Há um ano as escolas anunciavam o fechamento e fui uma das últimas a sair. Ninguém sabia que tempo seria aquele e nem as marcas que deixariam
Dia 13 de março de 2020 foi oficializada a quarentena no país. As escolas tinham ali um restinho de dias na semana para se organizar e acolher alunos enquanto as famílias, minimamente, se estabeleciam. Poucos dias, mas foram o suficiente para enterrar no peito a imagem vazia e silenciosa da escola.
Pode parecer clichê, mas esvaziar um ambiente escolar, tão vivo, tão pulsante, é uma daquelas cenas que você não esquece jamais. A gente foi tomado, de supetão, por um acontecimento violento, desconhecido, e que silenciou toda e qualquer possibilidade de alegria. Fui uma das últimas a ir embora da escola e fui minguando durante aqueles três dias.
As crianças estavam atônitas, assustadas e mudas. Você já viu uma criança muda? Pois é, imagine o tamanho do rebuliço interno para que emudecessem. "Dá medo, mas..não muuuito medo", "eu vou ficar com saudades da minha vó e quando eu tava indo pra casa dela pensei que a saudade era uma coisa q vai no barco até o horizonte e não volta". Das poucas frases que eles falaram e que guardei comigo.
Naquele momento, entendi que precisava dar conta daqueles sentimentos todos. A gente precisava conversar, tentar entender alguma coisa. Falar dos medos, do não ir mais à escola presencialmente, do não poder dar beijos nos avós ou ter a companhia deles. Das distâncias todas que isso significava a partir daquele momento. Deu medo, deu saudade por antecipação e deu um vazio danado. Foi difícil. Precisei desviar meu olhar inúmeras vezes para não chorar.
E não por acaso, achei que valia resgatar com as poucas crianças que estavam ali a investigação sobre vida que andávamos fazendo. Foi uma daquelas coincidências pontuais da própria existência porque investigá-la sempre dá margem a muita conversa.
Entre alguns materiais de pesquisa, as crianças vinham usando lupas pra pesquisar as miudezas da vida e foram com elas que olhamos pra dentro da gente. Olhar pequeno pro que a gente sente é de uma gentileza tremenda com a nossa caixa torácica - como bem definiu a poesia da portuguesa Matilde Campilho. E eu li poesia, procuramos palavras no dicionário, procuramos outras definições, escrevemos palavras na lousa e eles deram seus próprios significados a elas. Resolvemos colocar tudo em dizeres.
"Tristeza é quando uma mão aperta o seu coração". "Angústia, vai acabar logo? Vamos ficar bem ou não?" "Tenho medo da doença. Não vou poder tocar em ninguém"
Devia ser proibido criança sentir medo de morrer. Devia ser proibido criança não passar a tarde na casa dos avós. Devia ser proibido criança se angustiar com o amanhã. Devia ser proibido criança se ocupar com a morte. Pelo menos desta forma não.
Juntamos tudo que estava na lousa e dentro do peito e produzimos cartazes com as palavras que tentavam tatear os sentimentos. A escrita é sempre uma forma de reconhecimento, de compreensão, e foi um recurso que ajudou a olhar de onde vinha aquela vontade imensa de chorar. Aquele dia não choramos. Não aquele choro de lágrimas com sais minerais, mas certamente choramos. Eu, chorei.
Dia 16 de março, último dia oficialmente. Eu e a Tânia, que já estava em casa, decidimos fazer uma primeira tentativa de conexão on-line antes de entrar em quarentena. A gente também precisava investigar esse desconhecido antes de cairmos todos no abismo.
A gente queria ver se ia dar minimamente certo. Ela lá na casa dela e eu na escola e quando a gente conectou, os alunos ficaram enlouquecidos com a possibilidade de uma nova conversa. Todo mundo queria se aproximar pra ver a Tânia na tela, conhecer o cachorro que latia e espiar uma fresta da casa da professora. Uma euforia genuína. Por um instante, as crianças estavam ali, de volta, em seu estado inalterado.
Mas tem um determinado momento que a gente precisa cutucar o amigo e dizer que está na hora de ir embora. Apagar a luz, fechar a porta e andar pra frente. Sem atrever-se a virar-se e espiar o que estava ficando pra trás. Lembrei de um trecho da poesia de Mario Quintana que diz que "as mãos que dizem adeus são pássaros que vão morrendo lentamente".
E fomos todos morrendo lentamente. O estado de êxtase do último dia foi se transformando com o passar do tempo. Algumas telas deixaram de se abrir, outras vinham com carinhas murchas e por vezes, a tristeza estava lá, escancarada. Tinha criança que fechava a tela pra dizer que estava com saudade e tinha quem nem conseguisse falar. Engasgava-se com o sentimento.
Passamos meses e meses assim e tem coisas na vida que, definitivamente, o tempo não cura e não muda. A gente pode ter se conformado com a escola dentro de uma tela e as relações resumidas a quadradinhos no Teams, mas entre o que era a escola há um ano e o que é hoje existe um vão - vazio e silencioso.
Um ano depois, a gente volta ao ponto de partida com um lockdown rigoroso. Já são 279mil vidas perdidas. Perdemos 279mil João, Maria, Pedro, Julia, Sofia, Matheus, entre tantos outros. "E daí, quer que eu faça o que? Chega de mimimi".
Lembrei da música do Lenine, "enquanto todo mundo espera a cura do mal, e a loucura finge que isso tudo é normal, será que é tempo que lhe falta pra perceber, será que temos esse tempo pra perder, e quem quer saber, a vida é tão rara, tão rara".