Comunidades se unem em busca da construção de uma educação inclusiva


Escola acolhedora para alunos com deficiência só será possível com a participação de toda a sociedade

Por Camila Tuchlinski
Debate sobre inclusão precisa ir além e engajar pais, educadores, alunos e toda a comunidade. Foto: Pixabay

A pergunta que educadores, profissionais de saúde mental e sociedade ainda não conseguem responder é: como fazer a real inclusão escolar de alunos com alguma deficiência, física ou mental?  A lei 7.853, de 1989, define como crime recusar, suspender, adiar, cancelar ou extinguir a matrícula de um estudante por causa de sua deficiência, em qualquer curso ou nível de ensino, seja ele público ou privado. Apesar dos mais de 30 anos desta lei, famílias ainda têm dificuldades que vão desde a aceitação dos filhos em instituições particulares até a real inserção deles no ambiente e a adaptação de um conteúdo programático.  Em 2020, o presidente da República, Jair Bolsonaro, assinou a nova Política Nacional de Educação Especial, que estimula a criação e a matrícula em escolas especializadas para esses estudantes. O Supremo Tribunal Federal suspendeu a medida. Como se já não bastassem as adversidades do dia a dia nos cuidados e desenvolvimento das crianças, muitos responsáveis acabam desistindo e chegam à conclusão de que ‘escola inclusiva só funciona no papel’. No entanto, Mariana Rosa, uma das fundadoras do Instituto Cáue, mãe de uma menina com deficiência, não se contentou com a sentença do senso comum e decidiu criar o ‘Junta’, um projeto que pretende engajar toda a comunidade em prol da construção de uma escola realmente inclusiva.  “A gente tem encontros com formadores que trazem conceitos que são importantes para entender a base da educação inclusiva e, a partir disso, a gente vai se conectando e compreendendo como a gente pode se organizar coletivamente em defesa da escola para todas as pessoas, para construir a educação inclusiva”, afirma.

Mariana Rosa, fundadora do Instituto Cáue Redes de Inclusão, e a filha Alice, que tem Paralisia Cerebral e Síndrome de West. Foto: Arquivo pessoal
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Atualmente, o ‘Junta’ tem pessoas de 19 estados do Brasil. A comunidade já se organiza regionalmente. O objetivo não é rivalizar com a escola, como explica Mariana: “Ao invés de apontar dedos, é preciso entender que a escola está sofrendo um processo de desmonte, de desvalorização e que a inclusão requer parcerias. Para apontar dedo pra escola e dizer que não está boa tem muita gente, mas pra sentar e construir junto tá mais difícil”.

A inclusão escolar da perspectiva do aluno com deficiência

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O discurso “escola inclusiva só existe no papel” não se sustenta mais. Sobretudo agora, após dois anos da pandemia de covid-19, em que muitas deficiências que seriam escondidas pela falta de conhecimento estão sendo identificadas como, por exemplo, o crescimento de casos de diagnósticos precoces de Transtorno do Espectro Autista. É preciso acolher estes e todos os outros alunos que estão, há décadas, sem a devida atenção.  Caroline de Souza, de 29 anos, mora em Itararé, município de São Paulo, e tem autismo nível 2 de suporte e era matriculada na escola, mas não ia de forma regular. “Quando ia, eles sempre pediam para me buscarem e mandavam atividades para eu fazer em casa. Isso porque eu tinha muitas crises, não falava, não ia ao banheiro sozinha, não socializava e não fazia as atividades. Eles não conseguiam lidar comigo e me mandavam para casa”, lembra.  Por isso, a mãe de Carolina a alfabetizou e ensinou a maioria das coisas que deveria aprender na escola. “Eu ficava muito tempo sem ir, mas às vezes minha mãe me mandava para eu interagir e ver se eles ficavam comigo, mas não ficavam. Passei por 4 escolas diferentes por causa dessa dificuldade e em todas foi o mesmo problema”, diz.  Nesse contexto desprovido de cuidados, a jovem ficou desassistida. “ Sofri muito bullying dos colegas e maus tratos de algumas professoras que batiam na minha mesa, gritavam comigo, me chamavam de esquisita, me arrastavam pelo braço. Os colegas puxavam meu cabelo, roubavam meu lanche e meus materiais, me empurravam, me cercavam no pátio, colocavam apelidos. Na infância eu nem tinha noção de que isso era bullying. Eu não tinha uma boa percepção de que eu era ‘a diferente’, mas na adolescência comecei a perceber”, declara. Apesar de todas as dificuldades ao longo do período escolar, Caroline conseguiu se formar em Pedagogia. 

Caroline de Souza, de 29 anos, tem TEA nível 2 de suporte e não teve a oportunidade de conviver em uma escola realmente inclusiva. Foto: Arquivo pessoal

Virginia Andrade Oliveira mora em Belo Horizonte, Minas Gerais, e foi professora na rede pública por 31 anos. Ela também foi coordenadora pedagógica, vice-diretora, com passagem pela Diretoria Regional de Educação na implementação e acompanhamento da política de inclusão no município. Por 12 anos, foi professora do Atendimento Educacional Especializado. “Historicamente as pessoas com deficiência foram segregadas em todos os espaços de convívio social, e nas escolas não foi diferente: vivenciamos o modelo da segregação escolar no qual a ideia vigente era a de que elas não podiam frequentar o mesmo espaço escolar, visão ancorada num modelo segregador de sociedade e em crenças capacitistas nas quais pessoas com deficiência não conseguiam aprender”, ressalta.  A educadora lembra que, depois, a educação partiu para o modelo da integração, no qual os estudantes “até podiam” frequentar a mesma escola desde que em turmas separadas e com programas e currículos adaptados em função da deficiência: “Neste modelo tinha-se a ideia de que estudantes com deficiência estavam na escola só para conviver com pessoas “normais”. Tais ideias, que consideram Pessoas com Deficiência como incapazes, olhando apenas para suas condições físicas, é um dos fatores que estão na origem de discriminações e preconceitos, que se fazem ainda presentes mesmo que em menor proporção, graças aos avanços trazidos pela concepção de uma escola inclusiva”, explica. Para Virgínia, a inclusão na educação é uma luta constante: “Aliás, a educação em nosso País é uma luta constante. Não dá pra ‘cochilar’!”, pondera.

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O que pensam as famílias em relação à inclusão escolar?

João Francisco tem 10 anos e tem disgenesia do corpo caloso, uma má formação durante a gestação e que faz com que esta área do cérebro dele não se comunique adequadamente. Isso trouxe um atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, além de uma hipotonia.  O pai dele, João Henrique, afirma que a família passou por duas negativas de matrícula em escola pequena e outra de porte médio: “Isso foi um choque pois, a partir desse momento, entendemos que a escola não era para todos. Depois desse percurso, embora decepcionados, encontramos uma escola que mostrou-se acolhedora e com dois anos e meio matriculamos o João na educação infantil”.  Ele relata que foi uma experiência muito animadora e que encontraram outras famílias que tinham um olhar mais receptivo. “As crianças nessa idade não enxergam a deficiência, o que elas veem é um amiguinho. A escola e os professores buscaram entender melhor o João e suas características. Tivemos algumas reuniões com a equipe terapêutica. O ciclo educação infantil é acolhedor, pois visa o desenvolvimento sensório motor, portanto, muitas das atividades são correlatas com a vivência terapêutica da criança com deficiência. Sempre nos preocupamos bastante com os próximos ciclos”, desabafa. João e família tinham muitas perguntas, mas a principal delas era: como a escola e os professores assumiriam o desafio nesta etapa, onde a educação assume um caráter mais formal? “Não queríamos só o aspecto social da escola, queremos que ele aprendesse. Queríamos uma escola inclusiva, onde ele seria um aluno como outros tantos e que essa escola possibilitasse a ele acesso ao conhecimento”, lembra. O pai de João Francisco percebeu que pais, educadores e comunidade precisam estar engajados nessa ‘construção’ de escola inclusiva. “Percebi isso assim que entendi que não existe escola perfeita, sem que haja compromisso e luta da família, da comunidade e dos educadores em discutir uma escola para todos onde a inclusão é naturalizada, pois faz parte do diverso. Isso sim é educação”, conclui.

João Henrique e o filho, João Francisco, que tem disgenesia do corpo caloso, com comprometimento neuropsicomotor e hipotonia. Foto: Andrea Schitz
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O que pensam os professores sobre inclusão escolar?

A formação de professores no Brasil é falha no que se refere a formação em educação inclusiva. Em linhas gerais, um profissional só tem a chance de obter conhecimento por conta própria ou se houver algum aluno com deficiência na turma.  Talita Delfino trabalha há nove anos na rede pública, seis deles como professora do atendimento educacional especializado em uma escola municipal de educação infantil. “Falar sobre educação e pessoas com deficiência é acionar toda a rede protetiva necessária e que nem sempre está atuando. É ser desafiado diariamente a romper os padrões e práticas únicas para diversificar estratégias e flexibilizar atividades que beneficiam todos os estudantes. Ainda há muito a avançar, mas também temos muitos relatos de sucesso, com coisas que muitas vezes são consideradas pequenas ou nem percebidas como ações, como a sinalização em todos os ambientes, a presença de rampas com elevação correta e elevadores, uso de letras maiores e/ou em letra bastão, uso de imagem associada a escrita, dentre outras”, exemplifica. Talita ressalta que muitas práticas de inclusão já são realizadas pelos professores, mas dá para melhorar: “Ouvir as famílias e aproximá-las da escola tem que ser a primeira delas. A partir disso, entender como a criança se comunica. Só assim será possível estabelecer vínculo e comunicação, essencial para o processo de ensino-aprendizagem. Sem diálogo, seja estabelecido pela fala ou não, não sabemos se o estudante compreende e nem entendemos suas respostas e necessidades”. Na opinião dela, a partir disso, as possibilidades são inúmeras e os colegas da turma só têm a acrescentar no percurso formativo individual e coletivo. “Pensar em diferentes estratégias para atingir um mesmo objetivo contempla diversos estudantes, não só aquele que possui alguma deficiência. Para isso é necessário uma comunidade escolar que tenha claro seu papel e princípios educacionais”, diz.  Todos os ‘personagens’ da educação precisam se apropriar dessas ações, ao mesmo tempo, as políticas públicas precisam garantir a formação dos professores, autonomia das escolas na construção de seus projetos político pedagógicos baseados na realidade da comunidade. No Espírito Santo, há quase dez anos, não existem mais classes ou escolas segregadas e 100% dos alunos com deficiência estão matriculados nas escolas comuns das redes pública e privada de ensino, de acordo com Cinthya Campos de Oliveira Mascena, técnica pedagógica da Assessoria de Educação Especial da Secretaria de Estado da Educação do Estado.  “Se considerarmos que um dos principais papéis da educação é fazer com que o indivíduo avance em relação à humanização por meio da apropriação dos conhecimentos social e historicamente acumulados, podemos dizer, sem nenhuma dúvida, que a presença do aluno com deficiência nas escolas, convivendo e aprendendo com todas as pessoas, possibilitou um avanço muito significativo na educação básica como um todo”, avalia.  Cynthia enfatiza que isso reflete, por exemplo, na forma com que a pessoa com deficiência é vista em toda a sociedade. “Hoje em dia, negar ou dificultar a matrícula de uma pessoa com deficiência na escola é algo tão raro por aqui que quando isso ocorre, torna-se um fato e causa imensa indignação, revolta e repercussão”, relata.  Sobre as práticas escolares mais inclusivas, a técnica destaca: “Recentemente visitei uma escola estadual em Fundão, um município do interior do estado, em que a professora de Biologia relatou que, em parceria com a professora do AEE, desenvolveu uns protótipos para ensinar a estrutura celular para um aluno com deficiência intelectual e que, para a surpresa de ambas, o material foi aproveitado por toda a turma e contribuiu para ampliar a compreensão do grupo e superar algumas das lacunas de aprendizado acerca daquele conteúdo”. 

A jornalista Mariana Rosa decidiu estimular a alfabetização da filha Alice, que tem Paralisia Cerebral e Síndrome de West. Foto: Arquivo pessoal
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Como deve ser a inclusão na escola?

Quando pensamos no tema, algumas questões podem ser levantadas: qual educação a gente quer construir? Para qual modelo de sociedade? Pensar a inclusão na escola é um projeto de sociedade. “Esse discurso da falta de preparo é uma confissão que a escola faz que denuncia a própria como um lugar que não garante o direito dos estudantes com deficiência de existirem como cidadãos, como sujeitos de direitos. Esse discurso de “precisamos nos preparar” dá a falsa ideia de que isso é algo que pode ser feito a priori, sem a presença dos estudantes com deficiência, o que é uma incoerência, porque a natureza da educação é a interação, o diálogo, o encontro, a educação se dá aí”, reflete Mariana Rosa, do Instituto Cáue.  Nesse sentido, é necessário que toda a comunidade ocupe esse espaço e ajude a construí-lo. “A gente precisa que os estudantes com deficiência estejam na escola, suas famílias ocuparem lugar nos conselhos, reivindicarem a gestão democrática da escola para que a gente possa, com isso, produzir os tensionamentos e os questionamentos que são necessários pra provocar essas transformações. Por isso que a gente precisa estar junto – Junta. Porque não há saída individual para problema social e coletivo”, conclui. Na visão de Caroline, que tem TEA, algumas práticas podem ser adotadas: “Educar os professores, profissionais que trabalham lá e os alunos. Oferecer palestras, filmes e vídeos para as crianças, conversar com um psicólogo que pode explicar para os colegas sobre o autismo. Fazer adaptações no ambiente também. Uma escola aqui da minha cidade há alguns anos tirou o sinal porque um aluno com autismo se desregulava totalmente com o som”.  A jovem também dá outras sugestões, como respeitar as demandas individuais: “Nessa escola, eles também deixavam que, todos os alunos autistas que precisassem, saíssem para se regular fora da sala, ficar o tempo que precisarem. Sair entre uma atividade e outra para correr, pular, balançar, pode ser um ótimo recurso para ajudar alunos autistas. Outro recurso legal é separar uma sala e colocar lá bolas daquelas de pilates, um jump para pular, rede, stim toys, coisas que não são caras e podem ajudar sendo um espaço sensorial para os alunos se regularem”.  Sobre o conceito de inclusão e como deveria ser na prática, a reportagem do Estadão conversou com o doutor em Educação José Eduardo Lanuti, coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Inclusão na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul-NEPI

1 - Muitas pessoas falam sobre educação inclusiva, mas não entendem o que isso significa. Poderia explicar pra gente? A educação inclusiva diz respeito ao acolhimento incondicional de todos os alunos considerados com ou sem deficiência, indistintamente.A perspectiva inclusiva da educação escolar exige uma mudança nos currículos, formação docente, recursos e materiais para que todos os estudantes tenham garantida a entrada, permanência e participação na escola comum.

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2 - Com a sua experiência como pesquisador, como avalia o atual sistema de inclusão nas escolas brasileiras? A inclusão escolar, no Brasil, vem sendo implementada aos poucos, sobretudo a partir da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva de 2008. Essa Política e as novidades inauguradas por ela, vêm sendo atacadas, atualmente. Tentativas de desmonte da inclusão escolar tem se dado de diversas formas, dentre elas a defesa da volta das escolas especiais para determinados estudantes. São tempo difíceis que exigem comprometimento, união e extrema atenção daqueles que lutam por uma educação escolar para todos.

3 - Como os pais, professores e a comunidade em geral poderia colaborar para uma ‘construção’ de escola acolhedora para os alunos com algum tipo de deficiência? Poderia nos dar alguns exemplos de boas práticas? A escola e todos que dela fazem parte (famílias, estudantes, professores e gestores) precisam exercer a liberdade que possuem para refletir sobre suas realidades e o poder que têm de decidir os propósitos da escola diante dos desafios locais enfrentados. Dentre esses desafios, fazer com que a educação inclusiva aconteça. Uma das oportunidades para que exerçam esse poder é o Projeto Político-Pedagógico (PPP). A elaboração desse documento de ser coletiva e todos devem estar atentos aos preceitos constitucionais brasileiros, ao direito incondicional à educação e à importância da escola comum. A elaboração do PPP e sua avaliação é, a meu ver, a principal possibilidade de ajudarmos na construção de uma escola para todos. Exemplos de boas práticas decorrentes do entendimento da inclusão escolar: formação continuada de professores baseada no Modelo Social de interpretação da deficiência; alunos participando do planejamento das aulas, famílias decidindo sobre as ações pedagógicas desenvolvidas na escola, aulas diversificadas com garantia de acessibilidade.

Debate sobre inclusão precisa ir além e engajar pais, educadores, alunos e toda a comunidade. Foto: Pixabay

A pergunta que educadores, profissionais de saúde mental e sociedade ainda não conseguem responder é: como fazer a real inclusão escolar de alunos com alguma deficiência, física ou mental?  A lei 7.853, de 1989, define como crime recusar, suspender, adiar, cancelar ou extinguir a matrícula de um estudante por causa de sua deficiência, em qualquer curso ou nível de ensino, seja ele público ou privado. Apesar dos mais de 30 anos desta lei, famílias ainda têm dificuldades que vão desde a aceitação dos filhos em instituições particulares até a real inserção deles no ambiente e a adaptação de um conteúdo programático.  Em 2020, o presidente da República, Jair Bolsonaro, assinou a nova Política Nacional de Educação Especial, que estimula a criação e a matrícula em escolas especializadas para esses estudantes. O Supremo Tribunal Federal suspendeu a medida. Como se já não bastassem as adversidades do dia a dia nos cuidados e desenvolvimento das crianças, muitos responsáveis acabam desistindo e chegam à conclusão de que ‘escola inclusiva só funciona no papel’. No entanto, Mariana Rosa, uma das fundadoras do Instituto Cáue, mãe de uma menina com deficiência, não se contentou com a sentença do senso comum e decidiu criar o ‘Junta’, um projeto que pretende engajar toda a comunidade em prol da construção de uma escola realmente inclusiva.  “A gente tem encontros com formadores que trazem conceitos que são importantes para entender a base da educação inclusiva e, a partir disso, a gente vai se conectando e compreendendo como a gente pode se organizar coletivamente em defesa da escola para todas as pessoas, para construir a educação inclusiva”, afirma.

Mariana Rosa, fundadora do Instituto Cáue Redes de Inclusão, e a filha Alice, que tem Paralisia Cerebral e Síndrome de West. Foto: Arquivo pessoal

Atualmente, o ‘Junta’ tem pessoas de 19 estados do Brasil. A comunidade já se organiza regionalmente. O objetivo não é rivalizar com a escola, como explica Mariana: “Ao invés de apontar dedos, é preciso entender que a escola está sofrendo um processo de desmonte, de desvalorização e que a inclusão requer parcerias. Para apontar dedo pra escola e dizer que não está boa tem muita gente, mas pra sentar e construir junto tá mais difícil”.

A inclusão escolar da perspectiva do aluno com deficiência

O discurso “escola inclusiva só existe no papel” não se sustenta mais. Sobretudo agora, após dois anos da pandemia de covid-19, em que muitas deficiências que seriam escondidas pela falta de conhecimento estão sendo identificadas como, por exemplo, o crescimento de casos de diagnósticos precoces de Transtorno do Espectro Autista. É preciso acolher estes e todos os outros alunos que estão, há décadas, sem a devida atenção.  Caroline de Souza, de 29 anos, mora em Itararé, município de São Paulo, e tem autismo nível 2 de suporte e era matriculada na escola, mas não ia de forma regular. “Quando ia, eles sempre pediam para me buscarem e mandavam atividades para eu fazer em casa. Isso porque eu tinha muitas crises, não falava, não ia ao banheiro sozinha, não socializava e não fazia as atividades. Eles não conseguiam lidar comigo e me mandavam para casa”, lembra.  Por isso, a mãe de Carolina a alfabetizou e ensinou a maioria das coisas que deveria aprender na escola. “Eu ficava muito tempo sem ir, mas às vezes minha mãe me mandava para eu interagir e ver se eles ficavam comigo, mas não ficavam. Passei por 4 escolas diferentes por causa dessa dificuldade e em todas foi o mesmo problema”, diz.  Nesse contexto desprovido de cuidados, a jovem ficou desassistida. “ Sofri muito bullying dos colegas e maus tratos de algumas professoras que batiam na minha mesa, gritavam comigo, me chamavam de esquisita, me arrastavam pelo braço. Os colegas puxavam meu cabelo, roubavam meu lanche e meus materiais, me empurravam, me cercavam no pátio, colocavam apelidos. Na infância eu nem tinha noção de que isso era bullying. Eu não tinha uma boa percepção de que eu era ‘a diferente’, mas na adolescência comecei a perceber”, declara. Apesar de todas as dificuldades ao longo do período escolar, Caroline conseguiu se formar em Pedagogia. 

Caroline de Souza, de 29 anos, tem TEA nível 2 de suporte e não teve a oportunidade de conviver em uma escola realmente inclusiva. Foto: Arquivo pessoal

Virginia Andrade Oliveira mora em Belo Horizonte, Minas Gerais, e foi professora na rede pública por 31 anos. Ela também foi coordenadora pedagógica, vice-diretora, com passagem pela Diretoria Regional de Educação na implementação e acompanhamento da política de inclusão no município. Por 12 anos, foi professora do Atendimento Educacional Especializado. “Historicamente as pessoas com deficiência foram segregadas em todos os espaços de convívio social, e nas escolas não foi diferente: vivenciamos o modelo da segregação escolar no qual a ideia vigente era a de que elas não podiam frequentar o mesmo espaço escolar, visão ancorada num modelo segregador de sociedade e em crenças capacitistas nas quais pessoas com deficiência não conseguiam aprender”, ressalta.  A educadora lembra que, depois, a educação partiu para o modelo da integração, no qual os estudantes “até podiam” frequentar a mesma escola desde que em turmas separadas e com programas e currículos adaptados em função da deficiência: “Neste modelo tinha-se a ideia de que estudantes com deficiência estavam na escola só para conviver com pessoas “normais”. Tais ideias, que consideram Pessoas com Deficiência como incapazes, olhando apenas para suas condições físicas, é um dos fatores que estão na origem de discriminações e preconceitos, que se fazem ainda presentes mesmo que em menor proporção, graças aos avanços trazidos pela concepção de uma escola inclusiva”, explica. Para Virgínia, a inclusão na educação é uma luta constante: “Aliás, a educação em nosso País é uma luta constante. Não dá pra ‘cochilar’!”, pondera.

O que pensam as famílias em relação à inclusão escolar?

João Francisco tem 10 anos e tem disgenesia do corpo caloso, uma má formação durante a gestação e que faz com que esta área do cérebro dele não se comunique adequadamente. Isso trouxe um atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, além de uma hipotonia.  O pai dele, João Henrique, afirma que a família passou por duas negativas de matrícula em escola pequena e outra de porte médio: “Isso foi um choque pois, a partir desse momento, entendemos que a escola não era para todos. Depois desse percurso, embora decepcionados, encontramos uma escola que mostrou-se acolhedora e com dois anos e meio matriculamos o João na educação infantil”.  Ele relata que foi uma experiência muito animadora e que encontraram outras famílias que tinham um olhar mais receptivo. “As crianças nessa idade não enxergam a deficiência, o que elas veem é um amiguinho. A escola e os professores buscaram entender melhor o João e suas características. Tivemos algumas reuniões com a equipe terapêutica. O ciclo educação infantil é acolhedor, pois visa o desenvolvimento sensório motor, portanto, muitas das atividades são correlatas com a vivência terapêutica da criança com deficiência. Sempre nos preocupamos bastante com os próximos ciclos”, desabafa. João e família tinham muitas perguntas, mas a principal delas era: como a escola e os professores assumiriam o desafio nesta etapa, onde a educação assume um caráter mais formal? “Não queríamos só o aspecto social da escola, queremos que ele aprendesse. Queríamos uma escola inclusiva, onde ele seria um aluno como outros tantos e que essa escola possibilitasse a ele acesso ao conhecimento”, lembra. O pai de João Francisco percebeu que pais, educadores e comunidade precisam estar engajados nessa ‘construção’ de escola inclusiva. “Percebi isso assim que entendi que não existe escola perfeita, sem que haja compromisso e luta da família, da comunidade e dos educadores em discutir uma escola para todos onde a inclusão é naturalizada, pois faz parte do diverso. Isso sim é educação”, conclui.

João Henrique e o filho, João Francisco, que tem disgenesia do corpo caloso, com comprometimento neuropsicomotor e hipotonia. Foto: Andrea Schitz

O que pensam os professores sobre inclusão escolar?

A formação de professores no Brasil é falha no que se refere a formação em educação inclusiva. Em linhas gerais, um profissional só tem a chance de obter conhecimento por conta própria ou se houver algum aluno com deficiência na turma.  Talita Delfino trabalha há nove anos na rede pública, seis deles como professora do atendimento educacional especializado em uma escola municipal de educação infantil. “Falar sobre educação e pessoas com deficiência é acionar toda a rede protetiva necessária e que nem sempre está atuando. É ser desafiado diariamente a romper os padrões e práticas únicas para diversificar estratégias e flexibilizar atividades que beneficiam todos os estudantes. Ainda há muito a avançar, mas também temos muitos relatos de sucesso, com coisas que muitas vezes são consideradas pequenas ou nem percebidas como ações, como a sinalização em todos os ambientes, a presença de rampas com elevação correta e elevadores, uso de letras maiores e/ou em letra bastão, uso de imagem associada a escrita, dentre outras”, exemplifica. Talita ressalta que muitas práticas de inclusão já são realizadas pelos professores, mas dá para melhorar: “Ouvir as famílias e aproximá-las da escola tem que ser a primeira delas. A partir disso, entender como a criança se comunica. Só assim será possível estabelecer vínculo e comunicação, essencial para o processo de ensino-aprendizagem. Sem diálogo, seja estabelecido pela fala ou não, não sabemos se o estudante compreende e nem entendemos suas respostas e necessidades”. Na opinião dela, a partir disso, as possibilidades são inúmeras e os colegas da turma só têm a acrescentar no percurso formativo individual e coletivo. “Pensar em diferentes estratégias para atingir um mesmo objetivo contempla diversos estudantes, não só aquele que possui alguma deficiência. Para isso é necessário uma comunidade escolar que tenha claro seu papel e princípios educacionais”, diz.  Todos os ‘personagens’ da educação precisam se apropriar dessas ações, ao mesmo tempo, as políticas públicas precisam garantir a formação dos professores, autonomia das escolas na construção de seus projetos político pedagógicos baseados na realidade da comunidade. No Espírito Santo, há quase dez anos, não existem mais classes ou escolas segregadas e 100% dos alunos com deficiência estão matriculados nas escolas comuns das redes pública e privada de ensino, de acordo com Cinthya Campos de Oliveira Mascena, técnica pedagógica da Assessoria de Educação Especial da Secretaria de Estado da Educação do Estado.  “Se considerarmos que um dos principais papéis da educação é fazer com que o indivíduo avance em relação à humanização por meio da apropriação dos conhecimentos social e historicamente acumulados, podemos dizer, sem nenhuma dúvida, que a presença do aluno com deficiência nas escolas, convivendo e aprendendo com todas as pessoas, possibilitou um avanço muito significativo na educação básica como um todo”, avalia.  Cynthia enfatiza que isso reflete, por exemplo, na forma com que a pessoa com deficiência é vista em toda a sociedade. “Hoje em dia, negar ou dificultar a matrícula de uma pessoa com deficiência na escola é algo tão raro por aqui que quando isso ocorre, torna-se um fato e causa imensa indignação, revolta e repercussão”, relata.  Sobre as práticas escolares mais inclusivas, a técnica destaca: “Recentemente visitei uma escola estadual em Fundão, um município do interior do estado, em que a professora de Biologia relatou que, em parceria com a professora do AEE, desenvolveu uns protótipos para ensinar a estrutura celular para um aluno com deficiência intelectual e que, para a surpresa de ambas, o material foi aproveitado por toda a turma e contribuiu para ampliar a compreensão do grupo e superar algumas das lacunas de aprendizado acerca daquele conteúdo”. 

A jornalista Mariana Rosa decidiu estimular a alfabetização da filha Alice, que tem Paralisia Cerebral e Síndrome de West. Foto: Arquivo pessoal

Como deve ser a inclusão na escola?

Quando pensamos no tema, algumas questões podem ser levantadas: qual educação a gente quer construir? Para qual modelo de sociedade? Pensar a inclusão na escola é um projeto de sociedade. “Esse discurso da falta de preparo é uma confissão que a escola faz que denuncia a própria como um lugar que não garante o direito dos estudantes com deficiência de existirem como cidadãos, como sujeitos de direitos. Esse discurso de “precisamos nos preparar” dá a falsa ideia de que isso é algo que pode ser feito a priori, sem a presença dos estudantes com deficiência, o que é uma incoerência, porque a natureza da educação é a interação, o diálogo, o encontro, a educação se dá aí”, reflete Mariana Rosa, do Instituto Cáue.  Nesse sentido, é necessário que toda a comunidade ocupe esse espaço e ajude a construí-lo. “A gente precisa que os estudantes com deficiência estejam na escola, suas famílias ocuparem lugar nos conselhos, reivindicarem a gestão democrática da escola para que a gente possa, com isso, produzir os tensionamentos e os questionamentos que são necessários pra provocar essas transformações. Por isso que a gente precisa estar junto – Junta. Porque não há saída individual para problema social e coletivo”, conclui. Na visão de Caroline, que tem TEA, algumas práticas podem ser adotadas: “Educar os professores, profissionais que trabalham lá e os alunos. Oferecer palestras, filmes e vídeos para as crianças, conversar com um psicólogo que pode explicar para os colegas sobre o autismo. Fazer adaptações no ambiente também. Uma escola aqui da minha cidade há alguns anos tirou o sinal porque um aluno com autismo se desregulava totalmente com o som”.  A jovem também dá outras sugestões, como respeitar as demandas individuais: “Nessa escola, eles também deixavam que, todos os alunos autistas que precisassem, saíssem para se regular fora da sala, ficar o tempo que precisarem. Sair entre uma atividade e outra para correr, pular, balançar, pode ser um ótimo recurso para ajudar alunos autistas. Outro recurso legal é separar uma sala e colocar lá bolas daquelas de pilates, um jump para pular, rede, stim toys, coisas que não são caras e podem ajudar sendo um espaço sensorial para os alunos se regularem”.  Sobre o conceito de inclusão e como deveria ser na prática, a reportagem do Estadão conversou com o doutor em Educação José Eduardo Lanuti, coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Inclusão na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul-NEPI

1 - Muitas pessoas falam sobre educação inclusiva, mas não entendem o que isso significa. Poderia explicar pra gente? A educação inclusiva diz respeito ao acolhimento incondicional de todos os alunos considerados com ou sem deficiência, indistintamente.A perspectiva inclusiva da educação escolar exige uma mudança nos currículos, formação docente, recursos e materiais para que todos os estudantes tenham garantida a entrada, permanência e participação na escola comum.

2 - Com a sua experiência como pesquisador, como avalia o atual sistema de inclusão nas escolas brasileiras? A inclusão escolar, no Brasil, vem sendo implementada aos poucos, sobretudo a partir da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva de 2008. Essa Política e as novidades inauguradas por ela, vêm sendo atacadas, atualmente. Tentativas de desmonte da inclusão escolar tem se dado de diversas formas, dentre elas a defesa da volta das escolas especiais para determinados estudantes. São tempo difíceis que exigem comprometimento, união e extrema atenção daqueles que lutam por uma educação escolar para todos.

3 - Como os pais, professores e a comunidade em geral poderia colaborar para uma ‘construção’ de escola acolhedora para os alunos com algum tipo de deficiência? Poderia nos dar alguns exemplos de boas práticas? A escola e todos que dela fazem parte (famílias, estudantes, professores e gestores) precisam exercer a liberdade que possuem para refletir sobre suas realidades e o poder que têm de decidir os propósitos da escola diante dos desafios locais enfrentados. Dentre esses desafios, fazer com que a educação inclusiva aconteça. Uma das oportunidades para que exerçam esse poder é o Projeto Político-Pedagógico (PPP). A elaboração desse documento de ser coletiva e todos devem estar atentos aos preceitos constitucionais brasileiros, ao direito incondicional à educação e à importância da escola comum. A elaboração do PPP e sua avaliação é, a meu ver, a principal possibilidade de ajudarmos na construção de uma escola para todos. Exemplos de boas práticas decorrentes do entendimento da inclusão escolar: formação continuada de professores baseada no Modelo Social de interpretação da deficiência; alunos participando do planejamento das aulas, famílias decidindo sobre as ações pedagógicas desenvolvidas na escola, aulas diversificadas com garantia de acessibilidade.

Debate sobre inclusão precisa ir além e engajar pais, educadores, alunos e toda a comunidade. Foto: Pixabay

A pergunta que educadores, profissionais de saúde mental e sociedade ainda não conseguem responder é: como fazer a real inclusão escolar de alunos com alguma deficiência, física ou mental?  A lei 7.853, de 1989, define como crime recusar, suspender, adiar, cancelar ou extinguir a matrícula de um estudante por causa de sua deficiência, em qualquer curso ou nível de ensino, seja ele público ou privado. Apesar dos mais de 30 anos desta lei, famílias ainda têm dificuldades que vão desde a aceitação dos filhos em instituições particulares até a real inserção deles no ambiente e a adaptação de um conteúdo programático.  Em 2020, o presidente da República, Jair Bolsonaro, assinou a nova Política Nacional de Educação Especial, que estimula a criação e a matrícula em escolas especializadas para esses estudantes. O Supremo Tribunal Federal suspendeu a medida. Como se já não bastassem as adversidades do dia a dia nos cuidados e desenvolvimento das crianças, muitos responsáveis acabam desistindo e chegam à conclusão de que ‘escola inclusiva só funciona no papel’. No entanto, Mariana Rosa, uma das fundadoras do Instituto Cáue, mãe de uma menina com deficiência, não se contentou com a sentença do senso comum e decidiu criar o ‘Junta’, um projeto que pretende engajar toda a comunidade em prol da construção de uma escola realmente inclusiva.  “A gente tem encontros com formadores que trazem conceitos que são importantes para entender a base da educação inclusiva e, a partir disso, a gente vai se conectando e compreendendo como a gente pode se organizar coletivamente em defesa da escola para todas as pessoas, para construir a educação inclusiva”, afirma.

Mariana Rosa, fundadora do Instituto Cáue Redes de Inclusão, e a filha Alice, que tem Paralisia Cerebral e Síndrome de West. Foto: Arquivo pessoal

Atualmente, o ‘Junta’ tem pessoas de 19 estados do Brasil. A comunidade já se organiza regionalmente. O objetivo não é rivalizar com a escola, como explica Mariana: “Ao invés de apontar dedos, é preciso entender que a escola está sofrendo um processo de desmonte, de desvalorização e que a inclusão requer parcerias. Para apontar dedo pra escola e dizer que não está boa tem muita gente, mas pra sentar e construir junto tá mais difícil”.

A inclusão escolar da perspectiva do aluno com deficiência

O discurso “escola inclusiva só existe no papel” não se sustenta mais. Sobretudo agora, após dois anos da pandemia de covid-19, em que muitas deficiências que seriam escondidas pela falta de conhecimento estão sendo identificadas como, por exemplo, o crescimento de casos de diagnósticos precoces de Transtorno do Espectro Autista. É preciso acolher estes e todos os outros alunos que estão, há décadas, sem a devida atenção.  Caroline de Souza, de 29 anos, mora em Itararé, município de São Paulo, e tem autismo nível 2 de suporte e era matriculada na escola, mas não ia de forma regular. “Quando ia, eles sempre pediam para me buscarem e mandavam atividades para eu fazer em casa. Isso porque eu tinha muitas crises, não falava, não ia ao banheiro sozinha, não socializava e não fazia as atividades. Eles não conseguiam lidar comigo e me mandavam para casa”, lembra.  Por isso, a mãe de Carolina a alfabetizou e ensinou a maioria das coisas que deveria aprender na escola. “Eu ficava muito tempo sem ir, mas às vezes minha mãe me mandava para eu interagir e ver se eles ficavam comigo, mas não ficavam. Passei por 4 escolas diferentes por causa dessa dificuldade e em todas foi o mesmo problema”, diz.  Nesse contexto desprovido de cuidados, a jovem ficou desassistida. “ Sofri muito bullying dos colegas e maus tratos de algumas professoras que batiam na minha mesa, gritavam comigo, me chamavam de esquisita, me arrastavam pelo braço. Os colegas puxavam meu cabelo, roubavam meu lanche e meus materiais, me empurravam, me cercavam no pátio, colocavam apelidos. Na infância eu nem tinha noção de que isso era bullying. Eu não tinha uma boa percepção de que eu era ‘a diferente’, mas na adolescência comecei a perceber”, declara. Apesar de todas as dificuldades ao longo do período escolar, Caroline conseguiu se formar em Pedagogia. 

Caroline de Souza, de 29 anos, tem TEA nível 2 de suporte e não teve a oportunidade de conviver em uma escola realmente inclusiva. Foto: Arquivo pessoal

Virginia Andrade Oliveira mora em Belo Horizonte, Minas Gerais, e foi professora na rede pública por 31 anos. Ela também foi coordenadora pedagógica, vice-diretora, com passagem pela Diretoria Regional de Educação na implementação e acompanhamento da política de inclusão no município. Por 12 anos, foi professora do Atendimento Educacional Especializado. “Historicamente as pessoas com deficiência foram segregadas em todos os espaços de convívio social, e nas escolas não foi diferente: vivenciamos o modelo da segregação escolar no qual a ideia vigente era a de que elas não podiam frequentar o mesmo espaço escolar, visão ancorada num modelo segregador de sociedade e em crenças capacitistas nas quais pessoas com deficiência não conseguiam aprender”, ressalta.  A educadora lembra que, depois, a educação partiu para o modelo da integração, no qual os estudantes “até podiam” frequentar a mesma escola desde que em turmas separadas e com programas e currículos adaptados em função da deficiência: “Neste modelo tinha-se a ideia de que estudantes com deficiência estavam na escola só para conviver com pessoas “normais”. Tais ideias, que consideram Pessoas com Deficiência como incapazes, olhando apenas para suas condições físicas, é um dos fatores que estão na origem de discriminações e preconceitos, que se fazem ainda presentes mesmo que em menor proporção, graças aos avanços trazidos pela concepção de uma escola inclusiva”, explica. Para Virgínia, a inclusão na educação é uma luta constante: “Aliás, a educação em nosso País é uma luta constante. Não dá pra ‘cochilar’!”, pondera.

O que pensam as famílias em relação à inclusão escolar?

João Francisco tem 10 anos e tem disgenesia do corpo caloso, uma má formação durante a gestação e que faz com que esta área do cérebro dele não se comunique adequadamente. Isso trouxe um atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, além de uma hipotonia.  O pai dele, João Henrique, afirma que a família passou por duas negativas de matrícula em escola pequena e outra de porte médio: “Isso foi um choque pois, a partir desse momento, entendemos que a escola não era para todos. Depois desse percurso, embora decepcionados, encontramos uma escola que mostrou-se acolhedora e com dois anos e meio matriculamos o João na educação infantil”.  Ele relata que foi uma experiência muito animadora e que encontraram outras famílias que tinham um olhar mais receptivo. “As crianças nessa idade não enxergam a deficiência, o que elas veem é um amiguinho. A escola e os professores buscaram entender melhor o João e suas características. Tivemos algumas reuniões com a equipe terapêutica. O ciclo educação infantil é acolhedor, pois visa o desenvolvimento sensório motor, portanto, muitas das atividades são correlatas com a vivência terapêutica da criança com deficiência. Sempre nos preocupamos bastante com os próximos ciclos”, desabafa. João e família tinham muitas perguntas, mas a principal delas era: como a escola e os professores assumiriam o desafio nesta etapa, onde a educação assume um caráter mais formal? “Não queríamos só o aspecto social da escola, queremos que ele aprendesse. Queríamos uma escola inclusiva, onde ele seria um aluno como outros tantos e que essa escola possibilitasse a ele acesso ao conhecimento”, lembra. O pai de João Francisco percebeu que pais, educadores e comunidade precisam estar engajados nessa ‘construção’ de escola inclusiva. “Percebi isso assim que entendi que não existe escola perfeita, sem que haja compromisso e luta da família, da comunidade e dos educadores em discutir uma escola para todos onde a inclusão é naturalizada, pois faz parte do diverso. Isso sim é educação”, conclui.

João Henrique e o filho, João Francisco, que tem disgenesia do corpo caloso, com comprometimento neuropsicomotor e hipotonia. Foto: Andrea Schitz

O que pensam os professores sobre inclusão escolar?

A formação de professores no Brasil é falha no que se refere a formação em educação inclusiva. Em linhas gerais, um profissional só tem a chance de obter conhecimento por conta própria ou se houver algum aluno com deficiência na turma.  Talita Delfino trabalha há nove anos na rede pública, seis deles como professora do atendimento educacional especializado em uma escola municipal de educação infantil. “Falar sobre educação e pessoas com deficiência é acionar toda a rede protetiva necessária e que nem sempre está atuando. É ser desafiado diariamente a romper os padrões e práticas únicas para diversificar estratégias e flexibilizar atividades que beneficiam todos os estudantes. Ainda há muito a avançar, mas também temos muitos relatos de sucesso, com coisas que muitas vezes são consideradas pequenas ou nem percebidas como ações, como a sinalização em todos os ambientes, a presença de rampas com elevação correta e elevadores, uso de letras maiores e/ou em letra bastão, uso de imagem associada a escrita, dentre outras”, exemplifica. Talita ressalta que muitas práticas de inclusão já são realizadas pelos professores, mas dá para melhorar: “Ouvir as famílias e aproximá-las da escola tem que ser a primeira delas. A partir disso, entender como a criança se comunica. Só assim será possível estabelecer vínculo e comunicação, essencial para o processo de ensino-aprendizagem. Sem diálogo, seja estabelecido pela fala ou não, não sabemos se o estudante compreende e nem entendemos suas respostas e necessidades”. Na opinião dela, a partir disso, as possibilidades são inúmeras e os colegas da turma só têm a acrescentar no percurso formativo individual e coletivo. “Pensar em diferentes estratégias para atingir um mesmo objetivo contempla diversos estudantes, não só aquele que possui alguma deficiência. Para isso é necessário uma comunidade escolar que tenha claro seu papel e princípios educacionais”, diz.  Todos os ‘personagens’ da educação precisam se apropriar dessas ações, ao mesmo tempo, as políticas públicas precisam garantir a formação dos professores, autonomia das escolas na construção de seus projetos político pedagógicos baseados na realidade da comunidade. No Espírito Santo, há quase dez anos, não existem mais classes ou escolas segregadas e 100% dos alunos com deficiência estão matriculados nas escolas comuns das redes pública e privada de ensino, de acordo com Cinthya Campos de Oliveira Mascena, técnica pedagógica da Assessoria de Educação Especial da Secretaria de Estado da Educação do Estado.  “Se considerarmos que um dos principais papéis da educação é fazer com que o indivíduo avance em relação à humanização por meio da apropriação dos conhecimentos social e historicamente acumulados, podemos dizer, sem nenhuma dúvida, que a presença do aluno com deficiência nas escolas, convivendo e aprendendo com todas as pessoas, possibilitou um avanço muito significativo na educação básica como um todo”, avalia.  Cynthia enfatiza que isso reflete, por exemplo, na forma com que a pessoa com deficiência é vista em toda a sociedade. “Hoje em dia, negar ou dificultar a matrícula de uma pessoa com deficiência na escola é algo tão raro por aqui que quando isso ocorre, torna-se um fato e causa imensa indignação, revolta e repercussão”, relata.  Sobre as práticas escolares mais inclusivas, a técnica destaca: “Recentemente visitei uma escola estadual em Fundão, um município do interior do estado, em que a professora de Biologia relatou que, em parceria com a professora do AEE, desenvolveu uns protótipos para ensinar a estrutura celular para um aluno com deficiência intelectual e que, para a surpresa de ambas, o material foi aproveitado por toda a turma e contribuiu para ampliar a compreensão do grupo e superar algumas das lacunas de aprendizado acerca daquele conteúdo”. 

A jornalista Mariana Rosa decidiu estimular a alfabetização da filha Alice, que tem Paralisia Cerebral e Síndrome de West. Foto: Arquivo pessoal

Como deve ser a inclusão na escola?

Quando pensamos no tema, algumas questões podem ser levantadas: qual educação a gente quer construir? Para qual modelo de sociedade? Pensar a inclusão na escola é um projeto de sociedade. “Esse discurso da falta de preparo é uma confissão que a escola faz que denuncia a própria como um lugar que não garante o direito dos estudantes com deficiência de existirem como cidadãos, como sujeitos de direitos. Esse discurso de “precisamos nos preparar” dá a falsa ideia de que isso é algo que pode ser feito a priori, sem a presença dos estudantes com deficiência, o que é uma incoerência, porque a natureza da educação é a interação, o diálogo, o encontro, a educação se dá aí”, reflete Mariana Rosa, do Instituto Cáue.  Nesse sentido, é necessário que toda a comunidade ocupe esse espaço e ajude a construí-lo. “A gente precisa que os estudantes com deficiência estejam na escola, suas famílias ocuparem lugar nos conselhos, reivindicarem a gestão democrática da escola para que a gente possa, com isso, produzir os tensionamentos e os questionamentos que são necessários pra provocar essas transformações. Por isso que a gente precisa estar junto – Junta. Porque não há saída individual para problema social e coletivo”, conclui. Na visão de Caroline, que tem TEA, algumas práticas podem ser adotadas: “Educar os professores, profissionais que trabalham lá e os alunos. Oferecer palestras, filmes e vídeos para as crianças, conversar com um psicólogo que pode explicar para os colegas sobre o autismo. Fazer adaptações no ambiente também. Uma escola aqui da minha cidade há alguns anos tirou o sinal porque um aluno com autismo se desregulava totalmente com o som”.  A jovem também dá outras sugestões, como respeitar as demandas individuais: “Nessa escola, eles também deixavam que, todos os alunos autistas que precisassem, saíssem para se regular fora da sala, ficar o tempo que precisarem. Sair entre uma atividade e outra para correr, pular, balançar, pode ser um ótimo recurso para ajudar alunos autistas. Outro recurso legal é separar uma sala e colocar lá bolas daquelas de pilates, um jump para pular, rede, stim toys, coisas que não são caras e podem ajudar sendo um espaço sensorial para os alunos se regularem”.  Sobre o conceito de inclusão e como deveria ser na prática, a reportagem do Estadão conversou com o doutor em Educação José Eduardo Lanuti, coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Inclusão na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul-NEPI

1 - Muitas pessoas falam sobre educação inclusiva, mas não entendem o que isso significa. Poderia explicar pra gente? A educação inclusiva diz respeito ao acolhimento incondicional de todos os alunos considerados com ou sem deficiência, indistintamente.A perspectiva inclusiva da educação escolar exige uma mudança nos currículos, formação docente, recursos e materiais para que todos os estudantes tenham garantida a entrada, permanência e participação na escola comum.

2 - Com a sua experiência como pesquisador, como avalia o atual sistema de inclusão nas escolas brasileiras? A inclusão escolar, no Brasil, vem sendo implementada aos poucos, sobretudo a partir da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva de 2008. Essa Política e as novidades inauguradas por ela, vêm sendo atacadas, atualmente. Tentativas de desmonte da inclusão escolar tem se dado de diversas formas, dentre elas a defesa da volta das escolas especiais para determinados estudantes. São tempo difíceis que exigem comprometimento, união e extrema atenção daqueles que lutam por uma educação escolar para todos.

3 - Como os pais, professores e a comunidade em geral poderia colaborar para uma ‘construção’ de escola acolhedora para os alunos com algum tipo de deficiência? Poderia nos dar alguns exemplos de boas práticas? A escola e todos que dela fazem parte (famílias, estudantes, professores e gestores) precisam exercer a liberdade que possuem para refletir sobre suas realidades e o poder que têm de decidir os propósitos da escola diante dos desafios locais enfrentados. Dentre esses desafios, fazer com que a educação inclusiva aconteça. Uma das oportunidades para que exerçam esse poder é o Projeto Político-Pedagógico (PPP). A elaboração desse documento de ser coletiva e todos devem estar atentos aos preceitos constitucionais brasileiros, ao direito incondicional à educação e à importância da escola comum. A elaboração do PPP e sua avaliação é, a meu ver, a principal possibilidade de ajudarmos na construção de uma escola para todos. Exemplos de boas práticas decorrentes do entendimento da inclusão escolar: formação continuada de professores baseada no Modelo Social de interpretação da deficiência; alunos participando do planejamento das aulas, famílias decidindo sobre as ações pedagógicas desenvolvidas na escola, aulas diversificadas com garantia de acessibilidade.

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