Quantas redes sociais você tem e há quantos anos? Qual é a frequência com que as alimenta com fotos pessoais, de família, dos lugares que conheceu ou da sua comida preferida? É muito bom poder compartilhar as experiências positivas da vida. As redes sociais nasceram da necessidade do ser humano de expor o que pensa, do que gosta, como vive. Ao mesmo tempo, acompanhar outras pessoas também é tentador. Enquanto você lê essa reportagem, existe uma grande chance de alguém estar conferindo suas publicações, quase que como um vigilante dos seus passos. Pois essa situação é levada ao extremo na série You (Você, em português) a mais recente produção da Netflix. Na trama, Joe Goldberg é um solitário gerente de uma livraria. Ele fica encantado ao se deparar com uma cliente, uma jovem aspirante a escritora. Ao pagar a compra, Guinevere Beck revela seu nome no cartão de crédito. A partir dessa informação, Joe começa seguir os rastros da garota nas redes sociais. Porém, o desejo em saber mais e mais da vida dela ultrapassa os 'muros' da internet. Joe passa de stalker a perseguidor. Sem spoilers, a série tem dez episódios de aproximadamente 40 minutos cada e é recomendada para quem ficou atraído ou se identificou com a situação. Em poucas semanas, a série You já é sucesso de audiência e mobilizou até personalidades, como Millie Bobby Brown. A atriz de Stranger Things chegou a defender o protagonista da série You, tentando justificar o comportamento abusivo do personagem Joe. Millie deletou o vídeo após uma repercussão negativa e argumentou que fez uma análise precipitada. Mas o que explica esse desejo do ser humano em stalkear?
A exposição excessiva é algo comum no Brasil. Segundo pesquisa da Kaspersky Lab na América Latina, empresa global de segurança online, apenas 6% das pessoas se arrependem de ter publicado fotos com pouca roupa. A negligência com a privacidade é tamanha que um em cada quatro brasileiros está disposto a publicar uma imagem nua em troca de dinheiro. A TV deu início ao movimento que atiça a curiosidade das pessoas, com o surgimento dos realities shows com anônimos, observados durante o dia inteiro. "Você encontra uma pessoa comum sendo vigiada 24 horas. Depois, as redes sociais ampliaram todo esse processo, sem dúvida. E ali, com rastros digitais que você acaba deixando naturalmente enquanto navega na rede, abre a possibilidade de alguma outra pessoa poder ir atrás de você através dos seus rastros", acrescenta o coordenador do Núcleo de Inovação em Mídia Digital da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). Eric Messa analisa que a figura do stalker é uma consequência natural das plataformas sociais. "Qualquer ambiente de relacionamento social vai propiciar esse tipo de comportamento. Aquele que é um fã fervoroso de uma celebridade ou aquele que tem um amor platônico, sempre encontrou modos para saber de tudo da vida daquela pessoa. E nas redes sociais isso fica facilitado porque as pessoas são estimuladas frequentemente a expor suas vidas pessoais e isso é um prato cheio para os stalkers", afirma. A apresentadora Ana Hickmann revelou, em dezembro do ano passado, que estava sofrendo novas ameaças em suas redes sociais. Em 2016, um homem invadiu o quarto em que estava hospedada em um hotel e lhe ameaçou com uma arma após ter enviado insistentemente diversas mensagens ofensivas para as redes sociais de Ana. E as plataformas de redes sociais estão refinando as ferramentas que alimentam o desejo dos stalkers. Um exemplo disso é o espaço destinado a vídeos do Instagram, conhecido como stories, e que permite ao internauta acompanhar quem viu a publicação. "A ferramenta que as pessoas preferem sempre será aquela que ela vê que a comunidade está utilizando mais e que as pessoas estão vendo suas publicações, dando likes. E o stories possibilita enxergar o retorno daquilo que é publicado", avalia Eric Messa.
Como tudo que é exagerado na vida cansa, o mesmo pode acontecer com a super exposição e a audiência nas redes sociais. "Mais do que uma saturação. Penso que estamos vivendo uma fase de deslumbramento. Vai passar e em breve vamos fazer um uso mais moderado e consciente", acredita o coordenador do Núcleo de Inovação em Mídia Digital da FAAP. Enquanto isso não acontece, a equipe do E+ tentou desvendar o porquê de as redes sociais 'seduzirem' tanto os internautas. Conversamos com o psicólogo Leonardo Goldberg, pesquisador do Núcleo de Estudos em Psicologia e Campo Digital (NEPSIDI). Confira:
- Por que o ser humano sente um certo prazer em stalkear a vida das outras pessoas nas redes sociais? As redes sociais exercem um certo fascínio justamente porque somos bombardeados com a ideia de que lá existe uma presença sem faltas, tempos, fins, hiatos. Então, podemos acompanhar cada pegada digital oferecida por um outro e desenhar uma espécie de mapa dos desejos: do que esse outro que nos interessa gosta de escutar, ler, comer, consumir. Esse mapeamento do outro capta nosso olhar de uma forma intensa porque somos atravessados por uma ideia de que - enquanto repousamos o olhar sobre o perfil do outro - poderíamos prever e atuar na forma como o outro funciona e como funcionamos diante dele. Porém, como efeito, esse cálculo é um desastre porque tenta eliminar todo o risco do contato, de escutar não, de um silêncio, da ausência, e portanto também enfraquece a dimensão do enigma, fundamental para manter as relações humanas interessantes.
- O que explica o comportamento de stalkers, ou perseguidores, na internet? Poderíamos dividir essa categoria, dos stalkers, em ao menos duas: uma primeira que acompanha um outro de uma forma repetitiva, dedicando horas de seu dia visitando o perfil de alguém para tentar encontrar um "ponto de fecho", uma costura, um naco de realidade em relação a sua fantasia: um ex-namorado, por exemplo, que passa horas do dia tentando descobrir com quem sua amada saiu, quem ou o que ela deseja, para onde sua atenção está deslocada. Essa pessoa tem a sensação de estar com uma espécie de quebra-cabeça em sua mente e precisa encontrar uma peça perdida para poder sair de sua angústia. É um funcionamento típico entre os apaixonados: cartografar o desejo do outro ofereceria um anteparo aos riscos de fim, de término, da entrada de um terceiro na cena. No segundo caso, geralmente esse perseguidor idealiza a vida daquele que o interessa: mimetiza seus gostos, tenta reproduzir seus gestos, estética e até expressões. Uma forma clássica é a do fã que, de forma agressiva, imita tanto seu ídolo, que em algum momento já não diferencia um ou outro, já não consegue ter ideia da separação. As redes sociais privilegiam essa criação de um duplo porque aproximam amante e amado, e entre ver e se fazer ver, esse sujeito que está fixado na vida de outro, já não considera que as mensagens que o outro publica podem ser genéricas, para todos, ele tem sempre a impressão de que cada postagem é uma mensagem particular, enviada única e exclusivamente para ele mesmo. Um menino não pode publicar que está em uma casa noturna sem que a menina considere que se trata de uma mensagem para ela, para lhe fazer ciúme. E quando toda mensagem se torna fechada, particular, esse stalker tem uma lógica quase paranoica, de que deve sondar seu objeto amado integralmente.
- Quando esse comportamento exige atenção? Se incomoda alguém, deve exigir atenção. Tanto para aquele que é sondado, quanto para o stalker que passa horas diárias em um mesmo perfil e não consegue desvencilhar do ritual: de abrir a telinha, percorrer as janelas e "mineirar" as pegadas digitais de alguém.- Na série You, da Netflix, o personagem principal ultrapassa a barreira da 'perseguição saudável' e tenta manipular as situações reais com o argumento de que está 'protegendo' a mulher que está sendo 'stalkeada' por ele. Como você analisa essa situação? Frequentemente casos de perseguição, abuso, violência, são sustentados por uma retórica da proteção: dos outros, do estrangeiro, do diferente. Em casos como o da série, e em casos comuns no Brasil, vide a incidência gritante do feminicídio, aquele que, de alguma forma, pretende controlar o outro - integralmente - suas vontades, medos, horizontes, acasos, está na verdade tentando controlar uma dimensão de si mesmo, que não consegue lidar com a realidade do desejo do outro, com essa dimensão de que seu objeto amado pode desejar, usufruir, dizer não, mudar. Isso gera ambivalência de sentimentos, e ao perceber que sente raiva de seu objeto amado, por ele lhe imputar limites, atribui o perigo aos outros, e aí forja uma narrativa de proteção. Poderíamos descrever assim: "Vou lhe proteger para que eu não lide com a dimensão do seu desejo, e consequentemente para que te deixe alheia da dimensão incontrolável de mim mesmo". Então, na linguagem ensimesmada de casais muito fechados, esse "proteger" sempre tem uma dimensão de "Vou lhe proteger de mim mesmo". O caso da série You representa bem essa fantasia totalizante, controladora, do sujeito que não consegue lidar com o desencontro, a falta, a ausência, fundamentais para uma relação amorosa razoável. O apaixonamento sempre produz uma espécie de curiosidade acelerada sobre o outro, mas exige também que nos deparemos com o limite: um espaço necessário nessa montagem a dois para que cada um possa lidar com sua própria fantasia, desejos, medos, e saber que apesar disso, o outro pode ou não decidir continuar lá.
- Qual conselho pode dar para as pessoas que são alvo de stalkers? O "se fazer ver" pode ser muito prazeroso, mas faz o sujeito incorrer no risco de se tornar central para a vida dos espectadores, às vezes até desconhecidos. Isso é incontrolável e parte da natureza humana. Esse é o preço de tudo que é público, portanto as redes sociais atualizam nossa concepção de público-privado. Se a pessoa se incomoda com o acesso dos outros aos seus dados, deve restringir suas contas.
Assista ao trailer oficial da série You: