O aborto espontâneo é considerado a complicação mais frequente que pode ser enfrentada em uma gestação, mas isso não significa que é fácil lidar com o processo e a perda que ele acarreta. Ele possui uma grande chance de gerar impactos psicológicos em quem passa pelo processo, e por isso é importante que seja respeitado o período de luto após a perda.
O período de gravidez costuma ser acompanhado de uma idealização em torno do nascimento de um filho. É comum que um casal imagine como a criança será, como será a experiência de ser pais, por quais desafios passarão, ou seja, criam-se vários planos em torno do feto que está se desenvolvendo. Entretanto, uma interrupção natural e inesperada da gestação pode prejudicar ou acabar com essas expectativas.
É necessário lidar então com a perda do bebê sendo que ainda existe pouca discussão na sociedade sobre o processo de luto, e também sobre o próprio aborto espontâneo. A atriz Mariana Rios, por exemplo, revelou que sofreu um aborto espontâneo em julho de 2020, e em sua publicação artistas como Leda Nagle, Flávia Viana, Patrícia Barros, Fabiana Justus, filha do empresário e apresentador Roberto Justus, e a modelo Mariana Weickert comentaram que também tiveram a complicação.
Confira abaixo explicações de especialistas sobre o aborto espontâneo e também sobre o processo de luto ligado a ele.
O que é o aborto espontâneo?
O obstetra Alexandre Faisal Cury, pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), explica que o aborto espontâneo é uma interrupção involuntária de uma gestação. Pela definição clínica, ocorre até 12 ou 22 semanas de gravidez, e nesse segundo caso é chamado de aborto tardio.
“O abortamento espontâneo é a complicação mais frequente da gravidez e está presente em 15% a 20% das gestações. Uma em cada quatro mulheres terá um abortamento espontâneo durante a sua vida reprodutiva”, afirma o professor e obstetra Pedro Paulo Pereira, da FM-USP.
Diferentemente do que algumas pessoas acham, o aborto espontâneo não é mais comum na primeira gestação. Cury comenta que o principal fator que influencia a frequência do aborto é a idade, já que mulheres mais velhas, a partir dos 35 anos mas em especial após os 40, têm óvulos com qualidade menor, que podem gerar mais alterações genéticas no embrião e levar à perda.
Quais os sinais e causas do aborto espontâneo?
“O principal sinal é o sangramento, com intensidade variada, e até eliminação de coágulos de sangue, associado à dor, que pode parecer uma cólica menstrual. Quanto mais avançada a gestação, mais viva a cor do sangramento”, explica Cury.
O professor comenta que ainda não se sabe exatamente quais são as causas do aborto espontâneo, mas que entre 70% e 90% dos casos têm origem em uma má formação do feto durante seu desenvolvimento, podendo estar ligadas a alterações genéticas.
Quando o aborto ocorre pela primeira vez, não são cogitadas outras causas além da má formação. “Pensamos nelas se ele se repete mais que três vezes consecutivas, e podem ser má formação uterina, doenças raras, alterações de produção de hormônio”, comenta o médico, destacando que essas situações não são habituais. Também existem casos sem explicação definidas, a chamada causa idiopática, que pode estar ligada a fatores emocionais.
Como saber se é um aborto espontâneo ou uma menstruação?
Apesar dos sinais dos dois processos serem semelhantes, Pereira explica que a forma mais comum de distingui-los é notar alguns sinais de gravidez no corpo, como atraso no ciclo menstrual, náuseas e vômitos.
Caso a mulher não saiba que está grávida, o professor comenta que é possível realizar uma ultrassonografia, que “permite o diagnóstico da gravidez, sua localização e também a viabilidade da gestação ao visualizar um embrião com batimento cardíaco”, além do famoso teste de gravidez que pode ser comprado em farmácias.
Tratamento do aborto espontâneo
Alexandre Faisal Cury destaca que a maioria dos casos de aborto espontâneo evolui sem grandes complicações, como hemorragias ou infecções, ou comprometimento da coagulação. No geral, o processo de “eliminação” do embrião dura duas semanas, podendo chegar a quatro em casos raros. É possível monitorar o processo por ultrassom.
“A intervenção cirúrgica é feita quando temos uma gestação um pouco mais avançada, sem sinais clínicos de evolução do abortamento, o chamado aborto retido, em que os restos placentários e ovários não foram eliminados até a terceira, quarta semana”, explica o médico.
Nos casos de intervenção cirúrgica, existem a curetagem e a aspiração intrauterina. Pereira destaca que quando uma mulher grávida nota os sinais do aborto espontâneo, ela deve procurar imediatamente um obstetra, que fará o diagnóstico e definirá o tratamento mais indicado. Segundo ele, o processo de abortamento varia a cada mulher, que pode esperar pela eliminação natural em algumas semanas ou induzir o processo por uso de medicamentos e até realizar a intervenção cirúrgica, nos dois últimos casos sempre em um hospital.
A importância do luto após um aborto espontâneo
Ana Cristina Barros da Cunha, professora do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, destaca que o luto é um processo natural, mais comum em nossas vidas do que pensamos: “Quando perdemos uma pessoa, um objeto, um sonho, algo idealizado, a pessoa entra em um processo de luto por essa perda”.
O luto envolve uma “elaboração psíquica” em torno de algo que perdemos, buscando dar um novo significado a essa realidade. Maria Julia Kovács, professora sênior da Universidade de São Paulo, destaca que ele é um processo “singular e próprio, e está sempre relacionado com características pessoais e a história de vida da pessoa”.
No caso de um aborto espontâneo, o luto está ligado ao choque da não concretização de uma imagem que foi construída pela gestante em torno do bebê e da própria gravidez. “Essa idealização exige muito investimento psíquico, que se soma às próprias mudanças físicas, metabólicas que o corpo grávido acaba tendo que lidar”, aponta Ana Cristina. Assim, é necessário que os afetados por essa perda passem por uma transformação, incorporando uma nova identidade e uma mudança em sua história pessoal.
A professora comenta que o luto é dividido, no geral, em cinco fases: negação, raiva, barganha, entristecimento e aceitação. Ao longo do luto uma pessoa pode sentir apenas uma delas, ou sentir uma com mais intensidade, ou primeiro sentir uma negação para depois sentir um entristecimento e voltar à negação. O processo, portanto, é variável, e não é linear, mas termina na aceitação da perda.
Trazendo para um caso de aborto espontâneo, Ana Cristina aponta que a negação está ligada ao questionamento da perda do bebê, a raiva com a percepção de que o investimento emocional e a imagem criada foram em vão (e pode vir acompanhada de tristeza e frustração).
A barganha é uma tentativa da pessoa de entender o que poderia ter feito de diferente para evitar a perda, e pode significar que a pessoa evite hábitos que, em sua visão, levaram ao aborto. O entristecimento é um “choque de realidade”, em que a pessoa se permite ficar triste e realmente viver a perda. Por fim, na aceitação, a realidade é vista sem desespero, enfrentando a perda como algo real e incluindo ela em sua história.
Em alguns casos esse luto, natural, pode acabar gerando efeitos negativos para a pessoa, e aí é chamado de luto patológico, em que o nível de sofrimento é tão grande que podem surgir transtornos mentais decorrentes. Pessoas com algum histórico de desordens psíquicas ou traumas anteriores podem ser mais sujeitas ao luto patológico.
Não há uma regra de quando o luto será mais intenso após um aborto espontâneo, mas as professoras observam que é mais comum que a perda de gestações que tinham uma grande expectativa - como a de resultados de inseminações artificiais ou em gestação mais avançadas - costumam ter mais impacto.
Por ser um processo singular e único, também não é necessário buscar ajuda profissional em todos os casos. Maria Julia Kovács destaca que a melhor coisa para ajudar no processo de luto é se permitir “acolher e legitimar os sentimentos de dor e sofrimento pela perda”.
É necessário também que isso envolva não apenas a mãe, mas toda a família, que também teve um investimento emocional na gestação, em especial o pai. Nesse sentido, a comunicação aberta entre o casal, para falar de seus sentimentos, é relevante. É importante respeitar, também, o tempo de cada um e dar o devido espaço, sem ser invasivo.
“O acompanhamento psicológico deve ser oferecido sim como forma de cuidado, mas não deve ser exigido. A escolha deve ser do casal, se querem ele, porque se o acompanhamento não for desejado, obrigar pode trazer mais constrangimento”, explica Kovács.
Sobre a ajuda profissional, Ana Cristina afirma que “às vezes eles [o casal ou familiares] buscam alguém para falar sobre isso, questionar o que fez de errado ou poderia ter feito, ter alguém que escute isso de maneira clínica e que possa ajudá-los a entender que eles não têm culpa ou responsabilidade na grande maioria dos casos de aborto espontâneo é importante”.
“É importante pensar que nessa situação, do pós-aborto, o primeiro passo seria sentir, se permitir sentir o que está sentindo, e só depois pensar o que vai fazer com as consequências daquela perda, até pra não gerar arrependimento”, pondera a professora.
Kovács destaca que as perdas “nos acompanham e deixam cicatrizes”, e que o luto envolve integrar uma perda em nossa vida, até para permitir a continuidade dela, que pode significar até uma nova gestação, “não como superação ou substituição, mas como um caminhar da vida”.
*Estagiário sob supervisão de Charlise Morais