Com as escolas fechadas, famílias se veem frente ao desafio de dar continuidade as demandas escolares em casa. É possível?
Famílias trabalhando em casa, crianças com escola virtual e o drama de conciliar tantos afazeres em tempos de pandemia está instalado. Entre colocar café da manhã, preparar almoço, atender um call, arrumar a casa, lavar louça e fazer reuniões pelo Zoom (ufa!), existem os filhos que demandam por explicações de conteúdos da escola. E não tem idade pra isso. Engana-se quem pensa que são só os pequenos.
Tem família tendo que dar conta das fórmulas de física, relembrar os elementos da química, fazer cruzamentos filosóficos entre Nietzsche e arte, treinar os cálculos de cabeça (que agora se chama cálculo mental). E tem família tendo que dar conta da alfabetização dos filhos. Veja bem como tudo pode piorar a depender da perspectiva.
Alfabetizar é um processo complexo. Longo, demorado e singular a cada criança. É possível dar continuidade a alfabetização dos filhos em casa com as instruções básicas da escola? Como faz se pais, mães, avós ou sejam quem for, não carrega o diploma de pedagogo debaixo dos braços? É possível tornar-se um professor da noite pro dia?
A resposta é não, meus caros leitores. É preciso de quatro longos anos de estudo, muito aprofundamento, semestres de estágios e muita prática. Provavelmente, como a profissão que você também estudou para ser. Não basta pegar uma apostila e seguir as instruções da escola. Senão poderíamos vender cartilhas em banca de jornal e, simplesmente, dá-las às crianças para fazerem. O processo ensino aprendizagem precisa de interlocutores. E interlocutores formados. Com anos de estudo e experiência. Precisa do que chamam de chão de escola - em alusão ao chão de fábrica.
E pensar no processo de alfabetização de uma criança pode ser extremamente confuso para quem não sabe como ele acontece. Conhecer e saber quais são as hipóteses de escrita por onde a criança passa, antes de chegar a alfabética, é essencial para poder auxiliá-la durante este percurso. Senão vamos achar erros atrás de erros. E achar erro é que está errado.
Pense numa orquestra. No maestro e em todos os instrumentos que estão no palco: violão, violino, flauta, violoncelo, piano e trompete. Para quem escuta e para quem toca, o som único de cada instrumento é essencial para compor o todo. É quando acontece o concerto. O mesmo processo acontece com a crianças e as letras, vogais ou consoantes. A analogia é feita pela psicolinguística argentina, Emília Ferreiro, e é exatamente assim que a criança compreende o som das letras quando escuta uma palavra sendo dita.
Compor uma palavra passa, não só, por conhecer e combinar todos os instrumentos de uma orquestra, como elaborar e reelaborar suposições. Alfabetizar é um processo longo. Exige olhar atento, escuta e respeito pela ação única de cada criança. E justamente por conta da demanda singular, é importante, também, que se respeite todo processo de hipóteses pelo qual ela passa. Mas quem, além do educador, sabe sobre as hipóteses de escrita de uma criança?
Gabriel tem 7 anos e estava em processo de alfabetização quando as escolas pararam. Foi pra casa, em quarentena, com uma pilha de fichas e indicações da escola de quais atividades deveria fazer e em que sequência. Como forma de garantir a continuidade do aprendizado que tinha dado início na escola. Marina, sua mãe, tenta diariamente que ele escreva as palavras de forma correta - correta na versão dela, adulta alfabetizada. Corrige e insiste em ditar silabicamente.
Chegou a dizer "kama" ao invés de "cãma" para que o filho lembrasse do som de "ca" e conseguisse escrever a palavra corretamente. Marina tenta com os conhecimentos que tem. Faz uso do que sabe e imagina ao auxiliar o filho nas atividades. Mas Gabriel não entende a sugestão de "kama" e faz um olhar de estranheza.
Lembre dos instrumentos na orquestra. O que acontece se um desafinar? Tocar uma outra nota ou pronunciar um som que não é dele? Não existe orquestra. Não acontece a música - ou o espetáculo. Mas quem sabe reger orquestra além de maestro? Na Itália, professores são chamados de maestros. Não por influência de Emilia Ferreiro. Talvez por questões óbvias que estão na raiz da palavra. Imagino, neste contexto, ser desnecessária a explicação.
Gabriel escreve "cãma" e a mãe insiste em corrigir. A dizer ao filho que está errado. O filho insiste em dizer que está certo. Travou-se a guerra. Onde talvez não existam ganhadores e sim perdedores. Perde o filho em não ter ao lado a professora. Perde a mãe em sentir-se culpada porque não consegue ajudar. Talvez porque ensinar passe muito adiante do ajudar, do colaborar. Ensinar diz sobre transpor conhecimento a alguém. A gente ajuda alguém a carregar uma bandeja cheia de copos. Mas a gente ensina esse mesmo alguém a equilibrar a bandeja sobre as mãos.
E no meio desse caos instalado, ainda querem dizer o que é certo ou errado. Não tem. Mas partir do princípio de que existe erro, é um erro. Porque todo aprendizado é processo e o mesmo acontece com a alfabetização. É como uma criança que aprende a tocar um instrumento, aquele mesmo da orquestra. É um processo o aprender. "Quando a criança está em processo de alfabetização, o que importa é o seu raciocínio, são suas hipóteses", fala a educadora Cristiane Mori, Mestre em Linguística pela UNICAMP e professora no curso de Pedagogia, do Instituto Singularidades.
O que muitos chamam de "erro" é mais o que os educadores esperam que a criança cometa. Espera-se que a criança escreva apenas com consoantes, use letras variadas para representar os sons que ela escuta ao pronunciarem uma palavra, escreva espelhado, cometa erros ortográficos (porque não é hora ainda da ortografia), e por aí vai.
Longe de serem erros, são tentativas da criança. São possibilidades de construção que ela elabora internamente para poder avançar na escrita e, simultaneamente, na leitura. Alfabetizar uma criança em casa é tarefa pra educador. Acredite. À pais, mães, avós e quem mais for, cabem ajudar.
Ajudar vem da composição de duas palavras latinas: ad (perto, junto) e juváre (ser útil, socorrer, trazer alívio e alegria). Ajudar é dar a mão, chegar bem perto, estar realmente ao lado de alguém, dar força. É quem ampara. E aqui cabe família. Aqui cabe o amparo no meio ao caos instalado na casa de tantos de nós.