Como lidar com o trauma? Em livro, psicóloga apresenta caminhos de superação; leia trecho inédito


Obra de Ediane Ribeiro, especialista em trauma e regulação emocional, chega às livrarias em breve; conheça

Por Redação
Como superar um trama? Psicóloga aponta caminhos em novo livro. (Imagem ilustrativa) Foto: Maridav /adobe.stock

O trauma está presente no nosso a dia a dia. Ele faz parte não só de grandes eventos que deixam marcas psicológicas, mas também pode nascer de micro interações e como reflexo de comportamentos nocivos. É isso que defende a psicóloga Ediane Ribeiro no livro Os Tesouros Que Deixamos pelo Caminho, que chega às livrarias no final de outubro pelo selo Paidós, da editora Planeta. Leia um trecho abaixo.

O subtítulo da obra já mostra o que a autora pretende apresentar: ‘Como Aprender a Lidar com Nossos Traumas Pode nos Lançar em Um Resgate da Própria Potência’. Especialista em trauma e regulação emocional, Ediane propõe uma reflexão sobre os temas. Ela reforça que o trauma faz parte da vida, mas que há caminhos para que ele não seja um paralisador na trajetória de alguém.

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A psicóloga, que acumula mais de 200 mil seguidores no Instagram e também é palestrante, faz uma mescla entre suas próprias experiências como mulher negra e seus conhecimentos teóricos e científicos para abordar temas como hipervigilância, dissociação, traumas transgeracionais, trauma racial, estresse, compulsões e dependência emocional.

“O que eu espero mesmo é que Os tesouros que deixamos pelo caminho chegue a qualquer pessoa que possa se beneficiar com um relato sincero e confessional da combinação entre conteúdo técnico, experiências pessoais e tudo mais que me faz escolher o trauma como área de estudo, como umas das lentes para olhar os fenômenos humanos, mas principalmente como um caminho para acessarmos nossa potência escondida pela dor”, explica ela, no começo da obra.

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Ediane Ribeiro, psicóloga e autora de 'Os Tesouros que Deixamos Pelo Caminho' (Paidós). Foto: Ediane Ribeiro/Acervo pessoal

No trecho abaixo, ela fala sobre a desumanização como ferramento do racismo, a diferença entre trauma e traumatização e apresenta exemplos de como um evento traumático pode ter efeitos diferentes em cada pessoa. Confira:

Leia trecho de ‘Os Tesouros Que Deixamos Pelo Caminho’

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Ancestralidade como antídoto para a desumanização

Em um dos seus estudos na Universidade da Califórnia, o PhD em psicologia Phillip Goff pediu a policiais e também a mulheres brancas universitárias que julgassem fotos de crianças brancas e negras quanto à idade. As crianças tinham, em média, 10 anos. Um dos resultados do estudo aponta que os respondentes projetaram em média quatro anos e meio a mais para as crianças negras em relação aos seus palpites para as crianças brancas. Goff também aborda nesse estudo outras projeções para meninos negros como sendo menos inocentes e mais problemáticos. Essa tendência dos respondentes do estudo Goff chama não de racismo ou preconceito, mas de desumanização.

A desumanização é mais uma das faces perversas do racismo e ocorre de diferentes formas. No estudo de Goff ele sinaliza para a distorção da percepção de alguém em função da aparência. Se eu vejo um menino de 10 anos não como uma criança, mas como um adolescente de 14, 15 anos, isso o coloca em outra fase do desenvolvimento, e ele será tratado de um jeito muito diferente, principalmente, se essa distorção está associada à criminalização dos corpos do grupo ao qual ele faz parte. É uma discriminação que leva a preocupações reais com segurança. Os casos de pessoas pretas presas injustamente por falsos reconhecimentos, por suspeitas infundadas ou assassinadas gratuitamente pela polícia são tão frequentes que os americanos criaram a expressão “The Talk” (ou “A Conversa”) para descrever a conversa que pais de filhos negros precisam ter com seus filhos sobre abordagem policial e sobre como se comportar para não ser considerado suspeito nos ambientes e ter mais chances de voltar para casa com segurança.

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Mesmo sendo uma expressão americana, eu arrisco dizer que qualquer mãe ou pai de uma criança negra no Brasil sabe qual o conteúdo dessa orientação. Inclui coisas como: não correr na rua, não andar sem camisa e sem documento, evitar entrar em lojas com mochilas, não reagir se for abordado pela polícia e por aí vai. “The Talk” é apenas um dos muitos exemplos que eu poderia citar para ilustrar como um trauma histórico não integrado à consciência coletiva projeta novos traumas e aniquila potencialidades.

Imagine o que é para uma criança desde muito cedo aprender que é vista como uma ameaça e que precisa restringir seus comportamentos e sua curiosidade para não terminar em circunstâncias erradas. O acúmulo das discriminações, violências e microagressões sofridas cotidianamente causam um impacto importante no desenvolvimento cerebral dessa criança, em uma fase do desenvolvimento em que a segurança seria fundamental para direcioná-la para o entendimento de suas emoções, para a curiosidade com as descobertas e aprendizados do cotidiano, para o despertar da criatividade, construção de autoestima, aspirações de crescimento, regulação emocional, bom desenvolvimento de relações de conexão e de funções cognitivas como raciocínio lógico, atenção, controle de impulsos, planejamento e memória. Tudo isso pode se desorganizar a partir de experiências de estresse racial precoces.

Depois de tomar consciência de tudo isso e adentrar o universo do trauma, não havia outro caminho para mim senão mergulhar nas águas do trauma racial. Foi preciso me debruçar sobre autores contemporâneos do tema, como o psicoterapeuta Resmaa Menakem e a doutora Thema Bryant-Davis, e fazê-los conversar em minha mente com quem veio antes, como o psiquiatra e filósofo martinicano Frantz Fanon, autor de Peles negras, máscaras brancas, e a psicanalista e psiquiatra brasileira Neusa Santos Souza. Foi também na literatura sobre amor de bell hooks, na elegância dos textos de Djamila Ribeiro e Silvio de Almeida, na inteligência gentil dos estudos sobre afeto e amor do filósofo e professor Renato Noguera, na música, na poesia, na dança, nas religiões de matriz africana e na ciência produzida por meu povo que encontrei caminhos para me conectar com minha ancestralidade.

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Uma ancestralidade diferente da distorção que aprendi na escola, quando tudo que diziam sobre nós é que éramos descendentes de pessoas escravizadas, apagando toda uma história que inclui cultura, saberes, riquezas, produção de conhecimento e criação de tecnologia dos povos africanos. Eu descobri e me reconectei à ancestralidade negra enquanto potência criativa, realizadora e digna. Com ela vieram também duas coisas que o racismo tantas vezes rouba de nós: a sensibilidade e a doçura que passaram anos bloqueadas em mim.

Por incrível que possa parecer, essa estrada do letramento racial está só no começo para mim, e todos os dias preciso dar passos em direção ao processo de cuidado das minhas dores e de aproximação intencional com outras pessoas que viviam o mesmo que eu e não estavam no meu campo de visão antes. É a busca intencional por aquilombamento enquanto lugar de estratégia, conexão e reparo; e não enquanto lugar de fuga. Dessa forma, aprendo a cada dia sobre caminhos para viver em um sistema opressivo de modo consciente, mas sem permitir que ele continuasse a usurpar minha capacidade de amar e de sonhar.

Não verei uma sociedade não racista, mas sigo caminhando diariamente nas trilhas de quem veio antes e na intenção de deixar minha semente para quem vier depois. Busco nas relações, no estudo, no legado de meus ancestrais e nos afetos os recursos para seguir minha travessia e para trabalhar junto aos meus clientes de terapia com o trauma que mais me desafia e que me confronta diariamente com minhas limitações como terapeuta: o trauma racial.

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Traumatização: a ferida que não cicatrizou

É relativamente comum encontrarmos trauma sendo tratado como sinônimo de traumatização, mas há uma importante diferenciação a ser feita aqui. O significado da palavra trauma é um bom lugar para começarmos. Do ponto de vista semântico, a palavra trauma, segundo o Online Etymology Dictionary, vem do grego trauma, que significa “ferida física”. O trauma psicológico, porém, é um tipo muito específico de ferida. Ao contrário de uma ferida na pele, que podemos ver e delimitar onde começa e onde termina, o trauma psicológico é uma ferida que não enxergamos: é uma ferida interna. Isso torna mais desafiador delimitar onde começa, onde termina e quais os danos que ela causou em nossa “pele de dentro”. Assim como um corte no dedo por uma faca afiada que escapou enquanto você cortava cebolas pode fechar rápido e naturalmente, deixando uma cicatriz quase imperceptível, a ferida do trauma também pode em pouco tempo se tornar apenas uma lembrança sutil sem grandes repercussões.

Agora imagine que o local do corte no dedo seja de difícil cicatrização ou que foi um machucado mais profundo. Isso torna a recuperação mais lenta e dolorosa. A ferida pode reabrir quando pegamos um objeto ou esbarramos a mão sem querer em alguma coisa. É possível também que a cicatriz no local torne a pele dali mais áspera, rígida e um pouco diferente da do restante da mão. A traumatização é essa ferida de difícil cicatrização, que provoca dor, reabre de vez em quando e nem sempre só o tempo será suficiente para cicatrizar.

Trauma é, portanto, o conjunto de reações do corpo, do cérebro e da mente no momento em que estamos vivendo a situação desafiadora, e traumatização é quando as marcas dessa experiência em nós perduram no tempo sem serem cicatrizadas. Elas permanecem e se manifestam em forma de alterações emocionais, sintomas, mudanças de comportamento, padrões de relacionamento ou adoecimentos.

Seja um trauma consciente e marcante, como no caso dos amigos em férias, seja um trauma invisível e escondido em um relacionamento, como no caso de Lucas, o medo, emoção regente no trauma, passa a dirigir a percepção, as sensações, as escolhas e forma como lidamos com a vida.

Capa de 'Os tesouros que deixamos pelo caminho', de Ediane Ribeiro. Foto: Paidós/Divulgação

Um mesmo evento traumático, três diferentes desfechos

Carol e Letícia eram duas advogadas na casa dos 30 anos que se conheceram no escritório em que trabalhavam e, segundo elas próprias, apesar da expansão e extroversão de Carol contrastarem com a timidez e fala comedida de Letícia, as duas se aproximaram e se deram bem logo de cara. A viagem para a Tailândia era um tipo de comemoração pessoal delas.

Três anos antes, as duas se envolveram em um desastre na Região dos Lagos do Rio de Janeiro e, ao sobreviverem, combinaram de realizar seus sonhos de viagem juntas. O sudoeste asiático era um deles. Carol e Letícia passavam um feriado prolongado na cidade de Búzios quando foram surpreendidas pelo desabamento da casa em que estavam hospedadas, em decorrência das fortes chuvas, que são típicas na região. Junto com elas estava outro amigo, Pablo, que por uma feliz coincidência, sorte ou providência divina era bombeiro civil.

A amizade entre os três era marcada pelo gosto por viagens e a ideia de passarem o feriado prolongado na casa de amigos de Pablo em Búzios foi recebida com muita animação pelas duas. Como chovia muito, os amigos ficaram em casa jogando baralho, bebendo e contando histórias divertidas. Apesar da chuva ter interrompido os passeios, eles continuavam animados e felizes.

Eles se preparavam para dormir quando escutaram estrondos. “Demorei para entender o que estava acontecendo e me lembro de pouca coisa depois do forte barulho”, Letícia me contava. “Quisera eu não me lembrar”, respondeu Carol. Ela me narrou a sensação da terra faltando sob os pés; lama e objetos caindo por cima delas. De fato, era um milagre os três terem sobrevivido apenas com ferimentos leves. Escutei a história com especial atenção à diferença de reação entre eles em meio ao acidente e até a chegada do socorro.

Paralisada, Letícia não conseguia se mover e, segundo a amiga, sua expressão era “uma cara de nada”. Carol gritava por socorro e conta que achou que o coração fosse pular de tanto que batia acelerado. Ela não se esquecia da sensação de desespero que tomou conta dela. Pablo, embora também parecesse assustado, rapidamente começou a agir para tirar os três daquela situação.

Para as duas, os primeiros anos depois do desabamento foram marcados por pesadelos, crises de ansiedade e dificuldade de voltar à região. Aos poucos, com a ajuda de profissionais especializados em transtorno do estresse pós-traumático e do suporte de amigos e familiares, elas foram recuperando a rotina; os pesadelos e as crises reduziram até se tornarem praticamente inexistentes.

Por isso, a viagem à Tailândia era um tipo de comemoração da recuperação delas. Carol e Letícia ainda lidavam com alguma ansiedade e tensão associadas ao acidente, mas havia quase um ano que não tinham pesadelos e crises mais intensas, além de terem recuperado o prazer pelas viagens que tinha ficado embotado depois do episódio na Região dos Lagos. Já Pablo, na visão delas, parecia ter voltado à vida normal muito rápido depois do acidente.

Os três estavam juntos no mesmo evento traumático, mas cada um viveu um trauma diferente e nem todos ficaram traumatizados, ao menos, ao que parecia pelo relato das duas.

O fato de Pablo ser bombeiro civil o deixava familiarizado com os fragmentos sensoriais de um desastre como aquele. O som dos estrondos, as imagens de tudo revirado, os cheiros e texturas da lama cobrindo tudo não eram novidade para o cérebro dele. Além disso, ele era treinado para agir nesse tipo de situação, reduzindo sua sensação de estar sem saída e, portanto, reduzindo o desamparo.

Se as amigas estiverem certas sobre a rápida recuperação de Pablo pós-acidente, é provável que tudo isso tenha facilitado o processamento daquela experiência pelo corpo, cérebro e mente dele. Em uma metáfora simples, é como se existisse uma gaveta no cérebro de Pablo da qual ele podia tirar a legenda sobre o que estava acontecendo e as ferramentas para lidar com a situação. Ao invés de experimentar a sensação de total inescapabilidade, ele foi tomado pela ação para tirá-los dali.

Já no cérebro de Letícia e de Carol, ao que parece, não havia nada para ajudá-las a legendar e lidar com aquela experiência, e tudo foi absorvido como fragmentos soltos de sons, cheiros, imagens e sensações de uma situação-limite, inusitada e que as deixava à mercê da própria sorte. A carga de estresse recebida pelos três até pode ter sido a mesma, mas em Pablo gerou menos sobrecarga do que em Carol e Letícia.

Mas havia ainda uma diferença entre elas. Carol entrou em um estado de ansiedade e agitação máximas, que a fez gritar, tremer, suar e se desesperar. Essa carga de estresse recebida pelo corpo de Carol não parece ter encontrado uma descarga equivalente depois do acidente, e continuou a produzir resposta ao estresse, gerando pesadelos e desorganização do seu sistema de alerta. Depois do acidente, era como se, de uma hora para outra, ela fosse “sugada” de volta ao desabamento e por alguns instantes o seu cérebro perdesse a capacidade de diferenciar passado de presente, provocando reações que se assemelhavam a uma crise de ansiedade.

Já Letícia parece ter entrado em outro tipo de resposta de sobrevivência: o congelamento. Com uma sobrecarga tão elevada quanto ou talvez maior que a de Carol, seu cérebro precisou “desligar” algumas áreas para sobreviver àquele trauma, fazendo-a, inclusive, se esquecer do que viveu, mas deixando marcas como alterações no sono, na qualidade de vida, o aumento da angústia e da sensação de insegurança mesmo em situações de lazer e relaxamento e uma certa anestesia emocional em situações do cotidiano.

Três experiências traumáticas diferentes vividas durante um mesmo episódio e com desfechos distintos.

Sinto, logo existo: sensação, emoção e sentimento

Este é um ponto importante da nossa travessia, por isso vamos fazer uma pausa para explorar a paisagem que dá contorno às nossas vivências traumáticas: o sentir.

Inspirada em António Damásio, um dos neurocientistas mais respeitados da atualidade e conhecido por seu trabalho com emoções, abordarei três palavras que se relacionam com o universo do sentir: emoção, sensação e sentimento.

Não precisamos da mediação da linguagem para sentir; nós simplesmente sentimos, mesmo que não consigamos colocar palavras em nosso sentir. Mas quando ele ganha legendas que adicionam sentido à experiência, damos um importante passo para elaborar, processar e liberar nossas emoções.

Aprendi com Damásio a pensar emoção, sensação e sentimento como informações. São informações de qualidades similares, mas com níveis de precisão diferentes. Tudo começa com nossos sentidos. Quem, como eu, cursou os ensinos fundamental e médio há mais de vinte anos provavelmente aprendeu na escola que temos cinco sentidos: visão, audição, paladar, tato e olfato. Hoje em dia, sabemos que temos bem mais que cinco sentidos. Só para citar alguns exemplos: sede, fome e dor também são sentidos, só que, diferente dos cinco anteriores, captam informação do nosso mundo interno e não do mundo externo. Os sentidos nos ajudam a perceber o mundo, mas perceber não é sentir. Emoções, sensações e sentimentos são interpretações do que é captado por nossos sentidos. Elas dizem respeito ao nosso mundo interior. São os nossos movimentos internos.

Alguns desses movimentos internos nos informam de alterações em nossa fisiologia: se os músculos estão tensos ou relaxados, se o estômago está cheio ou vazio, se o coração está acelerado ou tranquilo, se a respiração está fluida e calma ou entrecortada e difícil, se o pescoço dói. Essas informações com um grau de precisão física são as nossas sensações, e elas nos ajudam a saber como está nosso organismo ou partes dele, o que é essencial para que possamos nos direcionar para aquilo que necessitamos a cada momento, como relaxar, nos alimentar, nos proteger do frio e assim por diante. As sensações nos informam sobre nossas necessidades.

Quando vivemos uma situação desafiadora, em momentos de êxito ou diante de uma memória ou um pensamento, várias sensações podem ser desencadeadas em conjunto, como uma sinfonia em que vários instrumentos emitem cada qual um som diferente, mas, juntos, produzem uma música específica. Essa música é a emoção. Cada emoção possui um ritmo e uma melodia própria, que resulta das sensações que são disparadas em conjunto a partir de um estímulo que pode vir de fora ou de dentro de nós. Cada música emocional receberá uma categoria de acordo com o seu ritmo e melodia: medo, raiva, alegria, tristeza, aversão. Emoção, portanto, é uma experiência do corpo. Quando elas chegam, ainda não há interferência da razão.

Sentimentos, por sua vez, são fenômenos que pertencem a outra dimensão: a mente. Pode parecer estranho pensar que sentimentos são fenômenos mentais, mas os sentimentos nascem quando a emoção ganha significado. Esses significados que a mente atribui ao que está acontecendo no corpo são baseados tanto em nossa memória explícita: o que conhecemos, o que já vivemos, nossas crenças, valores e interpretações; quanto em nossas memórias implícitas: aquilo sobre nós que não temos clara consciência, mas que deixou registros em nosso corpo e deflagra sensações. As emoções básicas acrescidas de significado podem, então, se ramificar em uma lista quase infinita de sentimentos: ciúme, inveja, paz, compaixão, tédio, calma, decepção, curiosidade, ansiedade…

Ressalto que não é o nome dado à experiência que diferencia emoção de sentimento. Medo pode ser tanto uma emoção quanto um sentimento. O que diferencia é a qualidade da experiência. Imagine que você está caminhando por uma rua escura e percebe um vulto atrás de si. Nesse momento, seu coração dispara, a respiração acelera, a pupila dilata, e toda uma melodia chamada medo é tocada em seu corpo com o objetivo de te preparar para responder ao perigo. Você não controla essas reações. Elas te invadem. Você olha para trás e não tem certeza se alguém está te seguindo, acelera o passo, procura locais com melhor iluminação ou com movimentação de outras pessoas. Sua mente entrou em ação, e está interpretando a situação com base no que você já viveu, no que conhece da região em que está e no que você acredita que possa ser o vulto. Nesse momento, você vivencia não somente a emoção como também o sentimento de medo. O sentimento, é, portanto, uma emoção que foi interpretada pela mente. Na prática, as duas etapas parecem acontecer ao mesmo tempo, pois a diferença entre o que acontece no corpo (emoção) e o significado atribuído pela mente (sentimento) é de milésimos de segundos.

Os Tesouros Que Deixamos pelo Caminho

  • Como Aprender a Lidar com Nossos Traumas Pode nos Lançar em Um Resgate da Própria Potência
  • Autora: Ediane Ribeiro
  • Editora: Paidós (244 págs.; R$ 62,90)
  • Lançamento: 31/10
Como superar um trama? Psicóloga aponta caminhos em novo livro. (Imagem ilustrativa) Foto: Maridav /adobe.stock

O trauma está presente no nosso a dia a dia. Ele faz parte não só de grandes eventos que deixam marcas psicológicas, mas também pode nascer de micro interações e como reflexo de comportamentos nocivos. É isso que defende a psicóloga Ediane Ribeiro no livro Os Tesouros Que Deixamos pelo Caminho, que chega às livrarias no final de outubro pelo selo Paidós, da editora Planeta. Leia um trecho abaixo.

O subtítulo da obra já mostra o que a autora pretende apresentar: ‘Como Aprender a Lidar com Nossos Traumas Pode nos Lançar em Um Resgate da Própria Potência’. Especialista em trauma e regulação emocional, Ediane propõe uma reflexão sobre os temas. Ela reforça que o trauma faz parte da vida, mas que há caminhos para que ele não seja um paralisador na trajetória de alguém.

A psicóloga, que acumula mais de 200 mil seguidores no Instagram e também é palestrante, faz uma mescla entre suas próprias experiências como mulher negra e seus conhecimentos teóricos e científicos para abordar temas como hipervigilância, dissociação, traumas transgeracionais, trauma racial, estresse, compulsões e dependência emocional.

“O que eu espero mesmo é que Os tesouros que deixamos pelo caminho chegue a qualquer pessoa que possa se beneficiar com um relato sincero e confessional da combinação entre conteúdo técnico, experiências pessoais e tudo mais que me faz escolher o trauma como área de estudo, como umas das lentes para olhar os fenômenos humanos, mas principalmente como um caminho para acessarmos nossa potência escondida pela dor”, explica ela, no começo da obra.

Ediane Ribeiro, psicóloga e autora de 'Os Tesouros que Deixamos Pelo Caminho' (Paidós). Foto: Ediane Ribeiro/Acervo pessoal

No trecho abaixo, ela fala sobre a desumanização como ferramento do racismo, a diferença entre trauma e traumatização e apresenta exemplos de como um evento traumático pode ter efeitos diferentes em cada pessoa. Confira:

Leia trecho de ‘Os Tesouros Que Deixamos Pelo Caminho’

Ancestralidade como antídoto para a desumanização

Em um dos seus estudos na Universidade da Califórnia, o PhD em psicologia Phillip Goff pediu a policiais e também a mulheres brancas universitárias que julgassem fotos de crianças brancas e negras quanto à idade. As crianças tinham, em média, 10 anos. Um dos resultados do estudo aponta que os respondentes projetaram em média quatro anos e meio a mais para as crianças negras em relação aos seus palpites para as crianças brancas. Goff também aborda nesse estudo outras projeções para meninos negros como sendo menos inocentes e mais problemáticos. Essa tendência dos respondentes do estudo Goff chama não de racismo ou preconceito, mas de desumanização.

A desumanização é mais uma das faces perversas do racismo e ocorre de diferentes formas. No estudo de Goff ele sinaliza para a distorção da percepção de alguém em função da aparência. Se eu vejo um menino de 10 anos não como uma criança, mas como um adolescente de 14, 15 anos, isso o coloca em outra fase do desenvolvimento, e ele será tratado de um jeito muito diferente, principalmente, se essa distorção está associada à criminalização dos corpos do grupo ao qual ele faz parte. É uma discriminação que leva a preocupações reais com segurança. Os casos de pessoas pretas presas injustamente por falsos reconhecimentos, por suspeitas infundadas ou assassinadas gratuitamente pela polícia são tão frequentes que os americanos criaram a expressão “The Talk” (ou “A Conversa”) para descrever a conversa que pais de filhos negros precisam ter com seus filhos sobre abordagem policial e sobre como se comportar para não ser considerado suspeito nos ambientes e ter mais chances de voltar para casa com segurança.

Mesmo sendo uma expressão americana, eu arrisco dizer que qualquer mãe ou pai de uma criança negra no Brasil sabe qual o conteúdo dessa orientação. Inclui coisas como: não correr na rua, não andar sem camisa e sem documento, evitar entrar em lojas com mochilas, não reagir se for abordado pela polícia e por aí vai. “The Talk” é apenas um dos muitos exemplos que eu poderia citar para ilustrar como um trauma histórico não integrado à consciência coletiva projeta novos traumas e aniquila potencialidades.

Imagine o que é para uma criança desde muito cedo aprender que é vista como uma ameaça e que precisa restringir seus comportamentos e sua curiosidade para não terminar em circunstâncias erradas. O acúmulo das discriminações, violências e microagressões sofridas cotidianamente causam um impacto importante no desenvolvimento cerebral dessa criança, em uma fase do desenvolvimento em que a segurança seria fundamental para direcioná-la para o entendimento de suas emoções, para a curiosidade com as descobertas e aprendizados do cotidiano, para o despertar da criatividade, construção de autoestima, aspirações de crescimento, regulação emocional, bom desenvolvimento de relações de conexão e de funções cognitivas como raciocínio lógico, atenção, controle de impulsos, planejamento e memória. Tudo isso pode se desorganizar a partir de experiências de estresse racial precoces.

Depois de tomar consciência de tudo isso e adentrar o universo do trauma, não havia outro caminho para mim senão mergulhar nas águas do trauma racial. Foi preciso me debruçar sobre autores contemporâneos do tema, como o psicoterapeuta Resmaa Menakem e a doutora Thema Bryant-Davis, e fazê-los conversar em minha mente com quem veio antes, como o psiquiatra e filósofo martinicano Frantz Fanon, autor de Peles negras, máscaras brancas, e a psicanalista e psiquiatra brasileira Neusa Santos Souza. Foi também na literatura sobre amor de bell hooks, na elegância dos textos de Djamila Ribeiro e Silvio de Almeida, na inteligência gentil dos estudos sobre afeto e amor do filósofo e professor Renato Noguera, na música, na poesia, na dança, nas religiões de matriz africana e na ciência produzida por meu povo que encontrei caminhos para me conectar com minha ancestralidade.

Uma ancestralidade diferente da distorção que aprendi na escola, quando tudo que diziam sobre nós é que éramos descendentes de pessoas escravizadas, apagando toda uma história que inclui cultura, saberes, riquezas, produção de conhecimento e criação de tecnologia dos povos africanos. Eu descobri e me reconectei à ancestralidade negra enquanto potência criativa, realizadora e digna. Com ela vieram também duas coisas que o racismo tantas vezes rouba de nós: a sensibilidade e a doçura que passaram anos bloqueadas em mim.

Por incrível que possa parecer, essa estrada do letramento racial está só no começo para mim, e todos os dias preciso dar passos em direção ao processo de cuidado das minhas dores e de aproximação intencional com outras pessoas que viviam o mesmo que eu e não estavam no meu campo de visão antes. É a busca intencional por aquilombamento enquanto lugar de estratégia, conexão e reparo; e não enquanto lugar de fuga. Dessa forma, aprendo a cada dia sobre caminhos para viver em um sistema opressivo de modo consciente, mas sem permitir que ele continuasse a usurpar minha capacidade de amar e de sonhar.

Não verei uma sociedade não racista, mas sigo caminhando diariamente nas trilhas de quem veio antes e na intenção de deixar minha semente para quem vier depois. Busco nas relações, no estudo, no legado de meus ancestrais e nos afetos os recursos para seguir minha travessia e para trabalhar junto aos meus clientes de terapia com o trauma que mais me desafia e que me confronta diariamente com minhas limitações como terapeuta: o trauma racial.

Traumatização: a ferida que não cicatrizou

É relativamente comum encontrarmos trauma sendo tratado como sinônimo de traumatização, mas há uma importante diferenciação a ser feita aqui. O significado da palavra trauma é um bom lugar para começarmos. Do ponto de vista semântico, a palavra trauma, segundo o Online Etymology Dictionary, vem do grego trauma, que significa “ferida física”. O trauma psicológico, porém, é um tipo muito específico de ferida. Ao contrário de uma ferida na pele, que podemos ver e delimitar onde começa e onde termina, o trauma psicológico é uma ferida que não enxergamos: é uma ferida interna. Isso torna mais desafiador delimitar onde começa, onde termina e quais os danos que ela causou em nossa “pele de dentro”. Assim como um corte no dedo por uma faca afiada que escapou enquanto você cortava cebolas pode fechar rápido e naturalmente, deixando uma cicatriz quase imperceptível, a ferida do trauma também pode em pouco tempo se tornar apenas uma lembrança sutil sem grandes repercussões.

Agora imagine que o local do corte no dedo seja de difícil cicatrização ou que foi um machucado mais profundo. Isso torna a recuperação mais lenta e dolorosa. A ferida pode reabrir quando pegamos um objeto ou esbarramos a mão sem querer em alguma coisa. É possível também que a cicatriz no local torne a pele dali mais áspera, rígida e um pouco diferente da do restante da mão. A traumatização é essa ferida de difícil cicatrização, que provoca dor, reabre de vez em quando e nem sempre só o tempo será suficiente para cicatrizar.

Trauma é, portanto, o conjunto de reações do corpo, do cérebro e da mente no momento em que estamos vivendo a situação desafiadora, e traumatização é quando as marcas dessa experiência em nós perduram no tempo sem serem cicatrizadas. Elas permanecem e se manifestam em forma de alterações emocionais, sintomas, mudanças de comportamento, padrões de relacionamento ou adoecimentos.

Seja um trauma consciente e marcante, como no caso dos amigos em férias, seja um trauma invisível e escondido em um relacionamento, como no caso de Lucas, o medo, emoção regente no trauma, passa a dirigir a percepção, as sensações, as escolhas e forma como lidamos com a vida.

Capa de 'Os tesouros que deixamos pelo caminho', de Ediane Ribeiro. Foto: Paidós/Divulgação

Um mesmo evento traumático, três diferentes desfechos

Carol e Letícia eram duas advogadas na casa dos 30 anos que se conheceram no escritório em que trabalhavam e, segundo elas próprias, apesar da expansão e extroversão de Carol contrastarem com a timidez e fala comedida de Letícia, as duas se aproximaram e se deram bem logo de cara. A viagem para a Tailândia era um tipo de comemoração pessoal delas.

Três anos antes, as duas se envolveram em um desastre na Região dos Lagos do Rio de Janeiro e, ao sobreviverem, combinaram de realizar seus sonhos de viagem juntas. O sudoeste asiático era um deles. Carol e Letícia passavam um feriado prolongado na cidade de Búzios quando foram surpreendidas pelo desabamento da casa em que estavam hospedadas, em decorrência das fortes chuvas, que são típicas na região. Junto com elas estava outro amigo, Pablo, que por uma feliz coincidência, sorte ou providência divina era bombeiro civil.

A amizade entre os três era marcada pelo gosto por viagens e a ideia de passarem o feriado prolongado na casa de amigos de Pablo em Búzios foi recebida com muita animação pelas duas. Como chovia muito, os amigos ficaram em casa jogando baralho, bebendo e contando histórias divertidas. Apesar da chuva ter interrompido os passeios, eles continuavam animados e felizes.

Eles se preparavam para dormir quando escutaram estrondos. “Demorei para entender o que estava acontecendo e me lembro de pouca coisa depois do forte barulho”, Letícia me contava. “Quisera eu não me lembrar”, respondeu Carol. Ela me narrou a sensação da terra faltando sob os pés; lama e objetos caindo por cima delas. De fato, era um milagre os três terem sobrevivido apenas com ferimentos leves. Escutei a história com especial atenção à diferença de reação entre eles em meio ao acidente e até a chegada do socorro.

Paralisada, Letícia não conseguia se mover e, segundo a amiga, sua expressão era “uma cara de nada”. Carol gritava por socorro e conta que achou que o coração fosse pular de tanto que batia acelerado. Ela não se esquecia da sensação de desespero que tomou conta dela. Pablo, embora também parecesse assustado, rapidamente começou a agir para tirar os três daquela situação.

Para as duas, os primeiros anos depois do desabamento foram marcados por pesadelos, crises de ansiedade e dificuldade de voltar à região. Aos poucos, com a ajuda de profissionais especializados em transtorno do estresse pós-traumático e do suporte de amigos e familiares, elas foram recuperando a rotina; os pesadelos e as crises reduziram até se tornarem praticamente inexistentes.

Por isso, a viagem à Tailândia era um tipo de comemoração da recuperação delas. Carol e Letícia ainda lidavam com alguma ansiedade e tensão associadas ao acidente, mas havia quase um ano que não tinham pesadelos e crises mais intensas, além de terem recuperado o prazer pelas viagens que tinha ficado embotado depois do episódio na Região dos Lagos. Já Pablo, na visão delas, parecia ter voltado à vida normal muito rápido depois do acidente.

Os três estavam juntos no mesmo evento traumático, mas cada um viveu um trauma diferente e nem todos ficaram traumatizados, ao menos, ao que parecia pelo relato das duas.

O fato de Pablo ser bombeiro civil o deixava familiarizado com os fragmentos sensoriais de um desastre como aquele. O som dos estrondos, as imagens de tudo revirado, os cheiros e texturas da lama cobrindo tudo não eram novidade para o cérebro dele. Além disso, ele era treinado para agir nesse tipo de situação, reduzindo sua sensação de estar sem saída e, portanto, reduzindo o desamparo.

Se as amigas estiverem certas sobre a rápida recuperação de Pablo pós-acidente, é provável que tudo isso tenha facilitado o processamento daquela experiência pelo corpo, cérebro e mente dele. Em uma metáfora simples, é como se existisse uma gaveta no cérebro de Pablo da qual ele podia tirar a legenda sobre o que estava acontecendo e as ferramentas para lidar com a situação. Ao invés de experimentar a sensação de total inescapabilidade, ele foi tomado pela ação para tirá-los dali.

Já no cérebro de Letícia e de Carol, ao que parece, não havia nada para ajudá-las a legendar e lidar com aquela experiência, e tudo foi absorvido como fragmentos soltos de sons, cheiros, imagens e sensações de uma situação-limite, inusitada e que as deixava à mercê da própria sorte. A carga de estresse recebida pelos três até pode ter sido a mesma, mas em Pablo gerou menos sobrecarga do que em Carol e Letícia.

Mas havia ainda uma diferença entre elas. Carol entrou em um estado de ansiedade e agitação máximas, que a fez gritar, tremer, suar e se desesperar. Essa carga de estresse recebida pelo corpo de Carol não parece ter encontrado uma descarga equivalente depois do acidente, e continuou a produzir resposta ao estresse, gerando pesadelos e desorganização do seu sistema de alerta. Depois do acidente, era como se, de uma hora para outra, ela fosse “sugada” de volta ao desabamento e por alguns instantes o seu cérebro perdesse a capacidade de diferenciar passado de presente, provocando reações que se assemelhavam a uma crise de ansiedade.

Já Letícia parece ter entrado em outro tipo de resposta de sobrevivência: o congelamento. Com uma sobrecarga tão elevada quanto ou talvez maior que a de Carol, seu cérebro precisou “desligar” algumas áreas para sobreviver àquele trauma, fazendo-a, inclusive, se esquecer do que viveu, mas deixando marcas como alterações no sono, na qualidade de vida, o aumento da angústia e da sensação de insegurança mesmo em situações de lazer e relaxamento e uma certa anestesia emocional em situações do cotidiano.

Três experiências traumáticas diferentes vividas durante um mesmo episódio e com desfechos distintos.

Sinto, logo existo: sensação, emoção e sentimento

Este é um ponto importante da nossa travessia, por isso vamos fazer uma pausa para explorar a paisagem que dá contorno às nossas vivências traumáticas: o sentir.

Inspirada em António Damásio, um dos neurocientistas mais respeitados da atualidade e conhecido por seu trabalho com emoções, abordarei três palavras que se relacionam com o universo do sentir: emoção, sensação e sentimento.

Não precisamos da mediação da linguagem para sentir; nós simplesmente sentimos, mesmo que não consigamos colocar palavras em nosso sentir. Mas quando ele ganha legendas que adicionam sentido à experiência, damos um importante passo para elaborar, processar e liberar nossas emoções.

Aprendi com Damásio a pensar emoção, sensação e sentimento como informações. São informações de qualidades similares, mas com níveis de precisão diferentes. Tudo começa com nossos sentidos. Quem, como eu, cursou os ensinos fundamental e médio há mais de vinte anos provavelmente aprendeu na escola que temos cinco sentidos: visão, audição, paladar, tato e olfato. Hoje em dia, sabemos que temos bem mais que cinco sentidos. Só para citar alguns exemplos: sede, fome e dor também são sentidos, só que, diferente dos cinco anteriores, captam informação do nosso mundo interno e não do mundo externo. Os sentidos nos ajudam a perceber o mundo, mas perceber não é sentir. Emoções, sensações e sentimentos são interpretações do que é captado por nossos sentidos. Elas dizem respeito ao nosso mundo interior. São os nossos movimentos internos.

Alguns desses movimentos internos nos informam de alterações em nossa fisiologia: se os músculos estão tensos ou relaxados, se o estômago está cheio ou vazio, se o coração está acelerado ou tranquilo, se a respiração está fluida e calma ou entrecortada e difícil, se o pescoço dói. Essas informações com um grau de precisão física são as nossas sensações, e elas nos ajudam a saber como está nosso organismo ou partes dele, o que é essencial para que possamos nos direcionar para aquilo que necessitamos a cada momento, como relaxar, nos alimentar, nos proteger do frio e assim por diante. As sensações nos informam sobre nossas necessidades.

Quando vivemos uma situação desafiadora, em momentos de êxito ou diante de uma memória ou um pensamento, várias sensações podem ser desencadeadas em conjunto, como uma sinfonia em que vários instrumentos emitem cada qual um som diferente, mas, juntos, produzem uma música específica. Essa música é a emoção. Cada emoção possui um ritmo e uma melodia própria, que resulta das sensações que são disparadas em conjunto a partir de um estímulo que pode vir de fora ou de dentro de nós. Cada música emocional receberá uma categoria de acordo com o seu ritmo e melodia: medo, raiva, alegria, tristeza, aversão. Emoção, portanto, é uma experiência do corpo. Quando elas chegam, ainda não há interferência da razão.

Sentimentos, por sua vez, são fenômenos que pertencem a outra dimensão: a mente. Pode parecer estranho pensar que sentimentos são fenômenos mentais, mas os sentimentos nascem quando a emoção ganha significado. Esses significados que a mente atribui ao que está acontecendo no corpo são baseados tanto em nossa memória explícita: o que conhecemos, o que já vivemos, nossas crenças, valores e interpretações; quanto em nossas memórias implícitas: aquilo sobre nós que não temos clara consciência, mas que deixou registros em nosso corpo e deflagra sensações. As emoções básicas acrescidas de significado podem, então, se ramificar em uma lista quase infinita de sentimentos: ciúme, inveja, paz, compaixão, tédio, calma, decepção, curiosidade, ansiedade…

Ressalto que não é o nome dado à experiência que diferencia emoção de sentimento. Medo pode ser tanto uma emoção quanto um sentimento. O que diferencia é a qualidade da experiência. Imagine que você está caminhando por uma rua escura e percebe um vulto atrás de si. Nesse momento, seu coração dispara, a respiração acelera, a pupila dilata, e toda uma melodia chamada medo é tocada em seu corpo com o objetivo de te preparar para responder ao perigo. Você não controla essas reações. Elas te invadem. Você olha para trás e não tem certeza se alguém está te seguindo, acelera o passo, procura locais com melhor iluminação ou com movimentação de outras pessoas. Sua mente entrou em ação, e está interpretando a situação com base no que você já viveu, no que conhece da região em que está e no que você acredita que possa ser o vulto. Nesse momento, você vivencia não somente a emoção como também o sentimento de medo. O sentimento, é, portanto, uma emoção que foi interpretada pela mente. Na prática, as duas etapas parecem acontecer ao mesmo tempo, pois a diferença entre o que acontece no corpo (emoção) e o significado atribuído pela mente (sentimento) é de milésimos de segundos.

Os Tesouros Que Deixamos pelo Caminho

  • Como Aprender a Lidar com Nossos Traumas Pode nos Lançar em Um Resgate da Própria Potência
  • Autora: Ediane Ribeiro
  • Editora: Paidós (244 págs.; R$ 62,90)
  • Lançamento: 31/10
Como superar um trama? Psicóloga aponta caminhos em novo livro. (Imagem ilustrativa) Foto: Maridav /adobe.stock

O trauma está presente no nosso a dia a dia. Ele faz parte não só de grandes eventos que deixam marcas psicológicas, mas também pode nascer de micro interações e como reflexo de comportamentos nocivos. É isso que defende a psicóloga Ediane Ribeiro no livro Os Tesouros Que Deixamos pelo Caminho, que chega às livrarias no final de outubro pelo selo Paidós, da editora Planeta. Leia um trecho abaixo.

O subtítulo da obra já mostra o que a autora pretende apresentar: ‘Como Aprender a Lidar com Nossos Traumas Pode nos Lançar em Um Resgate da Própria Potência’. Especialista em trauma e regulação emocional, Ediane propõe uma reflexão sobre os temas. Ela reforça que o trauma faz parte da vida, mas que há caminhos para que ele não seja um paralisador na trajetória de alguém.

A psicóloga, que acumula mais de 200 mil seguidores no Instagram e também é palestrante, faz uma mescla entre suas próprias experiências como mulher negra e seus conhecimentos teóricos e científicos para abordar temas como hipervigilância, dissociação, traumas transgeracionais, trauma racial, estresse, compulsões e dependência emocional.

“O que eu espero mesmo é que Os tesouros que deixamos pelo caminho chegue a qualquer pessoa que possa se beneficiar com um relato sincero e confessional da combinação entre conteúdo técnico, experiências pessoais e tudo mais que me faz escolher o trauma como área de estudo, como umas das lentes para olhar os fenômenos humanos, mas principalmente como um caminho para acessarmos nossa potência escondida pela dor”, explica ela, no começo da obra.

Ediane Ribeiro, psicóloga e autora de 'Os Tesouros que Deixamos Pelo Caminho' (Paidós). Foto: Ediane Ribeiro/Acervo pessoal

No trecho abaixo, ela fala sobre a desumanização como ferramento do racismo, a diferença entre trauma e traumatização e apresenta exemplos de como um evento traumático pode ter efeitos diferentes em cada pessoa. Confira:

Leia trecho de ‘Os Tesouros Que Deixamos Pelo Caminho’

Ancestralidade como antídoto para a desumanização

Em um dos seus estudos na Universidade da Califórnia, o PhD em psicologia Phillip Goff pediu a policiais e também a mulheres brancas universitárias que julgassem fotos de crianças brancas e negras quanto à idade. As crianças tinham, em média, 10 anos. Um dos resultados do estudo aponta que os respondentes projetaram em média quatro anos e meio a mais para as crianças negras em relação aos seus palpites para as crianças brancas. Goff também aborda nesse estudo outras projeções para meninos negros como sendo menos inocentes e mais problemáticos. Essa tendência dos respondentes do estudo Goff chama não de racismo ou preconceito, mas de desumanização.

A desumanização é mais uma das faces perversas do racismo e ocorre de diferentes formas. No estudo de Goff ele sinaliza para a distorção da percepção de alguém em função da aparência. Se eu vejo um menino de 10 anos não como uma criança, mas como um adolescente de 14, 15 anos, isso o coloca em outra fase do desenvolvimento, e ele será tratado de um jeito muito diferente, principalmente, se essa distorção está associada à criminalização dos corpos do grupo ao qual ele faz parte. É uma discriminação que leva a preocupações reais com segurança. Os casos de pessoas pretas presas injustamente por falsos reconhecimentos, por suspeitas infundadas ou assassinadas gratuitamente pela polícia são tão frequentes que os americanos criaram a expressão “The Talk” (ou “A Conversa”) para descrever a conversa que pais de filhos negros precisam ter com seus filhos sobre abordagem policial e sobre como se comportar para não ser considerado suspeito nos ambientes e ter mais chances de voltar para casa com segurança.

Mesmo sendo uma expressão americana, eu arrisco dizer que qualquer mãe ou pai de uma criança negra no Brasil sabe qual o conteúdo dessa orientação. Inclui coisas como: não correr na rua, não andar sem camisa e sem documento, evitar entrar em lojas com mochilas, não reagir se for abordado pela polícia e por aí vai. “The Talk” é apenas um dos muitos exemplos que eu poderia citar para ilustrar como um trauma histórico não integrado à consciência coletiva projeta novos traumas e aniquila potencialidades.

Imagine o que é para uma criança desde muito cedo aprender que é vista como uma ameaça e que precisa restringir seus comportamentos e sua curiosidade para não terminar em circunstâncias erradas. O acúmulo das discriminações, violências e microagressões sofridas cotidianamente causam um impacto importante no desenvolvimento cerebral dessa criança, em uma fase do desenvolvimento em que a segurança seria fundamental para direcioná-la para o entendimento de suas emoções, para a curiosidade com as descobertas e aprendizados do cotidiano, para o despertar da criatividade, construção de autoestima, aspirações de crescimento, regulação emocional, bom desenvolvimento de relações de conexão e de funções cognitivas como raciocínio lógico, atenção, controle de impulsos, planejamento e memória. Tudo isso pode se desorganizar a partir de experiências de estresse racial precoces.

Depois de tomar consciência de tudo isso e adentrar o universo do trauma, não havia outro caminho para mim senão mergulhar nas águas do trauma racial. Foi preciso me debruçar sobre autores contemporâneos do tema, como o psicoterapeuta Resmaa Menakem e a doutora Thema Bryant-Davis, e fazê-los conversar em minha mente com quem veio antes, como o psiquiatra e filósofo martinicano Frantz Fanon, autor de Peles negras, máscaras brancas, e a psicanalista e psiquiatra brasileira Neusa Santos Souza. Foi também na literatura sobre amor de bell hooks, na elegância dos textos de Djamila Ribeiro e Silvio de Almeida, na inteligência gentil dos estudos sobre afeto e amor do filósofo e professor Renato Noguera, na música, na poesia, na dança, nas religiões de matriz africana e na ciência produzida por meu povo que encontrei caminhos para me conectar com minha ancestralidade.

Uma ancestralidade diferente da distorção que aprendi na escola, quando tudo que diziam sobre nós é que éramos descendentes de pessoas escravizadas, apagando toda uma história que inclui cultura, saberes, riquezas, produção de conhecimento e criação de tecnologia dos povos africanos. Eu descobri e me reconectei à ancestralidade negra enquanto potência criativa, realizadora e digna. Com ela vieram também duas coisas que o racismo tantas vezes rouba de nós: a sensibilidade e a doçura que passaram anos bloqueadas em mim.

Por incrível que possa parecer, essa estrada do letramento racial está só no começo para mim, e todos os dias preciso dar passos em direção ao processo de cuidado das minhas dores e de aproximação intencional com outras pessoas que viviam o mesmo que eu e não estavam no meu campo de visão antes. É a busca intencional por aquilombamento enquanto lugar de estratégia, conexão e reparo; e não enquanto lugar de fuga. Dessa forma, aprendo a cada dia sobre caminhos para viver em um sistema opressivo de modo consciente, mas sem permitir que ele continuasse a usurpar minha capacidade de amar e de sonhar.

Não verei uma sociedade não racista, mas sigo caminhando diariamente nas trilhas de quem veio antes e na intenção de deixar minha semente para quem vier depois. Busco nas relações, no estudo, no legado de meus ancestrais e nos afetos os recursos para seguir minha travessia e para trabalhar junto aos meus clientes de terapia com o trauma que mais me desafia e que me confronta diariamente com minhas limitações como terapeuta: o trauma racial.

Traumatização: a ferida que não cicatrizou

É relativamente comum encontrarmos trauma sendo tratado como sinônimo de traumatização, mas há uma importante diferenciação a ser feita aqui. O significado da palavra trauma é um bom lugar para começarmos. Do ponto de vista semântico, a palavra trauma, segundo o Online Etymology Dictionary, vem do grego trauma, que significa “ferida física”. O trauma psicológico, porém, é um tipo muito específico de ferida. Ao contrário de uma ferida na pele, que podemos ver e delimitar onde começa e onde termina, o trauma psicológico é uma ferida que não enxergamos: é uma ferida interna. Isso torna mais desafiador delimitar onde começa, onde termina e quais os danos que ela causou em nossa “pele de dentro”. Assim como um corte no dedo por uma faca afiada que escapou enquanto você cortava cebolas pode fechar rápido e naturalmente, deixando uma cicatriz quase imperceptível, a ferida do trauma também pode em pouco tempo se tornar apenas uma lembrança sutil sem grandes repercussões.

Agora imagine que o local do corte no dedo seja de difícil cicatrização ou que foi um machucado mais profundo. Isso torna a recuperação mais lenta e dolorosa. A ferida pode reabrir quando pegamos um objeto ou esbarramos a mão sem querer em alguma coisa. É possível também que a cicatriz no local torne a pele dali mais áspera, rígida e um pouco diferente da do restante da mão. A traumatização é essa ferida de difícil cicatrização, que provoca dor, reabre de vez em quando e nem sempre só o tempo será suficiente para cicatrizar.

Trauma é, portanto, o conjunto de reações do corpo, do cérebro e da mente no momento em que estamos vivendo a situação desafiadora, e traumatização é quando as marcas dessa experiência em nós perduram no tempo sem serem cicatrizadas. Elas permanecem e se manifestam em forma de alterações emocionais, sintomas, mudanças de comportamento, padrões de relacionamento ou adoecimentos.

Seja um trauma consciente e marcante, como no caso dos amigos em férias, seja um trauma invisível e escondido em um relacionamento, como no caso de Lucas, o medo, emoção regente no trauma, passa a dirigir a percepção, as sensações, as escolhas e forma como lidamos com a vida.

Capa de 'Os tesouros que deixamos pelo caminho', de Ediane Ribeiro. Foto: Paidós/Divulgação

Um mesmo evento traumático, três diferentes desfechos

Carol e Letícia eram duas advogadas na casa dos 30 anos que se conheceram no escritório em que trabalhavam e, segundo elas próprias, apesar da expansão e extroversão de Carol contrastarem com a timidez e fala comedida de Letícia, as duas se aproximaram e se deram bem logo de cara. A viagem para a Tailândia era um tipo de comemoração pessoal delas.

Três anos antes, as duas se envolveram em um desastre na Região dos Lagos do Rio de Janeiro e, ao sobreviverem, combinaram de realizar seus sonhos de viagem juntas. O sudoeste asiático era um deles. Carol e Letícia passavam um feriado prolongado na cidade de Búzios quando foram surpreendidas pelo desabamento da casa em que estavam hospedadas, em decorrência das fortes chuvas, que são típicas na região. Junto com elas estava outro amigo, Pablo, que por uma feliz coincidência, sorte ou providência divina era bombeiro civil.

A amizade entre os três era marcada pelo gosto por viagens e a ideia de passarem o feriado prolongado na casa de amigos de Pablo em Búzios foi recebida com muita animação pelas duas. Como chovia muito, os amigos ficaram em casa jogando baralho, bebendo e contando histórias divertidas. Apesar da chuva ter interrompido os passeios, eles continuavam animados e felizes.

Eles se preparavam para dormir quando escutaram estrondos. “Demorei para entender o que estava acontecendo e me lembro de pouca coisa depois do forte barulho”, Letícia me contava. “Quisera eu não me lembrar”, respondeu Carol. Ela me narrou a sensação da terra faltando sob os pés; lama e objetos caindo por cima delas. De fato, era um milagre os três terem sobrevivido apenas com ferimentos leves. Escutei a história com especial atenção à diferença de reação entre eles em meio ao acidente e até a chegada do socorro.

Paralisada, Letícia não conseguia se mover e, segundo a amiga, sua expressão era “uma cara de nada”. Carol gritava por socorro e conta que achou que o coração fosse pular de tanto que batia acelerado. Ela não se esquecia da sensação de desespero que tomou conta dela. Pablo, embora também parecesse assustado, rapidamente começou a agir para tirar os três daquela situação.

Para as duas, os primeiros anos depois do desabamento foram marcados por pesadelos, crises de ansiedade e dificuldade de voltar à região. Aos poucos, com a ajuda de profissionais especializados em transtorno do estresse pós-traumático e do suporte de amigos e familiares, elas foram recuperando a rotina; os pesadelos e as crises reduziram até se tornarem praticamente inexistentes.

Por isso, a viagem à Tailândia era um tipo de comemoração da recuperação delas. Carol e Letícia ainda lidavam com alguma ansiedade e tensão associadas ao acidente, mas havia quase um ano que não tinham pesadelos e crises mais intensas, além de terem recuperado o prazer pelas viagens que tinha ficado embotado depois do episódio na Região dos Lagos. Já Pablo, na visão delas, parecia ter voltado à vida normal muito rápido depois do acidente.

Os três estavam juntos no mesmo evento traumático, mas cada um viveu um trauma diferente e nem todos ficaram traumatizados, ao menos, ao que parecia pelo relato das duas.

O fato de Pablo ser bombeiro civil o deixava familiarizado com os fragmentos sensoriais de um desastre como aquele. O som dos estrondos, as imagens de tudo revirado, os cheiros e texturas da lama cobrindo tudo não eram novidade para o cérebro dele. Além disso, ele era treinado para agir nesse tipo de situação, reduzindo sua sensação de estar sem saída e, portanto, reduzindo o desamparo.

Se as amigas estiverem certas sobre a rápida recuperação de Pablo pós-acidente, é provável que tudo isso tenha facilitado o processamento daquela experiência pelo corpo, cérebro e mente dele. Em uma metáfora simples, é como se existisse uma gaveta no cérebro de Pablo da qual ele podia tirar a legenda sobre o que estava acontecendo e as ferramentas para lidar com a situação. Ao invés de experimentar a sensação de total inescapabilidade, ele foi tomado pela ação para tirá-los dali.

Já no cérebro de Letícia e de Carol, ao que parece, não havia nada para ajudá-las a legendar e lidar com aquela experiência, e tudo foi absorvido como fragmentos soltos de sons, cheiros, imagens e sensações de uma situação-limite, inusitada e que as deixava à mercê da própria sorte. A carga de estresse recebida pelos três até pode ter sido a mesma, mas em Pablo gerou menos sobrecarga do que em Carol e Letícia.

Mas havia ainda uma diferença entre elas. Carol entrou em um estado de ansiedade e agitação máximas, que a fez gritar, tremer, suar e se desesperar. Essa carga de estresse recebida pelo corpo de Carol não parece ter encontrado uma descarga equivalente depois do acidente, e continuou a produzir resposta ao estresse, gerando pesadelos e desorganização do seu sistema de alerta. Depois do acidente, era como se, de uma hora para outra, ela fosse “sugada” de volta ao desabamento e por alguns instantes o seu cérebro perdesse a capacidade de diferenciar passado de presente, provocando reações que se assemelhavam a uma crise de ansiedade.

Já Letícia parece ter entrado em outro tipo de resposta de sobrevivência: o congelamento. Com uma sobrecarga tão elevada quanto ou talvez maior que a de Carol, seu cérebro precisou “desligar” algumas áreas para sobreviver àquele trauma, fazendo-a, inclusive, se esquecer do que viveu, mas deixando marcas como alterações no sono, na qualidade de vida, o aumento da angústia e da sensação de insegurança mesmo em situações de lazer e relaxamento e uma certa anestesia emocional em situações do cotidiano.

Três experiências traumáticas diferentes vividas durante um mesmo episódio e com desfechos distintos.

Sinto, logo existo: sensação, emoção e sentimento

Este é um ponto importante da nossa travessia, por isso vamos fazer uma pausa para explorar a paisagem que dá contorno às nossas vivências traumáticas: o sentir.

Inspirada em António Damásio, um dos neurocientistas mais respeitados da atualidade e conhecido por seu trabalho com emoções, abordarei três palavras que se relacionam com o universo do sentir: emoção, sensação e sentimento.

Não precisamos da mediação da linguagem para sentir; nós simplesmente sentimos, mesmo que não consigamos colocar palavras em nosso sentir. Mas quando ele ganha legendas que adicionam sentido à experiência, damos um importante passo para elaborar, processar e liberar nossas emoções.

Aprendi com Damásio a pensar emoção, sensação e sentimento como informações. São informações de qualidades similares, mas com níveis de precisão diferentes. Tudo começa com nossos sentidos. Quem, como eu, cursou os ensinos fundamental e médio há mais de vinte anos provavelmente aprendeu na escola que temos cinco sentidos: visão, audição, paladar, tato e olfato. Hoje em dia, sabemos que temos bem mais que cinco sentidos. Só para citar alguns exemplos: sede, fome e dor também são sentidos, só que, diferente dos cinco anteriores, captam informação do nosso mundo interno e não do mundo externo. Os sentidos nos ajudam a perceber o mundo, mas perceber não é sentir. Emoções, sensações e sentimentos são interpretações do que é captado por nossos sentidos. Elas dizem respeito ao nosso mundo interior. São os nossos movimentos internos.

Alguns desses movimentos internos nos informam de alterações em nossa fisiologia: se os músculos estão tensos ou relaxados, se o estômago está cheio ou vazio, se o coração está acelerado ou tranquilo, se a respiração está fluida e calma ou entrecortada e difícil, se o pescoço dói. Essas informações com um grau de precisão física são as nossas sensações, e elas nos ajudam a saber como está nosso organismo ou partes dele, o que é essencial para que possamos nos direcionar para aquilo que necessitamos a cada momento, como relaxar, nos alimentar, nos proteger do frio e assim por diante. As sensações nos informam sobre nossas necessidades.

Quando vivemos uma situação desafiadora, em momentos de êxito ou diante de uma memória ou um pensamento, várias sensações podem ser desencadeadas em conjunto, como uma sinfonia em que vários instrumentos emitem cada qual um som diferente, mas, juntos, produzem uma música específica. Essa música é a emoção. Cada emoção possui um ritmo e uma melodia própria, que resulta das sensações que são disparadas em conjunto a partir de um estímulo que pode vir de fora ou de dentro de nós. Cada música emocional receberá uma categoria de acordo com o seu ritmo e melodia: medo, raiva, alegria, tristeza, aversão. Emoção, portanto, é uma experiência do corpo. Quando elas chegam, ainda não há interferência da razão.

Sentimentos, por sua vez, são fenômenos que pertencem a outra dimensão: a mente. Pode parecer estranho pensar que sentimentos são fenômenos mentais, mas os sentimentos nascem quando a emoção ganha significado. Esses significados que a mente atribui ao que está acontecendo no corpo são baseados tanto em nossa memória explícita: o que conhecemos, o que já vivemos, nossas crenças, valores e interpretações; quanto em nossas memórias implícitas: aquilo sobre nós que não temos clara consciência, mas que deixou registros em nosso corpo e deflagra sensações. As emoções básicas acrescidas de significado podem, então, se ramificar em uma lista quase infinita de sentimentos: ciúme, inveja, paz, compaixão, tédio, calma, decepção, curiosidade, ansiedade…

Ressalto que não é o nome dado à experiência que diferencia emoção de sentimento. Medo pode ser tanto uma emoção quanto um sentimento. O que diferencia é a qualidade da experiência. Imagine que você está caminhando por uma rua escura e percebe um vulto atrás de si. Nesse momento, seu coração dispara, a respiração acelera, a pupila dilata, e toda uma melodia chamada medo é tocada em seu corpo com o objetivo de te preparar para responder ao perigo. Você não controla essas reações. Elas te invadem. Você olha para trás e não tem certeza se alguém está te seguindo, acelera o passo, procura locais com melhor iluminação ou com movimentação de outras pessoas. Sua mente entrou em ação, e está interpretando a situação com base no que você já viveu, no que conhece da região em que está e no que você acredita que possa ser o vulto. Nesse momento, você vivencia não somente a emoção como também o sentimento de medo. O sentimento, é, portanto, uma emoção que foi interpretada pela mente. Na prática, as duas etapas parecem acontecer ao mesmo tempo, pois a diferença entre o que acontece no corpo (emoção) e o significado atribuído pela mente (sentimento) é de milésimos de segundos.

Os Tesouros Que Deixamos pelo Caminho

  • Como Aprender a Lidar com Nossos Traumas Pode nos Lançar em Um Resgate da Própria Potência
  • Autora: Ediane Ribeiro
  • Editora: Paidós (244 págs.; R$ 62,90)
  • Lançamento: 31/10
Como superar um trama? Psicóloga aponta caminhos em novo livro. (Imagem ilustrativa) Foto: Maridav /adobe.stock

O trauma está presente no nosso a dia a dia. Ele faz parte não só de grandes eventos que deixam marcas psicológicas, mas também pode nascer de micro interações e como reflexo de comportamentos nocivos. É isso que defende a psicóloga Ediane Ribeiro no livro Os Tesouros Que Deixamos pelo Caminho, que chega às livrarias no final de outubro pelo selo Paidós, da editora Planeta. Leia um trecho abaixo.

O subtítulo da obra já mostra o que a autora pretende apresentar: ‘Como Aprender a Lidar com Nossos Traumas Pode nos Lançar em Um Resgate da Própria Potência’. Especialista em trauma e regulação emocional, Ediane propõe uma reflexão sobre os temas. Ela reforça que o trauma faz parte da vida, mas que há caminhos para que ele não seja um paralisador na trajetória de alguém.

A psicóloga, que acumula mais de 200 mil seguidores no Instagram e também é palestrante, faz uma mescla entre suas próprias experiências como mulher negra e seus conhecimentos teóricos e científicos para abordar temas como hipervigilância, dissociação, traumas transgeracionais, trauma racial, estresse, compulsões e dependência emocional.

“O que eu espero mesmo é que Os tesouros que deixamos pelo caminho chegue a qualquer pessoa que possa se beneficiar com um relato sincero e confessional da combinação entre conteúdo técnico, experiências pessoais e tudo mais que me faz escolher o trauma como área de estudo, como umas das lentes para olhar os fenômenos humanos, mas principalmente como um caminho para acessarmos nossa potência escondida pela dor”, explica ela, no começo da obra.

Ediane Ribeiro, psicóloga e autora de 'Os Tesouros que Deixamos Pelo Caminho' (Paidós). Foto: Ediane Ribeiro/Acervo pessoal

No trecho abaixo, ela fala sobre a desumanização como ferramento do racismo, a diferença entre trauma e traumatização e apresenta exemplos de como um evento traumático pode ter efeitos diferentes em cada pessoa. Confira:

Leia trecho de ‘Os Tesouros Que Deixamos Pelo Caminho’

Ancestralidade como antídoto para a desumanização

Em um dos seus estudos na Universidade da Califórnia, o PhD em psicologia Phillip Goff pediu a policiais e também a mulheres brancas universitárias que julgassem fotos de crianças brancas e negras quanto à idade. As crianças tinham, em média, 10 anos. Um dos resultados do estudo aponta que os respondentes projetaram em média quatro anos e meio a mais para as crianças negras em relação aos seus palpites para as crianças brancas. Goff também aborda nesse estudo outras projeções para meninos negros como sendo menos inocentes e mais problemáticos. Essa tendência dos respondentes do estudo Goff chama não de racismo ou preconceito, mas de desumanização.

A desumanização é mais uma das faces perversas do racismo e ocorre de diferentes formas. No estudo de Goff ele sinaliza para a distorção da percepção de alguém em função da aparência. Se eu vejo um menino de 10 anos não como uma criança, mas como um adolescente de 14, 15 anos, isso o coloca em outra fase do desenvolvimento, e ele será tratado de um jeito muito diferente, principalmente, se essa distorção está associada à criminalização dos corpos do grupo ao qual ele faz parte. É uma discriminação que leva a preocupações reais com segurança. Os casos de pessoas pretas presas injustamente por falsos reconhecimentos, por suspeitas infundadas ou assassinadas gratuitamente pela polícia são tão frequentes que os americanos criaram a expressão “The Talk” (ou “A Conversa”) para descrever a conversa que pais de filhos negros precisam ter com seus filhos sobre abordagem policial e sobre como se comportar para não ser considerado suspeito nos ambientes e ter mais chances de voltar para casa com segurança.

Mesmo sendo uma expressão americana, eu arrisco dizer que qualquer mãe ou pai de uma criança negra no Brasil sabe qual o conteúdo dessa orientação. Inclui coisas como: não correr na rua, não andar sem camisa e sem documento, evitar entrar em lojas com mochilas, não reagir se for abordado pela polícia e por aí vai. “The Talk” é apenas um dos muitos exemplos que eu poderia citar para ilustrar como um trauma histórico não integrado à consciência coletiva projeta novos traumas e aniquila potencialidades.

Imagine o que é para uma criança desde muito cedo aprender que é vista como uma ameaça e que precisa restringir seus comportamentos e sua curiosidade para não terminar em circunstâncias erradas. O acúmulo das discriminações, violências e microagressões sofridas cotidianamente causam um impacto importante no desenvolvimento cerebral dessa criança, em uma fase do desenvolvimento em que a segurança seria fundamental para direcioná-la para o entendimento de suas emoções, para a curiosidade com as descobertas e aprendizados do cotidiano, para o despertar da criatividade, construção de autoestima, aspirações de crescimento, regulação emocional, bom desenvolvimento de relações de conexão e de funções cognitivas como raciocínio lógico, atenção, controle de impulsos, planejamento e memória. Tudo isso pode se desorganizar a partir de experiências de estresse racial precoces.

Depois de tomar consciência de tudo isso e adentrar o universo do trauma, não havia outro caminho para mim senão mergulhar nas águas do trauma racial. Foi preciso me debruçar sobre autores contemporâneos do tema, como o psicoterapeuta Resmaa Menakem e a doutora Thema Bryant-Davis, e fazê-los conversar em minha mente com quem veio antes, como o psiquiatra e filósofo martinicano Frantz Fanon, autor de Peles negras, máscaras brancas, e a psicanalista e psiquiatra brasileira Neusa Santos Souza. Foi também na literatura sobre amor de bell hooks, na elegância dos textos de Djamila Ribeiro e Silvio de Almeida, na inteligência gentil dos estudos sobre afeto e amor do filósofo e professor Renato Noguera, na música, na poesia, na dança, nas religiões de matriz africana e na ciência produzida por meu povo que encontrei caminhos para me conectar com minha ancestralidade.

Uma ancestralidade diferente da distorção que aprendi na escola, quando tudo que diziam sobre nós é que éramos descendentes de pessoas escravizadas, apagando toda uma história que inclui cultura, saberes, riquezas, produção de conhecimento e criação de tecnologia dos povos africanos. Eu descobri e me reconectei à ancestralidade negra enquanto potência criativa, realizadora e digna. Com ela vieram também duas coisas que o racismo tantas vezes rouba de nós: a sensibilidade e a doçura que passaram anos bloqueadas em mim.

Por incrível que possa parecer, essa estrada do letramento racial está só no começo para mim, e todos os dias preciso dar passos em direção ao processo de cuidado das minhas dores e de aproximação intencional com outras pessoas que viviam o mesmo que eu e não estavam no meu campo de visão antes. É a busca intencional por aquilombamento enquanto lugar de estratégia, conexão e reparo; e não enquanto lugar de fuga. Dessa forma, aprendo a cada dia sobre caminhos para viver em um sistema opressivo de modo consciente, mas sem permitir que ele continuasse a usurpar minha capacidade de amar e de sonhar.

Não verei uma sociedade não racista, mas sigo caminhando diariamente nas trilhas de quem veio antes e na intenção de deixar minha semente para quem vier depois. Busco nas relações, no estudo, no legado de meus ancestrais e nos afetos os recursos para seguir minha travessia e para trabalhar junto aos meus clientes de terapia com o trauma que mais me desafia e que me confronta diariamente com minhas limitações como terapeuta: o trauma racial.

Traumatização: a ferida que não cicatrizou

É relativamente comum encontrarmos trauma sendo tratado como sinônimo de traumatização, mas há uma importante diferenciação a ser feita aqui. O significado da palavra trauma é um bom lugar para começarmos. Do ponto de vista semântico, a palavra trauma, segundo o Online Etymology Dictionary, vem do grego trauma, que significa “ferida física”. O trauma psicológico, porém, é um tipo muito específico de ferida. Ao contrário de uma ferida na pele, que podemos ver e delimitar onde começa e onde termina, o trauma psicológico é uma ferida que não enxergamos: é uma ferida interna. Isso torna mais desafiador delimitar onde começa, onde termina e quais os danos que ela causou em nossa “pele de dentro”. Assim como um corte no dedo por uma faca afiada que escapou enquanto você cortava cebolas pode fechar rápido e naturalmente, deixando uma cicatriz quase imperceptível, a ferida do trauma também pode em pouco tempo se tornar apenas uma lembrança sutil sem grandes repercussões.

Agora imagine que o local do corte no dedo seja de difícil cicatrização ou que foi um machucado mais profundo. Isso torna a recuperação mais lenta e dolorosa. A ferida pode reabrir quando pegamos um objeto ou esbarramos a mão sem querer em alguma coisa. É possível também que a cicatriz no local torne a pele dali mais áspera, rígida e um pouco diferente da do restante da mão. A traumatização é essa ferida de difícil cicatrização, que provoca dor, reabre de vez em quando e nem sempre só o tempo será suficiente para cicatrizar.

Trauma é, portanto, o conjunto de reações do corpo, do cérebro e da mente no momento em que estamos vivendo a situação desafiadora, e traumatização é quando as marcas dessa experiência em nós perduram no tempo sem serem cicatrizadas. Elas permanecem e se manifestam em forma de alterações emocionais, sintomas, mudanças de comportamento, padrões de relacionamento ou adoecimentos.

Seja um trauma consciente e marcante, como no caso dos amigos em férias, seja um trauma invisível e escondido em um relacionamento, como no caso de Lucas, o medo, emoção regente no trauma, passa a dirigir a percepção, as sensações, as escolhas e forma como lidamos com a vida.

Capa de 'Os tesouros que deixamos pelo caminho', de Ediane Ribeiro. Foto: Paidós/Divulgação

Um mesmo evento traumático, três diferentes desfechos

Carol e Letícia eram duas advogadas na casa dos 30 anos que se conheceram no escritório em que trabalhavam e, segundo elas próprias, apesar da expansão e extroversão de Carol contrastarem com a timidez e fala comedida de Letícia, as duas se aproximaram e se deram bem logo de cara. A viagem para a Tailândia era um tipo de comemoração pessoal delas.

Três anos antes, as duas se envolveram em um desastre na Região dos Lagos do Rio de Janeiro e, ao sobreviverem, combinaram de realizar seus sonhos de viagem juntas. O sudoeste asiático era um deles. Carol e Letícia passavam um feriado prolongado na cidade de Búzios quando foram surpreendidas pelo desabamento da casa em que estavam hospedadas, em decorrência das fortes chuvas, que são típicas na região. Junto com elas estava outro amigo, Pablo, que por uma feliz coincidência, sorte ou providência divina era bombeiro civil.

A amizade entre os três era marcada pelo gosto por viagens e a ideia de passarem o feriado prolongado na casa de amigos de Pablo em Búzios foi recebida com muita animação pelas duas. Como chovia muito, os amigos ficaram em casa jogando baralho, bebendo e contando histórias divertidas. Apesar da chuva ter interrompido os passeios, eles continuavam animados e felizes.

Eles se preparavam para dormir quando escutaram estrondos. “Demorei para entender o que estava acontecendo e me lembro de pouca coisa depois do forte barulho”, Letícia me contava. “Quisera eu não me lembrar”, respondeu Carol. Ela me narrou a sensação da terra faltando sob os pés; lama e objetos caindo por cima delas. De fato, era um milagre os três terem sobrevivido apenas com ferimentos leves. Escutei a história com especial atenção à diferença de reação entre eles em meio ao acidente e até a chegada do socorro.

Paralisada, Letícia não conseguia se mover e, segundo a amiga, sua expressão era “uma cara de nada”. Carol gritava por socorro e conta que achou que o coração fosse pular de tanto que batia acelerado. Ela não se esquecia da sensação de desespero que tomou conta dela. Pablo, embora também parecesse assustado, rapidamente começou a agir para tirar os três daquela situação.

Para as duas, os primeiros anos depois do desabamento foram marcados por pesadelos, crises de ansiedade e dificuldade de voltar à região. Aos poucos, com a ajuda de profissionais especializados em transtorno do estresse pós-traumático e do suporte de amigos e familiares, elas foram recuperando a rotina; os pesadelos e as crises reduziram até se tornarem praticamente inexistentes.

Por isso, a viagem à Tailândia era um tipo de comemoração da recuperação delas. Carol e Letícia ainda lidavam com alguma ansiedade e tensão associadas ao acidente, mas havia quase um ano que não tinham pesadelos e crises mais intensas, além de terem recuperado o prazer pelas viagens que tinha ficado embotado depois do episódio na Região dos Lagos. Já Pablo, na visão delas, parecia ter voltado à vida normal muito rápido depois do acidente.

Os três estavam juntos no mesmo evento traumático, mas cada um viveu um trauma diferente e nem todos ficaram traumatizados, ao menos, ao que parecia pelo relato das duas.

O fato de Pablo ser bombeiro civil o deixava familiarizado com os fragmentos sensoriais de um desastre como aquele. O som dos estrondos, as imagens de tudo revirado, os cheiros e texturas da lama cobrindo tudo não eram novidade para o cérebro dele. Além disso, ele era treinado para agir nesse tipo de situação, reduzindo sua sensação de estar sem saída e, portanto, reduzindo o desamparo.

Se as amigas estiverem certas sobre a rápida recuperação de Pablo pós-acidente, é provável que tudo isso tenha facilitado o processamento daquela experiência pelo corpo, cérebro e mente dele. Em uma metáfora simples, é como se existisse uma gaveta no cérebro de Pablo da qual ele podia tirar a legenda sobre o que estava acontecendo e as ferramentas para lidar com a situação. Ao invés de experimentar a sensação de total inescapabilidade, ele foi tomado pela ação para tirá-los dali.

Já no cérebro de Letícia e de Carol, ao que parece, não havia nada para ajudá-las a legendar e lidar com aquela experiência, e tudo foi absorvido como fragmentos soltos de sons, cheiros, imagens e sensações de uma situação-limite, inusitada e que as deixava à mercê da própria sorte. A carga de estresse recebida pelos três até pode ter sido a mesma, mas em Pablo gerou menos sobrecarga do que em Carol e Letícia.

Mas havia ainda uma diferença entre elas. Carol entrou em um estado de ansiedade e agitação máximas, que a fez gritar, tremer, suar e se desesperar. Essa carga de estresse recebida pelo corpo de Carol não parece ter encontrado uma descarga equivalente depois do acidente, e continuou a produzir resposta ao estresse, gerando pesadelos e desorganização do seu sistema de alerta. Depois do acidente, era como se, de uma hora para outra, ela fosse “sugada” de volta ao desabamento e por alguns instantes o seu cérebro perdesse a capacidade de diferenciar passado de presente, provocando reações que se assemelhavam a uma crise de ansiedade.

Já Letícia parece ter entrado em outro tipo de resposta de sobrevivência: o congelamento. Com uma sobrecarga tão elevada quanto ou talvez maior que a de Carol, seu cérebro precisou “desligar” algumas áreas para sobreviver àquele trauma, fazendo-a, inclusive, se esquecer do que viveu, mas deixando marcas como alterações no sono, na qualidade de vida, o aumento da angústia e da sensação de insegurança mesmo em situações de lazer e relaxamento e uma certa anestesia emocional em situações do cotidiano.

Três experiências traumáticas diferentes vividas durante um mesmo episódio e com desfechos distintos.

Sinto, logo existo: sensação, emoção e sentimento

Este é um ponto importante da nossa travessia, por isso vamos fazer uma pausa para explorar a paisagem que dá contorno às nossas vivências traumáticas: o sentir.

Inspirada em António Damásio, um dos neurocientistas mais respeitados da atualidade e conhecido por seu trabalho com emoções, abordarei três palavras que se relacionam com o universo do sentir: emoção, sensação e sentimento.

Não precisamos da mediação da linguagem para sentir; nós simplesmente sentimos, mesmo que não consigamos colocar palavras em nosso sentir. Mas quando ele ganha legendas que adicionam sentido à experiência, damos um importante passo para elaborar, processar e liberar nossas emoções.

Aprendi com Damásio a pensar emoção, sensação e sentimento como informações. São informações de qualidades similares, mas com níveis de precisão diferentes. Tudo começa com nossos sentidos. Quem, como eu, cursou os ensinos fundamental e médio há mais de vinte anos provavelmente aprendeu na escola que temos cinco sentidos: visão, audição, paladar, tato e olfato. Hoje em dia, sabemos que temos bem mais que cinco sentidos. Só para citar alguns exemplos: sede, fome e dor também são sentidos, só que, diferente dos cinco anteriores, captam informação do nosso mundo interno e não do mundo externo. Os sentidos nos ajudam a perceber o mundo, mas perceber não é sentir. Emoções, sensações e sentimentos são interpretações do que é captado por nossos sentidos. Elas dizem respeito ao nosso mundo interior. São os nossos movimentos internos.

Alguns desses movimentos internos nos informam de alterações em nossa fisiologia: se os músculos estão tensos ou relaxados, se o estômago está cheio ou vazio, se o coração está acelerado ou tranquilo, se a respiração está fluida e calma ou entrecortada e difícil, se o pescoço dói. Essas informações com um grau de precisão física são as nossas sensações, e elas nos ajudam a saber como está nosso organismo ou partes dele, o que é essencial para que possamos nos direcionar para aquilo que necessitamos a cada momento, como relaxar, nos alimentar, nos proteger do frio e assim por diante. As sensações nos informam sobre nossas necessidades.

Quando vivemos uma situação desafiadora, em momentos de êxito ou diante de uma memória ou um pensamento, várias sensações podem ser desencadeadas em conjunto, como uma sinfonia em que vários instrumentos emitem cada qual um som diferente, mas, juntos, produzem uma música específica. Essa música é a emoção. Cada emoção possui um ritmo e uma melodia própria, que resulta das sensações que são disparadas em conjunto a partir de um estímulo que pode vir de fora ou de dentro de nós. Cada música emocional receberá uma categoria de acordo com o seu ritmo e melodia: medo, raiva, alegria, tristeza, aversão. Emoção, portanto, é uma experiência do corpo. Quando elas chegam, ainda não há interferência da razão.

Sentimentos, por sua vez, são fenômenos que pertencem a outra dimensão: a mente. Pode parecer estranho pensar que sentimentos são fenômenos mentais, mas os sentimentos nascem quando a emoção ganha significado. Esses significados que a mente atribui ao que está acontecendo no corpo são baseados tanto em nossa memória explícita: o que conhecemos, o que já vivemos, nossas crenças, valores e interpretações; quanto em nossas memórias implícitas: aquilo sobre nós que não temos clara consciência, mas que deixou registros em nosso corpo e deflagra sensações. As emoções básicas acrescidas de significado podem, então, se ramificar em uma lista quase infinita de sentimentos: ciúme, inveja, paz, compaixão, tédio, calma, decepção, curiosidade, ansiedade…

Ressalto que não é o nome dado à experiência que diferencia emoção de sentimento. Medo pode ser tanto uma emoção quanto um sentimento. O que diferencia é a qualidade da experiência. Imagine que você está caminhando por uma rua escura e percebe um vulto atrás de si. Nesse momento, seu coração dispara, a respiração acelera, a pupila dilata, e toda uma melodia chamada medo é tocada em seu corpo com o objetivo de te preparar para responder ao perigo. Você não controla essas reações. Elas te invadem. Você olha para trás e não tem certeza se alguém está te seguindo, acelera o passo, procura locais com melhor iluminação ou com movimentação de outras pessoas. Sua mente entrou em ação, e está interpretando a situação com base no que você já viveu, no que conhece da região em que está e no que você acredita que possa ser o vulto. Nesse momento, você vivencia não somente a emoção como também o sentimento de medo. O sentimento, é, portanto, uma emoção que foi interpretada pela mente. Na prática, as duas etapas parecem acontecer ao mesmo tempo, pois a diferença entre o que acontece no corpo (emoção) e o significado atribuído pela mente (sentimento) é de milésimos de segundos.

Os Tesouros Que Deixamos pelo Caminho

  • Como Aprender a Lidar com Nossos Traumas Pode nos Lançar em Um Resgate da Própria Potência
  • Autora: Ediane Ribeiro
  • Editora: Paidós (244 págs.; R$ 62,90)
  • Lançamento: 31/10

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