Mais de um ano de pandemia e estudo já aponta algumas das consequências do isolamento social no desenvolvimento psicossocial de crianças pequenas que frequentam a Educação Infantil
Enquanto se discute o projeto que regulamenta a educação domiciliar no país, mais conhecida como homeschooling, estudos revelam o impacto e os efeitos noviços de manter crianças da Primeira Infância afastadas do ambiente escolar. Ao contrário do que muitos pensam, educar uma criança em casa não é o mesmo que ajudá-la com atividades da escola, sejam elas quais forem. Educação domiciliar prevê uma série de responsabilidades e diretrizes básicas que o responsável legal pela criança deve cumprir e isso está longe do que as escolas oferecem seja no âmbito pedagógico ou socioemocional.
Na contramão do projeto que tramita no Congresso Nacional a fim de tornar-se Lei, estudo realizado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, em parceria com a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, revela o quanto é importante a relação criança - escola, e alerta para os impactos de mais de um ano de pandemia. Os números não emanam sorrisos.
É na Educação Infantil que se configura o primeiro contato da criança pequena, de zero a cinco anos, com a escola e é aqui que os vínculos iniciais são formados. Vínculos não apenas com educadores, mas com todo o universo da educação em si, princípios e nortes que a circundam. Lembrando que no Brasil, a educação para esta faixa etária é obrigatória a partir dos quatro anos de idade - uma das razões pelas quais a demanda por creches é sempre maior que a oferta do sistema.
Os desafios para manter - ou tentar - a Educação Infantil funcionando durante a pandemia foram colossais e as crianças foram visivelmente prejudicadas e os efeitos já deram as caras. Os resultados do estudo sugerem impactos importantes em diferentes dimensões do desenvolvimento infantil. Aprofundamento das desigualdades educacionais, com aumento das diferenças entre crianças vulneráveis e não vulneráveis é uma ferida exposta no país.
No estudo, dados sobre o ambiente de aprendizagem em casa mostram que a diferença de atividades que ajudam a estimular as crianças, como pintar, desenhar, recortar e ouvir histórias, são mais frequentes entre as famílias com nível socioeconômico mais alto. A diferença chega a mais de vinte pontos percentuais entre os mais ricos e os mais pobres. Agora pense este contexto somado aos 8 milhões de brasileiros desempregados, segundo dados do IBGE - muitos, pais, mães e avós.
Segundo Tatiana Piva, gestora pedagógica da Rede Municipal de Cajamar, os dados são compatíveis aos inúmeros relatos de crianças que estão em casa, muitas vezes com vizinhos e conhecidos, e que vivem situações complexas ao desenvolvimento. "Na nossa realidade, os pais saem para trabalhar e as crianças só conseguem realizar as atividades, quando realizam, ao final do dia ou aos finais de semana. Isso porque nossa rede conta com um material estruturado, o que ajuda a família a se organizar, mas que em nada contribui para o desenvolvimento psicomotor das mesmas e nas relações sociais", conta. "Teremos uma lacuna na formação desses pequenos e muitas questões deverão ser repensadas, desde propostas curriculares à reorganização das rotinas em sala de aula."
Para mais de 60% das famílias de crianças na escola pública, a falta de acesso ou a baixa qualidade do acesso à internet é uma das dificuldades mais preocupantes porque é o que garante a oferta de atividades remotas. Na escola privada, o problema atinge apenas 17% das famílias. Esse baixo acesso ao ambiente escolar remoto também compromete a relação com o professor e o aprendizado.
E são exatamente os impactos no aprendizado e perda de vínculo com a escola que desembocam no aumento do abandono escolar. Mais de 30% das famílias de crianças em escolas públicas não mantiveram nenhum contato com os professores durante a pandemia. O percentual cai para 10% no caso de famílias de crianças em escolas privadas. 43% delas dizem não ter encontrado nenhuma dificuldade no contato com os professores; entre as famílias da escola pública esse percentual fica em apenas 13%.
A professora Simone Claro, do CEI Primeiros Passos, relata os impactos diretos desta relação família - escola durante a pandemia. "Garantir os direitos de aprendizagem e desenvolvimento através do cuidar e o educar, que são indissociáveis para esta faixa etária, tendo a participação da família, quando tê-los de forma presencial já era difícil. Será que agora os pais entendem a concepção de criança e o quanto é importante as brincadeiras e interações na vida escolar, que a CEI nunca foi só cuidar? A EAD (educação a distância) não é novidade, porém a Educação Infantil nunca foi pensada desta maneira", completa.
Lembrando que 80% das crianças e adolescentes brasileiros estão matriculados na rede publica, pensar que apenas 13% conseguiu manter contato com as escolas, estamos falando de uma parcela irrisória. Microscópica. Dado este que contribui para reforçar a percepção de 78% dos professores entrevistados para o resultado negativo no desenvolvimento da expressão oral, corporal, no relacionamento interpessoal e até na nutrição das crianças durante o isolamento.
"Embora os dados que temos atualmente sobre o impacto das crianças vêm da percepção dos professores, são opiniões que estão alinhadas com o que a literatura internacional indica sobre os efeitos da pandemia nas crianças desta faixa etária", diz Tiago Bartholo, doutor em educação pela UFRJ.
Entre os estudos citados por Bartholo, estão alguns feitos na Holanda, Bélgica e Inglaterra. O primeiro comprovou que as atividades remotas têm efeitos pequenos - quase nulos no desenvolvimento das crianças. O segundo evidencia que o isolamento social teve reflexo no desenvolvimento infantil. "É importante notar que estamos falando de países cujas desigualdades educacionais são menores do que o Brasil. Não será surpresa, infelizmente, se os dados que coletaremos na última fase do estudo, no retorno das crianças à escola confirmarem o que esses dois estudos trazem e a percepção atual dos professores", diz o pesquisador.
O estudo também analisou o relato dos responsáveis de crianças entre 2 e 5 anos e revela impactos negativos no desenvolvimento socioemocional e bem-estar. Ao verificar os resultados sobre os hábitos das crianças durante a pandemia constatou-se que mais de 30% das crianças apresentam níveis baixos de qualidade de sono, exercício e frequência de estada ao ar livre abaixo do adequado. E 32% das crianças tiveram tempo de exposição às telas acima do considerado adequado.
Tantos dados e números evidenciam a necessidade do olhar e a importância da Educação Infantil no desenvolvimento das crianças na Primeira Infância. Algumas Instituições, como a própria Maria Cecília Souto Vidigal e o Alana, batalham diariamente para que as garantias dessas crianças pequenas sejam vistas, valorizadas e colocadas em prática na sociedade. E a escola é um desses lugares - vitais - onde a gente "coloca em prática".
Os impactos da pandemia nas crianças pequenas já podem ser medidos - e sentidos - por educadores e instituições que trabalham com esta faixa etária. Dá para minimizar? Correr atrás e reparar lacunas? Sempre dá, mas precisamos, como sempre, da parceria do Governo com políticas públicas e a participação ativa da sociedade civil. Discutir homeschooling neste contexto é navegar em direção ao fundo do mar.
Em meio a uma pandemia e a situação dolorosa que muitas famílias se encontram, é preciso mais. Muito mais.