Na segunda metade do século 18, a taipa de pilão era o método mais empregado na construção e ornamentação das igrejas paulistanas. Vista por muitos pesquisadores como um claro produto do sincretismo cultural entre o colonizador português e o habitante indígena, a contribuição negra associada à técnica aparece, na maioria das vezes, em segundo plano. Dentro de uma perspectiva reducionista, que não considera o conhecimento ancestral, nem o raciocínio empírico adquirido pelo negro africano em séculos de observação em suas terras de origem. Isso até que, em busca de um resultado mais requintado, algumas ordens religiosas locais começam a adotar a cantaria – arte de talhar blocos de rocha para constituir sólidos – contratando, para tanto, um artesão, até então, escravizado, de nome Joaquim Pinto de Oliveira. Um exímio mestre no ofício, que, em pouco tempo, realizou um feito absolutamente inédito para a época, comprando sua alforria, aos 57 anos. Mas que, apenas agora, tem seu legado arquitetônico para a cidade reconhecido, com a inauguração de um monumento em sua homenagem, na Praça Clóvis Beviláqua, no centro de São Paulo. Implantada em pleno território onde o ex-escravizado atuou, a apresentação da escultura que enaltece seu trabalho como arquiteto – reconhecido em 2018, pelo Sindicato dos Arquitetos do Estado de São Paulo –, ocorre no emblemático Dia da Consciência Negra. Mas, como parte integrante da Jornada do Patrimônio promovida pela Secretaria Municipal da Cultura, que este ano tem como tema Nossa Cidade, Nossas Memórias, sua inauguração oficial está agendada apenas para o dia 5 de dezembro. Mais conhecido como Tebas – nome que na língua quimbundo indica alguém de grande habilidade –, Joaquim Pinto de Oliveira, originário de Santos, foi trazido para a capital por seu senhor, o mestre pedreiro português Bento de Oliveira Lima, em 1740. Mas, em poucos meses, passou a ter seu trabalho disputado pelas principais irmandades, que o contrataram para executar projetos de peso, como a torre da matriz da Sé, construída em 1750 e, posteriormente, também reformada por ele, em 1769. Além dela, também levam sua assinatura os ornamentos originais dos conventos da Ordem 3.ª do Carmo e do Mosteiro de São Bento (1766 e 1798), assim como uma fonte pública, outrora existente no Largo da Misericórdia, conhecida como O Chafariz de Tebas, construída em 1791, onde hoje fica o cruzamento das ruas Direita, Quintino Bocaiuva e Álvares Penteado. A poucas quadras de distância de onde o monumento acaba de ser assentado. “A ideia principal desta empreitada foi afastar, de uma vez por todas, a aura de invisibilidade que repousava sobre a história de Tebas, por meio de uma escultura que projeta, em grande escala, sua contribuição para a cidade. Trata-se de um lugar em que uma criança, ao passar, pode se sentir representada. Seja pela imagem de um super-herói ou, simplesmente, de um homem importante que existiu e lutou dignamente por sua afirmação e espaço”, ressalta Rita Teles, produtora e articuladora cultural, responsável pela arregimentação de uma equipe com quase 90% de profissionais negros para a realização da obra. Pensado, fundamentalmente, para alicerçar a presença de Tebas na memória coletiva da cidade, o trabalho é fruto da livre interação entre o artista plástico Sandro Lumumba Mello – que prefere responder pelo nome artístico de Lumumba Afroindígena, como forma de valorizar o sobrenome herdado da avó congolesa e sua herança ameríndia –, e da arquiteta Francine Moura, que acumula vasta experiência nas áreas de pesquisa e preservação do patrimônio histórico, sobretudo na área central da cidade. Desenvolvida no prazo recorde de dois meses em um ateliê no bairro dos Campos Elísios, a obra, de inspiração afrofuturista, sugere, antes de mais nada, uma ideia de ascensão. Fiel a seus objetivos, coloca em evidência a modernidade de Tebas para sua época. Mas, ao mesmo tempo, pretende inspirar uma reflexão permanente sobre a papel da ocupação territorial negra na cidade de São Paulo ao longo dos séculos. Segundo seus criadores, tudo se passa como se a imagem de Tebas se projetasse para fora do universo perverso da escravidão, rumo a um futuro mais promissor e menos opressivo. O que fica evidenciado pelo uso de materiais hi-tech como o aço inoxidável e o concreto. E ainda pelo fato de Lumumba estar vivendo uma fase dedicada a pesquisas sobre o universo dos super-heróis e das histórias em quadrinhos. “O flerte com esse tipo de linguagem foi um caminho natural para criar uma escultura que combina ficção científica, fantasia, história e arte africana”, conta o artista que, como Francine, celebra neste ano, 2020, 20 anos de carreira. “E foi em meio a esse universo dual que criamos a imagem de um Tebas que passou por este plano há mais de 200 anos.”
ENTREVISTA
O monumento foi criado para reverberar a modernidade e o legado de Tebas. Como traduzir para os dias de hoje a imagem de um homem que viveu há mais de dois séculos?Lumumba: A obra foi pensada a partir dos seguintes elementos: o homem negro ex-escravizado, sua profissão de arquiteto, seu apagamento, seu reconhecimento e o meu momento artístico. O desafio maior foi montar essa equação e ainda trazer um ar futurista para a composição, pensando no que a obra pode representar para a posteridade.Francine: Nossa principal preocupação foi tratar com cuidado e respeito a imagem de um homem negro que deveria ser homenageado. Nosso imaginário é permeado pela colonialidade e, por isso, sabemos da importância de produzir imagens de corpos negros associados a contextos positivos. Em resumo, a escultura aborda a intelectualidade, o ofício e a sabedoria de Tebas.
Houve alguma divisão de funções durante as fases de projeto e de execução da escultura? L: Nós dois nos ocupamos da proposta conceitual. Eu criei o desenho e, a partir da sua aprovação, fui para o ateliê trabalhar. Já a Francine passou a cuidar da fundação e da base. Mas, para além dessa divisão de funções, continuamos conversando para fazer convergir estrutura e estética.
F:Lumumba começou a esculpir no ateliê e eu, naturalmente, assumi a gestão do projeto e da obra, uma vez que a escultura demandou estudos detalhados de arquitetura, estrutura e fundações.
Como acreditam que o trabalho de vocês pode contribuir para diminuir a desigualdade racial? L: Construindo nossa própria narrativa. Atuando como protagonistas e desconstruindo o romantismo acerca da presença negra no Brasil. Provocando um pensamento crítico sobre a ação de invasores que ainda têm monumentos em sua homenagem.F: Penso que podemos pensar a cidade a partir de uma perspectiva antirracista, trazendo à tona a contribuição da arquitetura afro-brasileira.