ele é aplaudido e visto como gênio. Hoje as pessoas têm mais receio e mais cuidado em suas falas racistas. Quando eu era mais jovem, não tinham esse receio.

Por que ainda é tão rara a presença de pessoas negras ocupando esses espaços?

A escassez de incentivo é visível até mesmo no âmbito da educação básica. Recordo-me de situações dentro de minha própria família, na adolescência, onde meu irmão, o de pele mais escura entre nós seis, frequentemente ouvia de suas professoras que ele não possuía aparência agradável. Ele e minha irmã mais nova, de pele mais clara, compartilhavam a mesma sala de aula e, lamentavelmente, eram frequentemente alvo de comparações físicas. Ouvir repetidamente que ele era “feio” chegou a afetar sua autoestima a ponto de fazê-lo cogitar abandonar a escola.

Minha mãe se viu em um embate constante com ele, enquanto ele expressava sua aversão pelas professoras .Tivemos incentivo e nossa mãe enfatizava que a “educação não é uma escolha”, assim ele jamais teve a alternativa de desistir. Minha mãe empenhou-se intensamente para incentivar seu percurso escolar, resultando no fato notável de todos os seis filhos alcançarem níveis de pós-graduação.

É essencial monitorarmos a representação de estudantes e professores negros na universidade e fortalecermos laços com comunidades periféricas e rurais. Devemos evitar impor padrões ultrapassados aos estudantes provenientes desses contextos, priorizando a diversidade de conhecimentos e experiências.

A troca de saberes desempenha papel fundamental, reconhecendo e valorizando as perspectivas únicas de cada indivíduo. Ao promovermos um ambiente inclusivo e colaborativo, enriquecemos o aprendizado e a pesquisa com uma variedade de visões de mundo, beneficiando tanto os indivíduos quanto a academia como um todo.

Como funciona o projeto político-pedagógico da UFSB, que tem foco na diversidade e inclusão?

Um dos projetos de maior sucesso em nossa trajetória foi concebido em colaboração com a rede estadual de educação, o projeto de colégios universitários. Este projeto foi concebido com o intuito de viabilizar o acesso ao ensino superior para estudantes provenientes de cidades do interior da Bahia, incluindo comunidades rurais, indígenas e quilombolas.

Por meio desse projeto, possibilitamos que esses alunos, que muitas vezes enfrentam desafios logísticos, possam assistir às aulas de forma remota, em suas próprias escolas. Esse enfoque, por sua vez, reduz a necessidade de presença física no câmpus, contribuindo significativamente para evitar o fenômeno do êxodo estudantil.

Um componente crucial desse projeto são os docentes que realizam pesquisas nessas comunidades. Eles estabelecem vínculos valiosos, conseguindo obter bolsas de pesquisa que, por sua vez, exercem um papel atrativo para os estudantes em relação à Universidade. Essa abordagem resultou na Ufsb conquistar o posto de universidade com o maior contingente de estudantes indígenas na Bahia e em outras regiões do país, com exceção da amazônica.

Além dessas iniciativas, também implementamos cotas raciais tanto para o corpo docente quanto para a pós-graduação, destinadas a indígenas e afrodescendentes. Especificamente, reservamos 50% das vagas para indivíduos negros ou pardos.

No próximo ano, estamos programando a abertura de um novo Colégio Universitário, localizado em um distrito denominado Helvécia, situado no extremo sul do estado, na localidade de Nova Viçosa. Essa comunidade é reconhecida como quilombola, e essa iniciativa representa mais um passo em direção à promoção da inclusão e do acesso à educação superior.

Como é ser a única reitora negra em uma universidade federal no Brasil?

A carga de responsabilidade é significativa; sinto profundo orgulho por ser uma mulher negra ocupando uma posição de influência. Minha jornada é motivo de grande satisfação, marcada por uma dedicação incansável, intensos estudos e muita entrega. No entanto, o sentimento de estranheza que às vezes paira sobre o cargo que ocupo me perturba consideravelmente.

Reconheço que uma trajetória vasta ainda se desenha à minha frente, o que, por conseguinte, agrega mais responsabilidades à minha incumbência. Nesse ponto da caminhada, é triste que a mera presença de uma mulher negra ocupando uma reitoria possa se tornar tema de notícias e reportagens.

*Este conteúdo foi produzido em parceria com a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN)

Vinda de uma família que saiu da área rural no interior da Bahia, Joana Guimarães, de 63 anos, já fez história ao se tornar professora universitária e pesquisadora fora do Brasil. Em 2018, porém, veio um marco ainda mais significativo: ela se tornou a primeira mulher negra eleita como reitora de uma universidade federal: a do Sul da Bahia (Ufsb), que tem câmpus nas cidades de Itabuna, Teixeira de Freitas e Porto Seguro.

Levantamento do Observatório da Branquitude, divulgado no ano passado, mostrou que apenas oito de 302 instituições públicas de ensino superior do País eram chefiadas por reitores negros.

“Ainda escuto que eu sou a reitora, mas quem manda na universidade é o meu vice – ele é um homem branco”, afirma Joana, que é geóloga com doutorado em Engenharia Ambiental. “Essas questões ainda existem e as pessoas também fingem que não me escutam em alguns ambientes, me ignoram”, relata.

Joana Guimarães, primeira reitora negra em uma universidade federal, está à frente da Ufsb desde 2018 Foto: Malu Carvalho/Divulgação

“O racismo é um potencializador de desigualdades e um demonstrativo é olhar para os espaços ocupados por negros e brancos”, afirma o vice-diretor da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), Delton Felipe. “Temos de nos atentar para as políticas de reparação, como cotas e ações afirmativas”, defende ele, professor da Universidade Estadual de Maringá.

Seu currículo inclui passagem em universidades federais e pesquisas em instituições nos Estados Unidos. De onde vem o interesse pela academia?

Estudar era o sonho da minha mãe, mas ela nasceu em uma família muito grande e humilde. Meus familiares trabalhavam nas lavouras da zona rural de Itajuípe (sul da Bahia) e o pai de Jorge Amado (o escritor) foi patrão do meu avô. Ele deu uma casinha na cidade para que o meu avô conseguisse matricular os filhos na escola, foi assim que o meu pai começou a estudar.

Minha mãe também era filha de trabalhadores rurais e ela era muito apegada a esse sonho de estudar. Ela lia muito e por causa daquela casinha conseguimos nos mudar para a cidade, era um lugar humilde e que não comportava toda a nossa família. Tenho 137 primos, família enorme, era difícil ter concentração. Mas, incentivada pela minha mãe, me apaixonei pela leitura e continuei nutrindo o sonho de estudar.

Quando eu tinha 15 anos, o meu pai conseguiu uma oportunidade de trabalho em Salvador e nos mudamos para lá. Foi quando tive a oportunidade de frequentar a escola técnica. Mas, era muito difícil, às vezes passávamos dificuldade e eu ouvia o meu pai dizer à minha mãe ‘amor, vamos voltar pra roça, porque temos comida lá, a gente planta e colhe’ e ela respondia ‘eu morro de fome, mas meus filhos não saem da escola’.

Posso falar que a minha mãe foi a grande incentivadora e, por causa dela, eu e os meus cinco irmãos nutrimos esse amor pela leitura. Eu lia tanto quanto a minha mãe. Uma lembrança engraçada de infância é que quando ela queria me colocar de castigo tirava os meus livros. Essa motivação reverberou em tudo o que sou e o que a nossa família se tornou.

É possível dizer que avançamos na ocupação de espaço da população negra nas universidades?

Durante minha infância e juventude, o acesso à universidade era sistematicamente negado a todos nós. Fui a primeira da minha família a adentrar esse ambiente acadêmico e, naquela época, fui frequentemente confrontada com a ideia de que aquele não era um espaço destinado a mim.

Essa perspectiva provinha tanto daqueles que já ocupavam as Universidades, quanto daqueles que compartilhavam minha realidade, pois muitos indivíduos que enfrentavam circunstâncias semelhantes também consideravam essa conquista como algo inatingível. Entretanto, à medida que comecei a pavimentar novas trilhas para minha própria trajetória, percebi que meu exemplo inspirou muitas outras pessoas a enxergarem a possibilidade concreta de realização. Era possível.

No entanto, não podemos ignorar o fato de que ainda há um longo caminho a percorrer. Nossa competência intelectual continua a ser questionada em excesso, como se estivéssemos eternamente dependentes de orientação e supervisão para trilhar esses espaços. Ainda escutamos que somos tutelados por alguém.

Aqui na Ufsb estamos nos esforçando para que a presença de estudantes pretos, pardos, indígenas, PCDs, todos os estudantes, tenham confiança em um ambiente confortável para o desenvolvimento das suas aptidões. São cerca de 5,5 mil estudantes, desses 56% de estudantes pretos e pardos, 303 estudantes indígenas que corresponde a cerca de 5% do total de alunos, além disso temos 86 alunos de comunidades quilombolas

Esse desejo em ser reitora sempre existiu na sua trajetória na docência?

Minha trajetória é profundamente influenciada pelo meu interesse pela literatura e, consequentemente, pela pesquisa. Iniciei minha jornada acadêmica em Salvador, porém, ao casar com um gaúcho, decidi acompanhar meu marido quando ele obteve aprovação para o mestrado no Rio Grande do Sul. Juntos, decidimos mudar de região e fiz um novo vestibular. Foi assim que iniciei os estudos de Geologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Após a conclusão da graduação, decidimos pelo retorno à Salvador, onde realizei o mestrado na Federal da Bahia (UFBA).

Nesta mesma época, o meu marido prestou concurso e se tornou docente da UFBA e novas oportunidades surgiram para a nossa família. Ele conseguiu uma licença para buscar o doutorado nos Estados Unidos. Foi nesse ponto da trajetória que comecei a atuar como assistente de ensino nos EUA, garantindo uma bolsa para realizar meu próprio doutorado.

Com o término de nossos estudos nos EUA, retornamos e também fui aprovada em um concurso e iniciei minha docência no Instituto de Geociências da Federal da Bahia. Naquela época, meu foco era dar continuidade às minhas pesquisas, e eu mantinha a convicção de que não desejava envolver-me com a gestão acadêmica.

Entretanto, ter uma pesquisa de doutorado reconhecida me gerava muitos convites para assumir cargos de gestão. Eu sempre dizia não. Até que em razão da expansão das instituições de ensino superior no Estado fui convidada para atuar na implementação da UFBA em Barreiras, no oeste da Bahia, e aceitei o desafio.

A senhora já foi confundida com outros profissionais ou questionada sobre a sua capacidade de gerir uma universidade?

Naquela época, eu não tinha planos de retornar para o sul da Bahia, mas retornar com uma posição de reitora encheu a minha família de orgulho. Saí daqui jovem, vivíamos numa casa precária, que nem tinha banheiro. Hoje sou vista de outra maneira na região – eu mudei, e todos ao meu redor enxergam em mim essa possibilidade.

Ainda escuto que sou a reitora, mas quem manda na universidade é o meu vice – ele é um homem branco. Essas questões ainda existem e as pessoas também fingem que não me escutam em alguns ambientes, me ignoram. Quando um homem branco diz a mesma coisa que eu, ele é aplaudido e visto como gênio. Hoje as pessoas têm mais receio e mais cuidado em suas falas racistas. Quando eu era mais jovem, não tinham esse receio.

Por que ainda é tão rara a presença de pessoas negras ocupando esses espaços?

A escassez de incentivo é visível até mesmo no âmbito da educação básica. Recordo-me de situações dentro de minha própria família, na adolescência, onde meu irmão, o de pele mais escura entre nós seis, frequentemente ouvia de suas professoras que ele não possuía aparência agradável. Ele e minha irmã mais nova, de pele mais clara, compartilhavam a mesma sala de aula e, lamentavelmente, eram frequentemente alvo de comparações físicas. Ouvir repetidamente que ele era “feio” chegou a afetar sua autoestima a ponto de fazê-lo cogitar abandonar a escola.

Minha mãe se viu em um embate constante com ele, enquanto ele expressava sua aversão pelas professoras .Tivemos incentivo e nossa mãe enfatizava que a “educação não é uma escolha”, assim ele jamais teve a alternativa de desistir. Minha mãe empenhou-se intensamente para incentivar seu percurso escolar, resultando no fato notável de todos os seis filhos alcançarem níveis de pós-graduação.

É essencial monitorarmos a representação de estudantes e professores negros na universidade e fortalecermos laços com comunidades periféricas e rurais. Devemos evitar impor padrões ultrapassados aos estudantes provenientes desses contextos, priorizando a diversidade de conhecimentos e experiências.

A troca de saberes desempenha papel fundamental, reconhecendo e valorizando as perspectivas únicas de cada indivíduo. Ao promovermos um ambiente inclusivo e colaborativo, enriquecemos o aprendizado e a pesquisa com uma variedade de visões de mundo, beneficiando tanto os indivíduos quanto a academia como um todo.

Como funciona o projeto político-pedagógico da UFSB, que tem foco na diversidade e inclusão?

Um dos projetos de maior sucesso em nossa trajetória foi concebido em colaboração com a rede estadual de educação, o projeto de colégios universitários. Este projeto foi concebido com o intuito de viabilizar o acesso ao ensino superior para estudantes provenientes de cidades do interior da Bahia, incluindo comunidades rurais, indígenas e quilombolas.

Por meio desse projeto, possibilitamos que esses alunos, que muitas vezes enfrentam desafios logísticos, possam assistir às aulas de forma remota, em suas próprias escolas. Esse enfoque, por sua vez, reduz a necessidade de presença física no câmpus, contribuindo significativamente para evitar o fenômeno do êxodo estudantil.

Um componente crucial desse projeto são os docentes que realizam pesquisas nessas comunidades. Eles estabelecem vínculos valiosos, conseguindo obter bolsas de pesquisa que, por sua vez, exercem um papel atrativo para os estudantes em relação à Universidade. Essa abordagem resultou na Ufsb conquistar o posto de universidade com o maior contingente de estudantes indígenas na Bahia e em outras regiões do país, com exceção da amazônica.

Além dessas iniciativas, também implementamos cotas raciais tanto para o corpo docente quanto para a pós-graduação, destinadas a indígenas e afrodescendentes. Especificamente, reservamos 50% das vagas para indivíduos negros ou pardos.

No próximo ano, estamos programando a abertura de um novo Colégio Universitário, localizado em um distrito denominado Helvécia, situado no extremo sul do estado, na localidade de Nova Viçosa. Essa comunidade é reconhecida como quilombola, e essa iniciativa representa mais um passo em direção à promoção da inclusão e do acesso à educação superior.

Como é ser a única reitora negra em uma universidade federal no Brasil?

A carga de responsabilidade é significativa; sinto profundo orgulho por ser uma mulher negra ocupando uma posição de influência. Minha jornada é motivo de grande satisfação, marcada por uma dedicação incansável, intensos estudos e muita entrega. No entanto, o sentimento de estranheza que às vezes paira sobre o cargo que ocupo me perturba consideravelmente.

Reconheço que uma trajetória vasta ainda se desenha à minha frente, o que, por conseguinte, agrega mais responsabilidades à minha incumbência. Nesse ponto da caminhada, é triste que a mera presença de uma mulher negra ocupando uma reitoria possa se tornar tema de notícias e reportagens.

*Este conteúdo foi produzido em parceria com a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN)

Vinda de uma família que saiu da área rural no interior da Bahia, Joana Guimarães, de 63 anos, já fez história ao se tornar professora universitária e pesquisadora fora do Brasil. Em 2018, porém, veio um marco ainda mais significativo: ela se tornou a primeira mulher negra eleita como reitora de uma universidade federal: a do Sul da Bahia (Ufsb), que tem câmpus nas cidades de Itabuna, Teixeira de Freitas e Porto Seguro.

Levantamento do Observatório da Branquitude, divulgado no ano passado, mostrou que apenas oito de 302 instituições públicas de ensino superior do País eram chefiadas por reitores negros.

“Ainda escuto que eu sou a reitora, mas quem manda na universidade é o meu vice – ele é um homem branco”, afirma Joana, que é geóloga com doutorado em Engenharia Ambiental. “Essas questões ainda existem e as pessoas também fingem que não me escutam em alguns ambientes, me ignoram”, relata.

Joana Guimarães, primeira reitora negra em uma universidade federal, está à frente da Ufsb desde 2018 Foto: Malu Carvalho/Divulgação

“O racismo é um potencializador de desigualdades e um demonstrativo é olhar para os espaços ocupados por negros e brancos”, afirma o vice-diretor da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), Delton Felipe. “Temos de nos atentar para as políticas de reparação, como cotas e ações afirmativas”, defende ele, professor da Universidade Estadual de Maringá.

Seu currículo inclui passagem em universidades federais e pesquisas em instituições nos Estados Unidos. De onde vem o interesse pela academia?

Estudar era o sonho da minha mãe, mas ela nasceu em uma família muito grande e humilde. Meus familiares trabalhavam nas lavouras da zona rural de Itajuípe (sul da Bahia) e o pai de Jorge Amado (o escritor) foi patrão do meu avô. Ele deu uma casinha na cidade para que o meu avô conseguisse matricular os filhos na escola, foi assim que o meu pai começou a estudar.

Minha mãe também era filha de trabalhadores rurais e ela era muito apegada a esse sonho de estudar. Ela lia muito e por causa daquela casinha conseguimos nos mudar para a cidade, era um lugar humilde e que não comportava toda a nossa família. Tenho 137 primos, família enorme, era difícil ter concentração. Mas, incentivada pela minha mãe, me apaixonei pela leitura e continuei nutrindo o sonho de estudar.

Quando eu tinha 15 anos, o meu pai conseguiu uma oportunidade de trabalho em Salvador e nos mudamos para lá. Foi quando tive a oportunidade de frequentar a escola técnica. Mas, era muito difícil, às vezes passávamos dificuldade e eu ouvia o meu pai dizer à minha mãe ‘amor, vamos voltar pra roça, porque temos comida lá, a gente planta e colhe’ e ela respondia ‘eu morro de fome, mas meus filhos não saem da escola’.

Posso falar que a minha mãe foi a grande incentivadora e, por causa dela, eu e os meus cinco irmãos nutrimos esse amor pela leitura. Eu lia tanto quanto a minha mãe. Uma lembrança engraçada de infância é que quando ela queria me colocar de castigo tirava os meus livros. Essa motivação reverberou em tudo o que sou e o que a nossa família se tornou.

É possível dizer que avançamos na ocupação de espaço da população negra nas universidades?

Durante minha infância e juventude, o acesso à universidade era sistematicamente negado a todos nós. Fui a primeira da minha família a adentrar esse ambiente acadêmico e, naquela época, fui frequentemente confrontada com a ideia de que aquele não era um espaço destinado a mim.

Essa perspectiva provinha tanto daqueles que já ocupavam as Universidades, quanto daqueles que compartilhavam minha realidade, pois muitos indivíduos que enfrentavam circunstâncias semelhantes também consideravam essa conquista como algo inatingível. Entretanto, à medida que comecei a pavimentar novas trilhas para minha própria trajetória, percebi que meu exemplo inspirou muitas outras pessoas a enxergarem a possibilidade concreta de realização. Era possível.

No entanto, não podemos ignorar o fato de que ainda há um longo caminho a percorrer. Nossa competência intelectual continua a ser questionada em excesso, como se estivéssemos eternamente dependentes de orientação e supervisão para trilhar esses espaços. Ainda escutamos que somos tutelados por alguém.

Aqui na Ufsb estamos nos esforçando para que a presença de estudantes pretos, pardos, indígenas, PCDs, todos os estudantes, tenham confiança em um ambiente confortável para o desenvolvimento das suas aptidões. São cerca de 5,5 mil estudantes, desses 56% de estudantes pretos e pardos, 303 estudantes indígenas que corresponde a cerca de 5% do total de alunos, além disso temos 86 alunos de comunidades quilombolas

Esse desejo em ser reitora sempre existiu na sua trajetória na docência?

Minha trajetória é profundamente influenciada pelo meu interesse pela literatura e, consequentemente, pela pesquisa. Iniciei minha jornada acadêmica em Salvador, porém, ao casar com um gaúcho, decidi acompanhar meu marido quando ele obteve aprovação para o mestrado no Rio Grande do Sul. Juntos, decidimos mudar de região e fiz um novo vestibular. Foi assim que iniciei os estudos de Geologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Após a conclusão da graduação, decidimos pelo retorno à Salvador, onde realizei o mestrado na Federal da Bahia (UFBA).

Nesta mesma época, o meu marido prestou concurso e se tornou docente da UFBA e novas oportunidades surgiram para a nossa família. Ele conseguiu uma licença para buscar o doutorado nos Estados Unidos. Foi nesse ponto da trajetória que comecei a atuar como assistente de ensino nos EUA, garantindo uma bolsa para realizar meu próprio doutorado.

Com o término de nossos estudos nos EUA, retornamos e também fui aprovada em um concurso e iniciei minha docência no Instituto de Geociências da Federal da Bahia. Naquela época, meu foco era dar continuidade às minhas pesquisas, e eu mantinha a convicção de que não desejava envolver-me com a gestão acadêmica.

Entretanto, ter uma pesquisa de doutorado reconhecida me gerava muitos convites para assumir cargos de gestão. Eu sempre dizia não. Até que em razão da expansão das instituições de ensino superior no Estado fui convidada para atuar na implementação da UFBA em Barreiras, no oeste da Bahia, e aceitei o desafio.

A senhora já foi confundida com outros profissionais ou questionada sobre a sua capacidade de gerir uma universidade?

Naquela época, eu não tinha planos de retornar para o sul da Bahia, mas retornar com uma posição de reitora encheu a minha família de orgulho. Saí daqui jovem, vivíamos numa casa precária, que nem tinha banheiro. Hoje sou vista de outra maneira na região – eu mudei, e todos ao meu redor enxergam em mim essa possibilidade.

Ainda escuto que sou a reitora, mas quem manda na universidade é o meu vice – ele é um homem branco. Essas questões ainda existem e as pessoas também fingem que não me escutam em alguns ambientes, me ignoram. Quando um homem branco diz a mesma coisa que eu, ele é aplaudido e visto como gênio. Hoje as pessoas têm mais receio e mais cuidado em suas falas racistas. Quando eu era mais jovem, não tinham esse receio.

Por que ainda é tão rara a presença de pessoas negras ocupando esses espaços?

A escassez de incentivo é visível até mesmo no âmbito da educação básica. Recordo-me de situações dentro de minha própria família, na adolescência, onde meu irmão, o de pele mais escura entre nós seis, frequentemente ouvia de suas professoras que ele não possuía aparência agradável. Ele e minha irmã mais nova, de pele mais clara, compartilhavam a mesma sala de aula e, lamentavelmente, eram frequentemente alvo de comparações físicas. Ouvir repetidamente que ele era “feio” chegou a afetar sua autoestima a ponto de fazê-lo cogitar abandonar a escola.

Minha mãe se viu em um embate constante com ele, enquanto ele expressava sua aversão pelas professoras .Tivemos incentivo e nossa mãe enfatizava que a “educação não é uma escolha”, assim ele jamais teve a alternativa de desistir. Minha mãe empenhou-se intensamente para incentivar seu percurso escolar, resultando no fato notável de todos os seis filhos alcançarem níveis de pós-graduação.

É essencial monitorarmos a representação de estudantes e professores negros na universidade e fortalecermos laços com comunidades periféricas e rurais. Devemos evitar impor padrões ultrapassados aos estudantes provenientes desses contextos, priorizando a diversidade de conhecimentos e experiências.

A troca de saberes desempenha papel fundamental, reconhecendo e valorizando as perspectivas únicas de cada indivíduo. Ao promovermos um ambiente inclusivo e colaborativo, enriquecemos o aprendizado e a pesquisa com uma variedade de visões de mundo, beneficiando tanto os indivíduos quanto a academia como um todo.

Como funciona o projeto político-pedagógico da UFSB, que tem foco na diversidade e inclusão?

Um dos projetos de maior sucesso em nossa trajetória foi concebido em colaboração com a rede estadual de educação, o projeto de colégios universitários. Este projeto foi concebido com o intuito de viabilizar o acesso ao ensino superior para estudantes provenientes de cidades do interior da Bahia, incluindo comunidades rurais, indígenas e quilombolas.

Por meio desse projeto, possibilitamos que esses alunos, que muitas vezes enfrentam desafios logísticos, possam assistir às aulas de forma remota, em suas próprias escolas. Esse enfoque, por sua vez, reduz a necessidade de presença física no câmpus, contribuindo significativamente para evitar o fenômeno do êxodo estudantil.

Um componente crucial desse projeto são os docentes que realizam pesquisas nessas comunidades. Eles estabelecem vínculos valiosos, conseguindo obter bolsas de pesquisa que, por sua vez, exercem um papel atrativo para os estudantes em relação à Universidade. Essa abordagem resultou na Ufsb conquistar o posto de universidade com o maior contingente de estudantes indígenas na Bahia e em outras regiões do país, com exceção da amazônica.

Além dessas iniciativas, também implementamos cotas raciais tanto para o corpo docente quanto para a pós-graduação, destinadas a indígenas e afrodescendentes. Especificamente, reservamos 50% das vagas para indivíduos negros ou pardos.

No próximo ano, estamos programando a abertura de um novo Colégio Universitário, localizado em um distrito denominado Helvécia, situado no extremo sul do estado, na localidade de Nova Viçosa. Essa comunidade é reconhecida como quilombola, e essa iniciativa representa mais um passo em direção à promoção da inclusão e do acesso à educação superior.

Como é ser a única reitora negra em uma universidade federal no Brasil?

A carga de responsabilidade é significativa; sinto profundo orgulho por ser uma mulher negra ocupando uma posição de influência. Minha jornada é motivo de grande satisfação, marcada por uma dedicação incansável, intensos estudos e muita entrega. No entanto, o sentimento de estranheza que às vezes paira sobre o cargo que ocupo me perturba consideravelmente.

Reconheço que uma trajetória vasta ainda se desenha à minha frente, o que, por conseguinte, agrega mais responsabilidades à minha incumbência. Nesse ponto da caminhada, é triste que a mera presença de uma mulher negra ocupando uma reitoria possa se tornar tema de notícias e reportagens.

*Este conteúdo foi produzido em parceria com a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN)

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