Até março de 2019, o Brasil permitia casamento com crianças de até de 16 anos sob diversas justificativas e a violência sexual de meninas ocupava - e ocupa ainda - muitas das liberações de juízes para que crianças se casassem no país
Quando um crime de violência sexual vem a mídia, como o caso da menina de 10 anos, muitos outros emergem dele. O país registrou, ano passado, índice histórico de violência sexual em meninas com menos de 13 anos. Crianças. Este mesmo país já autorizou 1284 casamentos com também menores de 15 anos sob as justificativas mais diversas. 21 mil já tiveram filhos. Vou repetir: 21 mil meninas, crianças, já tiveram filhos neste país.
Como um guarda-chuva, outras tantas violações se acobertam na violência contra a mulher. Gravidez precoce, evasão escolar, trabalho doméstico e casamento infantil são só alguns exemplos. E acredite, o Brasil ocupa a 4ª. colocação no ranking mundial de casamento infantil de meninas. Segundo dados da UNICEF, o país já casou quase 182 mil menores entre os anos 2014 e 2018, sendo 93% de meninas.
Casamento infantil. Duas palavras que nunca deveriam formar uma única. Não deveriam se alinhar. Mas aqui elas se combinam de muitas formas. O Brasil ocupa a alarmante 4ª. posição mundial de casamento infantil de meninas em números absolutos. São 2,9 milhões de uniões precoces, segundo dados da Plan Internacional. Estamos atrás, apenas, de Índia, Bangladesh e Nigéria. Veja você, que vantagem, meu caro leitor.
Em março de 2019, uma mudança no Código Civil proibiu o casamento com menores de 16 anos de idade, mas até então a Lei brasileira não só permitia como consentia que o criminoso de estupro de vulnerável se casasse com a menor para não ser preso. Deu pra entender? Vou explicar de novo: até pouco tempo a Lei brasileira dava brecha para que o estuprador não fosse preso caso ele se casasse com a menor que ele tinha violentado.
Outra brecha da Lei brasileira era a gravidez. Caso a menor de idade engravidasse, era só casar que estava tudo resolvido. Chegamos à estatística de uma a cada quatro menina brasileira com menos de 18 anos estar casada. E como disse Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta que combate a exploração e a violência sexual de meninas e adolescentes, ao blog do jornalista Morris Kachani, "a violência sexual no Brasil é uma epidemia e a gente não fala disso".
"Nós não estamos falando de 'monstros' excepcionais, mas de uma cultura permissiva com a violência sexual na criança. Tem uma frase horrível que escutamos em alguns lugares do Brasil, que é, 'O primeiro fruto da bananeira colhe quem plantou'. O país é o 2º. com maior índice de exploração sexual no mundo e ninguém fala disso. Aqui a exploração é tão naturalizada que a sociedade não enxerga", diz Luciana.
Somos, em muitos rankings, o país dos índices alarmantes em lugares onde não queremos estar - mas estamos. E casamento infantil é um desses lugares inadequados de estar. "De forma geral, meninas se casam com homens mais velhos, com maior instrução formal e melhores perspectivas econômicas, o que as coloca em posição de desigualdade, sujeitas a violências de gênero", afirma Cynthia Betti, diretora-executiva da Plan International Brasil.
O casamento infantil, no Brasil, tem diversas raízes e entre todas elas existe algo por trás que é velado: a moral social. Muitas vezes, as famílias permitem que suas filhas, crianças e adolescentes, sem casem para não serem faladas na vizinhança, não serem chamadas de "putas", para terem "chances" de formar família uma vez que engravidaram e "ser mãe solteira não é bom". Muitas vezes, o casamento é a solução que mascara a violência sofrida pela menina anteriormente. O que pode ter sido um abuso, um estupro, uma relação abusiva ou tóxica.
"O casamento infantil é prematuro por princípio, pois o início da vida conjugal é problemática para as meninas e adolescentes e concorre com outros direitos, como a educação. É também forçado, pois ressalta as desigualdades estruturais que propiciam essa realidade para meninas no mundo todo, estando bem longe de ser uma escolha, ao levarmos em conta as baixas perspectivas que elas têm", afirma Cynthia.
As sequelas são duras e cruéis. As meninas engravidam cedo, abandonam a escola e, muitas, passam a viver uma relação quase tóxica. Existe uma perpetuação do ciclo de dominação e a reprodução das desigualdades de gênero. As meninas sofrem com a intensificação do trabalho doméstico, o que as rouba a liberdade e a mobilidade. Existe uma entrada precária ou tardia no mercado de trabalho - já que a falta de profissionalização geralmente impede essa chegada ao mercado formal. Existe uma limitação de projeto de vida - se é que projeto é uma palavra que possa fazer parte. Sem ainda entrar no lugar da violência doméstica e sexual.
Um machismo enraizado nas entranhas culturais de nosso país e que se estende a tantos lugares do feminino na sociedade. Veja só: a perda da virgindade, a violência sexual e a gravidez precoce podem servir de desculpa perversa para permitir que crianças e adolescentes se casem sob o consentimento de suas famílias. O casamento, por vezes, é visto como a melhor solução.
Mas casamento é responsabilidade. E ainda que seja devassador e destruidor, as meninas dão um jeito de transformar. Elas ressignificam a violência e transformam em responsabilidade de vida adulta. E segundo dados e estudos da Plan Internacional Brasil, as meninas acabam assumindo o pacote: casa, filhos, marido - estes, quando permanecem dentro do núcleo.
Somos o país que ocupa as piores posições nos rankings. Sempre. São 66mil estupros por ano. 180 por dia. 54% em crianças. 4 por hora em meninas. 1284 casamentos permitidos por Lei com meninas menores de 15 anos. E a gente continua a perpetuar a máscara da doença moral como resposta aos problemas sociais que não se enfrenta. Vai, Brasil.