Ninguém nasce achando que o outro é culpado porque é negro. Mas ensina-se crianças a serem racistas. O racismo mora dentro de casa e em 2020 essa luta não pode ser episódica
Adultos querem respostas mágicas. Procuram livros e manuais que deem soluções objetivas, simples e rápidas de como fazer isso ou aquilo. Mas esquecem que educar uma criança exige alguns pré-requisitos básicos. O primeiro deles é entender que cada um é único e as respostas padrão dos manuais, muitas vezes, não se aplicam ao seu filho. Outro, é entender que educar é também autoeducação. Como criar crianças livre de preconceitos e racismo? Entendendo, primeiro, de onde vem o seu preconceito. O seu racismo.
Crianças não nascem racistas e preconceituosas. Crianças não nascem achando que o colega é culpado porque ele é negro. Aprende-se. E são os adultos, e o meio, que os ensinam. Henri Wallon, filósofo e educador, defendia, em sua teoria de desenvolvimento da criança, que o processo de evolução dependia tanto o biológico do sujeito, quanto do ambiente em que estava inserido. Crianças crescem em um meio em que o negro é culpado, o negro é violento e "isso é coisa de negro".
Crescemos aprendendo que ser negro é algo menor do que ser branco. Que negro provoca medo, que negro é suspeito, que negro é ladrão. Negro, negro, negro. O meio, a sociedade são radicalmente racista. A gente cresce assistindo barbáries onde o negro, além de sofrer a violência, é preso. E dai perguntamos como fazer. Como?
Seria possível um Brasil com todas as crianças - sem faltar nenhuma delas - teriam a possibilidade de ter uma infância livre de racismo e preconceito? A resposta para essa pergunta e para a que é título desta matéria vai depender de nós. A luta antirracista não é episódica, nem esporádica. Ela é diária e vive presente no cotidiano de cada um dos 200 milhões de brasileiros. Estamos em 2020 e o racismo mora dentro de casa. Mudar, depende de nós. Não de livros ou manuais.
É preciso revolucionar a educação, revolucionar a infância e mudar tudo. Temos cometido muitos erros como nação e passou da hora de reconstruirmos significados mais condizentes com a realidade. A UNICEF lançou a campanha Por uma Infância sem Racismo e faz um alerta sobre os impactos na vida de milhões de crianças e adolescentes brasileiros. A campanha propõe que cada um incorpore, pelo menos uma, ação de mudança no cotidiano. Porque depende de nós, lembra?
Conversamos com Deh Bastos, idealizadora do projeto Criando Crianças Pretas pra entender as raízes do racismo na infância e aprender a como fazer diferente.
Por que é importante falar sobre racismo com as crianças?Deh Bastos : As crianças naturalizam as cores desde muito pequenas, elas entendem que o sol é amarelo, o céu é azul e que as pessoas negras estão sempre em posições subserviente. Ninguém nasce racista, mas o racismo no Brasil é um aprendizado que acontece já na infância.
Dá pra falar de racismo sem dor com as crianças? Deh Bastos: Eu sempre digo que cada família conhece a sua criança, a melhor forma de conversar sobre tudo respeitando a criança e seu entendimento. O que é possível fazer na prática é dar às crianças boas referências, é se dedicar a não permitir que as crianças normatizem as pessoas negras somente com imagens ruins e violentas.
O que deve ser falado? Ou o que deve ser feito? Deh Bastos: As famílias precisam entender como falar com a sua criança, dentro do que já é interesse da criança, criar suas próprias narrativas para falar de desigualdades, privilégios, injustiças e de como as oportunidades não são iguais para todos. Convocar as crianças brancas para combater o racismo, para olhar para as pessoas negras com outra referência, com dignidade e admiração. As crianças pretas precisam de fortalecimento da autoestima, precisam de empoderamento de suas potencias, precisam saber que o problema "não é ela" e sim a sociedade estruturalmente racista em que vivemos. Precisamos, acima de tudo de um lugar seguro de escuta, é preciso que a família esteja preparada para acolher essa criança quando ela sofrer racismo na escola, por exemplo.
Racismo e preconceito, normalmente, acontecem debaixo do nosso nariz. Começa dentro de casa. Deh Bastos: O silêncio também é racismo. Muitas famílias acreditam que se não falarem sobre o assunto não terão que lidar com as consequências, o que é um erro enorme, porque o racismo não é uma opinião, o racismo é um sistema social de opressão que funciona como uma engrenagem. Enquanto a gente não tomar pra si a responsabilidade de combater e mudar a forma como aprendemos e ensinamos, a engrenagem continuará intacta.
O que deveria ser premissa? Deh Bastos: Entender que é um problema de todos e reconhecer os privilégios. Tudo isso buscando conhecimento sobre o assunto. Muita gente que se propõe a falar sobre o assunto não tem a ação de estudar sobre as questões. As crianças negras precisam de paz. Precisam poder viver com alegria e precisam sonhar. A gente só consegue sonhar com o que enxerga e para muitas crianças pretas a realidade as impedem de sonhar. Elas precisam ser fortalecidas, precisam ser empoderadas, precisam de escuta, acolhimento e paz.
Importante a gente entender que crianças negras também têm suas necessidades né Deh Bastos: O tempo todo. É preciso fortalecer a autoestima estética e a intelectual. Precisam de segurança e escuta porque o racismo é complexo e muitas crianças acham que o problema é com elas. Se sentem feias, rejeitadas e não conseguem entender que isso é um problema social. E ainda sofrem muitas vezes a pressão da família de que precisam ser 2x melhores.
Racismo deixa sequelas? Deh Bastos: O racismo desumaniza as pessoas negras, nos torna socialmente invisível. Quantas vezes você passou por alguma pessoa negra em alguma posição de serviço de base e se quer o cumprimentou? Sequer perguntou qual era o nome dela! Como respeitar, consumir o conhecimento de pessoas que você não enxerga?
E as escolas, qual papel delas na desconstrução do racismo? Deh Bastos: Essa é a motivação de todo o meu trabalho. A maior parte das pessoas negras descobre o racismo na escola. O ambiente da escola pode ser cruel com as crianças negras e a escolas precisam se responsabilizar por ser uma escola representativa. É preciso ter professores, coordenadores e diretores negros, é preciso que a lei 10639 seja cumprida. É preciso que o material didático contemple a lei e que haja um protocolo de ações quando acontecem casos de racismo na escola.
Pra onde você leva teu projeto Criando Crianças Pretas? Deh Bastos: Apesar do nome não é sobre crianças, é sobre futuro que todos nós queremos. A iniciativa é de comunicação antirracista, então vou a qualquer lugar para promover e mediar diálogos que levam a uma conscientização de que precisamos agir. Vou a escolas e empresas, falando dessas questões de uma forma que aproxima a pessoa sobre o assunto. Sinto que um dos maiores desafios para o antirracismo é a negação de que nossa sociedade é estruturalmente racista e para esse combate eu acredito muito no poder de transformação da comunicação.
Já existem mudanças? Deh Bastos: Eu acredito que toda mudança começa com o incomodo. Sou otimista ao olhar para o passado e reconhecer as conquistas que já temos graças a quem está nessa luta contra o racismo há muitos anos. São muitos os ativistas e pensadores pretos que passaram a vida toda nessas pautas É preciso enaltecê-los e continuar lutando. Acredito também que a conscientização é um caminho sem volta, quanto mais nos comunicarmos sobre isso, mais chances de progressos.
Racismo não é esporádico. É diário. Qual nossa responsabilidade diária? Deh Bastos: O racismo não é um episodio, não é somente a manifestação do ódio, não é uma opinião. O racismo é uma engrenagem que funciona intacta e continuamente. Cada pessoa faz parte dessa manutenção para que o racismo continue operando na forma como aprendemos, como vivenciamos e pior, como estamos ensinando a próxima geração. Não há outra forma se não por meio da educação. É preciso ler sobre, é preciso ler autores e autoras negras. É preciso querer aprender mais.