Sistema centenário de produção agrícola considera as propriedades rurais como organismos vivos e conectados com o sistema solar
Você já ouviu falar em antroposofia? É uma filosofia de vida que reúne os pensamentos científico, artístico e espiritual e que responde às questões mais profundas do homem moderno sobre si mesmo e sobre suas relações com o universo. Entre as suas principais vertentes, estão a pedagogia Waldorf, a medicina antroposófica, e a agricultura biodinâmica, que é o tema do post de hoje.
O pai da antroposofia é o austríaco Rudolf Steiner, em 1924 ele ministrou um ciclo de oito palestras na Polônia que originaram esse método sustentável de produção agrícola. Uma das características que diferenciam a agricultura biodinâmica das demais vertentes de agricultura sustentável é a utilização do Calendário Astronômico Agrícola para definir, por exemplo, as melhores datas e horários para o plantio e a colheita dos alimentos.
A entrevista de hoje, que a parte da rede Conexão Solo Vivo é com a Presidente da Associação Brasileira de Agricultura Biodinâmica, Luciana Gomes de Almeida, (na foto) que também é engenheira agrônoma, mestre em horticultura e gestora de projetos de desenvolvimento social e rural através da agroecologia, no campo e na cidade.
-Quais são os princípios da agricultura biodinâmica?
L.G.A
A agricultura biodinâmica tem como princípio básico a estruturação de propriedades rurais como organismos agrícolas cujas partes se inter-relacionam em processos fortemente conectados aos ritmos astronômicos, desenvolvendo sistemas muito autônomos e independentes, à semelhança das florestas e vegetações naturais. Ela se baseia no calendário astronômico agrícola biodinâmico, que considera a influência do Sol, da Lua, dos planetas e das estrelas sobre o desenvolvimento das plantas. O zodíaco é um conjunto de constelações diante das quais a Lua e todos os planetas se movimentam. Ao passarem por cada constelação, são ativadas forças que se traduzem em um efeito na Terra. Durante o processo, a Lua transmite forças cósmicas à Terra e influencia o desenvolvimento dos diferentes seres que a habitam.
Todos os dias, as plantas recebem estímulos que atuam sobre o desenvolvimento de diferentes órgãos e que manifestam efeitos benéficos sobre eles. Em pesquisas realizadas durante vários anos por Maria Thum, discípula de Rudolf Steiner, ela observou um padrão astronômico na semeadura. Quando a Lua está passando pelas doze constelações do zodíaco estimula o bom desenvolvimento de diferentes partes das plantas. Por exemplo, durante as constelações de terra (touro, virgem e capricórnio) são mais estimuladas as raízes, como a cenoura; nas constelações de água (peixes, câncer e escorpião), as folhas e caules, como a couve; nas constelações de ar (gêmeos, libra e aquário), as flores, como o brócolis e nas constelações de fogo (áries, leão e sagitário) os frutos, como o tomate.
É importante ressaltar que o calendário é astronômico. A astronomia se diferencia da astrologia, pois astronômicamente as constelações têm um tamanho distinto e se movimentam no céu, ou seja, a sua influência varia diariamente. Enquanto na astrologia toda constelação tem o mesmo tamanho e são fixas no céu ao longo do ano, ou seja seu efeito não é real.
-Assim como acontece na produção de alimentos orgânicos, a biodinâmica também não utiliza agrotóxicos, mas esta metodologia vai além, como ela encara o local em que os alimentos são produzidos?
L.G.A
A agricultura biodinâmica acredita que a propriedade é uma individualidade agrícola, que é única e tem as suas particularidades de acordo com o microclima e bioma onde está inserida. Portanto, ela irá respeitar o momento em que aquela propriedade e a família se encontram e buscar um processo de produção que possa levar a evolução e melhoria do solo, da água, das plantas, dos animais e do ser humano ali inserido. Trabalha-se o processo respeitando a cultura local, mas superando crenças limitantes que levariam ao desgaste do sistema. São promovidas e resgatadas práticas agrícolas e culturais através da simbiose, cooperação e religação com as forças da natureza, que levam o sistema a um continuum de abundância e prosperidade
-Como a agricultura biodinâmica substitui os adubos convencionais?
L.G.A
Através da promoção da reciclagem dos nutrientes do solo, a partir do cultivo de plantas que vão através da fotossíntese produzir um grande volume de biomassa, que irá alimentar os microrganismos do solo, que farão a reciclagem da matéria orgânica, tornando o solo fértil com nutrientes disponíveis de forma natural para as plantas. Além disso a agricultura biodinâmica conta com o preparados biodinâmicos, que a semelhança da homeopatia, atuam como catalizadores de processos biológicos a baixa energia, que vão estimular a decomposição da matéria orgânica de forma equilibrada, de acordo com o que aquele ambiente, em particular, necessita. É como trazer para o sistema uma sabedoria sutil, uma sensibilidade, onde é disponibilizado aquilo que aquele ambiente necessita naquele momento. Nós chamamos isso de tornar o solo vivo.
-Quais são as vantagens deste tipo de agricultura para os produtores e para os consumidores?
L.G.A
A vantagem é consumir um alimento que além de ser livre de agrotóxicos e de todos os prejuízos que este traz a saúde das pessoas e ao meio ambiente, ainda possui vitalidade e a informação de que para ter vida com saúde é importante respeitar os ritmos naturais, ou seja, é um alimento que nos traz também a sabedoria sutil de que temos que ter equilíbrio, beber água na quantidade certa, respeitar o tempo necessário para que os processos se completem, um ritmo de vida que nos permita aproveitar os benefícios do sol, da biodiversidade e da interação com todos os seres da natureza. De repente, você começa a mudar de fast food para slow food, você começa a ouvir mais as pessoas, ter empatia, compreender os processos e, como tudo começa a fluir melhor e naturalmente, os resultados são melhores e contínuos. Dizemos que é um alimento que expande a nossa consciência para uma vida em harmonia com a natureza e todos os seres vivos à nossa volta.
-É possível produzir alimentos em larga escala com esta metodologia? E qual a relação entre a área e a produtividade, é possível produzir mais em um espaço menor?
L.G.A
Na natureza, antes de simplificarmos os sistemas, as florestas existiam em larga escala. Fomos derrubando as florestas e simplificando os sistemas, o que resultou na sua fragilidade, levando a erosão do solo e processos de desertificação. Então, podemos construir organismos agrícolas biodinâmicos em qualquer escala, temos exemplos de propriedades biodinâmicas em diferentes biomas em grande escala, como a produção de arroz e uva no Sul, cana de açúcar e grãos no Sudeste e frutas no Nordeste.
Considerando os cultivos solteiros, ou seja, de uma única cultura, a produtividade é igual a da produção convencional. Na minha dissertação de mestrado eu comprovei que a produtividade do tomate orgânico com manejo biodinâmico era igual a produtividade do tomate convencional. Nas propriedades menores, e também nas maiores, podemos aumentar a produtividade através dos consórcios, plantando culturas com diferentes necessidades de luz em diferentes extratos, ou seja, no mesmo espaço podemos cultivar alface, rúcula e couve, por exemplo. Colhemos a rúcula em 30 dias, a alface em 45 dias e a couve em 60 dias, assim quando uma forma e fica pronta para a colheita, a outra está em desenvolvimento, quando colhemos uma abre espaço para a outra se desenvolver... Ao final teremos colhido no mesmo espaço, mas em momentos diferentes, três culturas, ou seja, a produtividade no mesmo lugar triplica!
-A biodinâmica trabalha também com monoculturas?
L.G.A
Como a biodinâmica trabalha com processos, ela busca promover ao máximo a biodiversidade para podermos usufruir dos seus benefícios, para aumento da fertilidade e equilíbrio das populações de pragas e seus inimigos naturais. Desta forma, evita-se ao máximo a monocultura. Em pequenas e médias propriedades é mais fácil evitar a monocultura, trabalhando-se sistemas consorciados e/ou agroflorestais. Já em grandes propriedades, o uso de maquinários torna-se indispensável, e neste caso, procura-se trabalhar as culturas em faixas: o sistema agroflorestal é realizado de forma que se tem faixas de um único tipo de cultura entre faixas de plantas nativas que trazem a biodiversidade necessária a para o equilíbrio do sistema. Faz-se também a diversificação no tempo, através da rotação de culturas de famílias diferentes. É obrigatório também o respeito ao código florestal brasileiro, preservando as áreas de preservação permanente, mas normalmente as propriedades biodinâmicas superam em muito o mínimo que o código florestal determina, pois o custo/benefício que a biodiversidade traz é maior para o sistema.
-Os alimentos biodinâmicos são citados pela Lei dos Orgânicos como uma das vertentes de produção destes alimentos, mas como funciona a certificação, é a mesma para todas as modalidades de agricultura sustentável?
L.G.A
A legislação brasileira para produtos orgânicos, possui uma única certificação básica para todos os sistemas de produção de base agroecológica e sustentável. Contudo, o agricultor biodinâmico inicialmente tem a certificação orgânica e poderá ter adicionalmente a certificação Demeter, que é a certificação para sistemas biodinâmicos. Desta forma, ele evidencia o diferencial da sua produção em relação aos outros sistemas de base agroecológica. A diferença é que as normas biodinâmicas exigem um processo de produção mais coerente e religado com os ritmos naturais, como o uso de sementes biodinâmicas e/ou orgânicas e/ou convencionais sem tratamento químico, uso de mudas biodinâmicas e/ou orgânicas, uso dos preparados biodinâmicos e não permite o uso de esterco que seja de sistemas intensivos de criação de animais.
-Existem muitos agricultores brasileiros produzindo alimentos por meio desta metodologia? Onde eles estão localizados, onde comercializam os seus alimentos?
L.G.A
Temos muitos agricultores certificados biodinâmicos, que embora sejam certificados apenas como orgânicos, realizam o manejo biodinâmico de Norte a Sul do Brasil. Comercializam seus produtos em todos os sistemas de aquisição de alimentos, como: cestas, feiras, supermercados, e-comerce, fazem parte das CSAs (comunidades que sustentam a agricultura) e participam de programas públicos de aquisição de alimentos.
-Como é possível aumentar o número de produtores? Qual é o papel dos diferentes setores da sociedade neste cenário?
L.G.A
O consumo de alimentos biodinâmicos é a base para o aumento do número de agricultores. Os diferentes setores da sociedade podem se organizar para comprar produtos biodinâmicos de acordo com o volume de consumo. Os consumidores podem se organizar em grupos de consumo responsável ou comunidades que sustentam agricultura (CSA). Estabelecimentos que compram alimentos, como: hoteis, restaurantes, hospitais e empresas com refeitórios, podem realizar o planejamento da produção antecipado com as associações e cooperativas de agricultores biodinâmicos mais próximos a fim de fortalecer a agricultura local.
-Estas ações também ajudariam a reduzir o preço dos alimentos?
L.G.A
A redução de custo de produção envolve consumir aquilo que é produzido com menor esforço e seguindo o fluxo dos processos naturais em um ambiente mais próximo. Ou seja, consumir produtos na época e de acordo com o bioma local, reduz o custo do agricultor pois, além de ter maior produtividade, tem menor necessidade do trabalho de controlar as pragas e as doenças. Além disso, reduzir a cadeia entre a produção e o consumo dos alimentos é sempre mais sustentável, pois reduz o custo do transporte e o consumo de energia não renovável.