Músculos saltados, voz grossa e potência sexual elevada são sinônimos de virilidade no mundo masculino. Essas características levam muitos homens a buscarem o ‘corpo perfeito’ e apelarem para resultados rápidos e fáceis gerados por anabolizantes - repudiados pela comunidade médica. Nesse universo, aparece a testosterona, hormônio importante para a maturação dos ossos, crescimento muscular e desenvolvimento das funções sexuais. Geralmente, os homens que escolhem esse caminho curto e prejudicial à saúde optam por fazer a aplicação com injeção de testosterona. Apesar de parecer vantajoso para quem deseja ter o físico dos sonhos e aumentar a libido, essa substância só pode ser injetada no corpo quando há alguma deficiência, como no caso de alguns cânceres, defeitos genéticos, traumas testiculares e retardo na hipófise (glândula que controla a atividade de outras glândulas). É o que explica Clayton Macedo, doutor em endocrinologia clínica pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O médico coordena o projeto Bomba? Tô Fora, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), focado em combater o uso de anabolizantes, e é especialista em tratar complicações causadas por essas substâncias. De acordo com ele, a testosterona causa efeitos colaterais imprevisíveis e pode ser “potencialmente fatal”. Um dos distúrbios que mais pode intensificar os danos é a dependência química que o hormônio propicia, já que a substância externa bloqueia a glândula de produção interna, causando cansaço e resultados contrários ao esperado, como a queda da libido e a impotência. Assim, o usuário passa a aplicar mais e mais na tentativa de resolver o problema. Macedo alerta ainda que alimentação saudável e exercícios físicos trazem saúde hormonal, e não existe comprovação de que alimentos e ervas elevam o nível de testosterona, desmentindo a ideia de ‘fonte de juventude’ vendida pela indústria fitness. “Esse comércio é caça-níquel. Vende uma eterna fonte da juventude ou um produto milagroso sem comprovação científica”, critica.
Veja abaixo oito perguntas e respostas sobre o uso de testosterona. Na entrevista, o especialista fala sobre mudanças comportamentais - como a tendência suicida - e problemas no fígado causados pela aplicação dela no corpo. Macedo explica também o impacto negativo que o uso de altas doses gera, uma vez que hipertrofia não só os músculos visíveis, mas também o do coração - ao ponto de levar à morte súbita.
Há homens que associam o uso de testosterona a mais virilidade e potência sexual. Como o senhor avalia isso?
A falta de testosterona diminui a libido e a potência sexual em quem tem um quadro clínico de deficiência desse hormônio. Mas esse não é o caso do homem que usa sem ter esse problema. Ele pode estar deprimido, sobrecarregado de trabalho, usando remédios que alteram a potência ou sofrer com obesidade, que atrapalha o desempenho sexual. Esse último ocorre porque existe uma enzima [a Aromatase] que metaboliza a testosterona na gordura. Portanto, tudo isso afeta o sexo. Se o indivíduo está injetando testosterona sem ter problemas comprovados por um médico, a chance de ele melhorar o que quer com a injeção do hormônio é bem baixa, porque a causa é outra.
Em quais situações o uso de testosterona é adequado?
O indivíduo precisa ter uma doença cientificamente comprovada e consultar um especialista. Existe uma série de causas, como a orquite [inflamação do testículo por caxumba], um câncer que causou queda do hormônio, defeitos genéticos e varicocele [varizes na bolsa escrotal, que faz com que o órgão trabalhe menos]. Há ainda a hipófise, que controla as outras glândulas do corpo como a do testículo. Quando essa parte cerebral está doente, seja por tumor, cirurgia ou radioterapia, ela funciona menos e, consequentemente, estimula menos o testículo a produzir testosterona. Existe também situações raras em que se poderia tentar usar testosterona em pacientes oncológicos, com HIV e aids em fase avançada.
O uso excessivo de testosterona pode levar à morte? Como?
Esse é o grande problema de quem usa testosterona sem ter uma deficiência. As pessoas acabam usando doses excessivas para terem o efeito anabolizante da hipertrofia muscular. Muitas vezes, as proporções são até cem vezes maiores do que as usadas por pacientes que realmente precisam repor o hormônio. Assim, as chances de haver efeitos colaterais aumentam de forma imprevisível e potencialmente fatal. Um dos riscos mais preocupantes é o vício. Cerca de 57% das pessoas podem ter dependência, porque a testosterona injetada interrompe a produção interna [da substância]. Com isso, a glândula fica bloqueada quando o indivíduo para de usar a medicação e ele sofre com a deficiência hormonal, levando-o a usar mais.
E quais as consequências do vício?
A pessoa se sente mais cansada, perde a libido, sente fraqueza e isso a faz voltar a injetar testosterona. Um dos problemas nisso é que o cérebro humano tem muito receptor para esse hormônio e, como ele é um estimulante potente, o sujeito pode ter mudanças comportamentais, como agressividade, convulsões, irritabilidade, depressão, alucinações e tendência suicida. Além disso, nosso sistema cardiovascular e os outros músculos são extremamente sensíveis a esteroides. Então a testosterona não vai agir só na musculatura periférica, mas também no coração, podendo causar hipertrofia desse órgão, insuficiência cardíaca e morte súbita. Vale ressaltar que os esteroides elevam o nível de colesterol ruim e triglicerídeos, aumentando as chances de haver doenças coronarianas e hipertensão. Ou seja, o ataque a essa musculatura pode induzir a morte. Há também danos no fígado, [já que esses produtos] influencia no metabolismo do órgão, causando hepatite medicamentosa [que pode ser fulminante] ou falência hepática aguda, que pode levar à morte ou gerar a necessidade de um transplante. Fora isso, jovens podem ter bloqueios na cartilagem de crescimento.
Foi bom o senhor ter falado sobre a juventude. Adolescentes com atraso hormonal podem injetar testosterona? Quais as diferenças do uso para cada sexo nessa faixa etária?
Essa é a população mais vulnerável para o uso de testosterona. A literatura médica mostra que os adolescentes são o público que mais usa anabolizantes… sempre com objetivos fitness. Há o caso da aplicação para reverter o atraso da puberdade, mas é bastante específico. Existe uma série de critérios para diagnosticar o atraso puberal, porque a testosterona pode trazer malefícios ao mesmo tempo que impulsiona o desenvolvimento: as doses são fisiológicas, ou seja, menos problemáticas, mas a estatura final do jovem pode ficar comprometida. Hoje, parte da mídia faz um apelo muito grande ao corpo perfeito, principalmente blogueiros, artistas, atletas e cantores. Isso faz com que os adolescentes idealizem um perfil corporal que, muitas vezes, eles não estão fisiologicamente preparados para obter.
Em quais situações o senhor aconselha o uso de testosterona para quem faz academia?
Nunca. Só para quem tem deficiências. Esse apelo estético do uso de testosterona para definição muscular é o que está causando essa avalanche de complicações, e o brasileiro não está alertado. Os médicos que prescrevem testosterona normalmente não são endocrinologistas, porque quem é especialista não indica hormônio para ir à academia. Geralmente, são profissionais que fazem um cursinho de fim de semana, sem especialidade nenhuma, ou segue áreas não reconhecidas cientificamente, como as terapias antienvelhecimento e as ortomoleculares. Nelas, o nível de evidência é nulo e os efeitos colaterais são muito fortes.
Então é criminoso indicar testosterona para fins estéticos, certo?
A própria bula do medicamento não preconiza o uso de medicação para academia. Às vezes, sites da internet e o próprio educador físico comercializam. A receita [para injeção de testosterona] é controlada e precisa do CPF do médico e do Código Internacional da Doença (CID). Assim, o indivíduo precisa ter uma deficiência para justificar o uso do hormônio. Se ele não tem, é impossível o profissional colocar um código na receita. Então, para driblar isso, o doutor faz um acordo com [algumas] farmácias ou inventa um diagnóstico que não existe para a pessoa conseguir indicação clínica. Há um mercado negro que movimenta valores astronômicos [com esse crime].
É possível aumentar a produção de testosterona pela alimentação e atividades físicas?
Não diretamente. Mas uma alimentação saudável e exercícios melhoram a saúde hormonal. Chamo a atenção para o caso dos obesos: eles têm menores níveis de testosterona, pois existe uma enzima [a Aromatase] que metaboliza esse hormônio no tecido adiposo. Então o simples fato de ter uma atividade física já melhora a composição corporal, reduz o porcentual de gordura, diminui a atividade dessa enzima e o indivíduo melhora naturalmente o nível de testosterona. Alimentos e ervas que empresas vendem dizendo que aumentam o nível de testosterona não possuem comprovação científica são da indústria fitness. Esse comércio é caça-níquel: vende uma eterna fonte da juventude, ou um produto milagroso sem comprovação científica.
Os efeitos da aplicação da testosterona em idosos são diferente?
É uma população extremamente vulnerável, porque as chances de contrair doenças se tornam elevadas pela idade. Então quanto mais doenças o idoso tem, maior a chance de ele ter uma complicação mais séria ao usar a testosterona. Esse público tem mais doenças cardiovasculares e de próstata. Então, a aplicação de testosterona no corpo pode amplificar esses problemas de saúde. Injetar o hormônio requer critérios rígidos, pois testosterona não é uma fonte de juventude. Fora isso, todos os problemas já falados se intensificam por conta da idade.
*Estagiário sob a supervisão de Charlise Morais