Anos atrás, cunhaporanga – menina bonita, na língua tupi – brincava perto do Rio Negro, há 34 km de Manaus, com pouco acesso à água encanada e sem internet – a primeira antena só chegaria por ali em 2019. Como muitas meninas, nas narrativas que inventava em sua cabeça, sonhava com o futuro. Porém, talvez nem na imaginação parecia caber o sonho de virar uma Barbie. Hoje, Maira Gomez tornou-se uma.
Conhecida como Cunhaporanga nas redes sociais, Maira, junto a outras oito influenciadoras ao redor do mundo, integram o projeto Mulheres Inspiradoras (Role Models), que celebra os 65 anos da boneca mais famosa da história, completados no dia 9 de março. “Nunca pensei que algum dia na vida eu teria uma boneca minha”, diz Maira, em entrevista ao Estadão. “Fiquei simplesmente sem palavras”.
Aos 25 anos, Cunhaporanga tornou-se uma das vozes de sua comunidade. Durante a pandemia de covid-19, criou uma página no Tik Tok para mostrar a outros jovens sua vivência como mulher indígena do povo Tatuyo. Naquele período, as visitas à aldeia diminuíram e algumas das atividades que geram renda, como o artesanato, ficaram prejudicadas.
Logo, as lentes voltaram-se para a aldeia do Amazonas. O conteúdo educativo e o carisma de Cunhaporanga conquistaram ainda mais seguidores. Atualmente, Maira conta com 86 mil seguidores no Instagram e, 6,6 milhões, no Tik Tok.
Em um de seus vídeos, conta que uma pessoa a perguntou se era verdade que eles comiam larva. Ela responde: “Claro que sim! Querem ver? E vou comer com um pouco de farinha”, começa ela. Em outros, compartilha adereços, rituais tradicionais e momentos de lazer com a família.
Sonho materializado
A Barbie cunhaporanga usa trajes típicos de seu povo. O vestido é acompanhado por colares azuis, tiara, brincos. Em seu rosto, tem uma pintura. Tudo foi escolhido e representado conforme Maira descrevia e mostrava para a equipe de produção da marca sua cultura, expressa no modo de se vestir. “Quando eu era criança, me inspirava no estilo da Barbie, nas vestimentas”, conta. Então, ver a boneca tomando forma como uma mulher indígena – ainda mais apresentando as particularidades de seu povo, foi emocionante.
Perguntamos a Maira qual era sua inspiração na infância, levando em conta que, agora, ela mesma inspira meninas mais novas de seu convívio. “A minha mãe. Pra mim, ela é a pessoa mais incrível do mundo, ela e o meu pai fazendo o possível para dar o melhor pra nós”, diz Maira. Com a chegada da internet na aldeia o pai, cacique, se esforçou para que elas fossem instaladas nas escolas. Foram eles, também, que inspiraram Maira a seguir em frente com as postagens.
Maira se emociona ao falar dos pais. Com o Tik Tok, ela já teve conquistas que orgulharam não apenas a eles, mas sua comunidade como um todo, para além do incentivo à preservação da memória de seu povo. Por exemplo, ela conta que a aldeia, que não contava com água encanada, hoje tem um poço artesiano.
“A gente tinha muita dificuldade de conseguir água. Tem o Rio Negro, mas se você parar para pensar, tem barcos, canoas, poluição… então, estávamos correndo risco. Precisávamos andar 2 km dentro da mata pra carregar água, ou ir até a comunidade, que tinha pouco. Então, esse foi outro sonho realizado, que agora cada casa tem água encanada”, celebra.
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Barbie
Junto à Maira, que representa o Brasil, o projeto Mulheres Inspiradoras homenageou nomes como as cantoras Shania Twain (representando o Canadá) e Kylie Minogue (Austrália). Além delas, estão na lista a atriz Viola Davis (Estados Unidos); a diretora e roteirista Lila Avilés (México); a atriz Helen Mirren (Reino Unido); a modelo Nicole Fujita (Japão); e a comediante e ativista Enissa Amani (Alemanha). Cada uma delas ganhou uma boneca única, feita à sua semelhança.
A iniciativa foi inspirada no projeto Barbie Brecha do Sonho (Dream Gap), de 2018. Neste tempo, o Brasil já homenageou com suas próprias Barbies a cantora Iza, a surfista Maya Gabeira, a biomedica Jaqueline Goes e a professora Doani Emanuela Bertan. Porém, esta é a primeira vez que uma mulher indígena brasileira se torna uma Barbie.
A criação é única, não será comercializada – mas dá visibilidade a culturas originárias brasileiras para o mundo e pode inspirar a própria marca a expandir a representatividade para outras meninas.
Esse movimento de se recriar vem sendo feito pelo menos desde 1979, quando a primeira Barbie negra foi lançada. Ao longo dos anos, outras etnias passaram a ser retratadas pela boneca, em um esforço de se adequar a um mercado que cada vez mais exigia representatividade. Ao entender que a boneca é a materialização de narrativas criadas pelas meninas ao brincar, a Barbie tornou-se várias. Indo muito além do look maiô e óculos escuros de sua estreia para o mundo, ocorrida em 1959, a boneca foi médica, professora, cientista. Já ganhou o Prêmio Nobel. E hoje, é Cunhaporanga Tatuyo.