"A troça [graça] é a maior arma de que nós podemos dispor e sempre que a pudermos empregar, é bom e é útil. Nada de violências, nem de barbaridades. Troça é simplesmente troça, para que tudo caia pelo ridículo. O ridículo mata e mata sem sangue". O trecho escrito num artigo de 1922 pelo autor brasileiro Lima Barreto — defendendo o uso da ironia e do deboche para criticar perfis sociais dos quais discorda — se fez presente nos últimos meses em grupos do Facebook.
Em tom de sarcasmo e humor, mais de 70 mil pessoas se reúnem no 'Grupo onde fingimos ser empreendedores emocionados do LinkedIn' para fazer paródias de textos motivacionais da rede corporativa. A nova onda, que lembra um pouco as comunidades do Orkut, começou após as palavras "mindset", "networking", "brainstorming", "know-how", "coach" e outros jargões do mundo do trabalho virarem um prato cheio para a zoeira. Em uma das publicações, um estudante compartilhou uma foto de um entregador de aplicativo fazendo entregas em meio a um alagamento de Belo Horizonte, Minas Gerais. Na legenda, ele aproveitou para usar um discurso popular do mundo do trabalho: "Quem quer arruma um jeito; quem não quer, dá desculpa. Mostrem isso aos seus funcionários quando eles reclamarem. A vida do #empreendedor no Brasil não é fácil". Num caso parecido, uma mulher compartilhou uma foto de um idoso do México fazendo entregas a pé com a mochila de um app de comida. "Comece sua terça-feira com este exemplo de empreendedorismo: aos 74 anos, dono do próprio negócio, ele cortou gastos com combustível ou manutenção de bicicleta. Uma simples mudança no #mindset é capaz de cortar gastos e gerar saúde e produtividade para este #ceo que é fornecedor da Uber Eats", ironizou, usando as hashtags #licaodevida e #empreededorismoreal.
A ironia não é feita à toa. Muitos creem que o vocabulário em inglês do mundo corporativo poderia ser substituído por expressões em português; para outros, os discursos de positividade e meritocracia nem sempre correspondem à realidade e reduzem ao simplismo questões complexas da vida. "Essa história de que a pessoa só depende dela para crescer muitas vezes não é verdadeira. Tanto é que somos um país com grandes desigualdades não só de recursos, mas também de oportunidades", afirma o criador do grupo, Claydson Vieira, de 30 anos. "Há casos de pessoas que vêm do zero e conquistam um bom status social, mas isso depende de vários fatores, não é algo simples como alguns vendem por aí."
'Patricinhas mimadas'
Outra febre é o 'Grupo Onde Fingimos Ser Patricinhas Mimadas Podre de Rica'. Nele, homens e mulheres imitam garotas perfiladas como ricas, consumistas, amantes da moda e acostumadas com o luxo. As postagens remetem a personagens com uma mentalidade servil, preconceituosa e egoísta, apelando para padrões físicos como a magreza, olhos claros, pele branca e cabelo loiro. Em uma publicação recente, um rapaz usou o filme Parasita, vencedor do Oscar de Melhor Filme, para ironizar a riqueza. No longa, uma família pobre e desempregada vive num porão sujo e apertado da periferia de Seul, capital da Coreia do Sul. Por obra do acaso, um dos membros consegue um emprego na casa de uma família milionária e arma um plano para os pais e os irmãos se infiltrarem, como empregados, na vida luxuosa daquelas pessoas:
Em outra postagem, um rapaz simulou uma jovem reclamando das férias de sua governanta. "Hoje tive que em dia falam tanto em empatia, mas cadê a empatia dos nossos serviçais? Viajo para a Suíça sábado e não vou ter ninguém para arrumar minhas malas, fazer minha comida e lavar minhas roupas. Esse mundo é realmente injusto." Há também quem ironize os 'cospobres' — termo usado para definir ricos que fingem ser pobres — e brinque com o meme do 'Rei do Camarote', nascido após uma reportagem sobre Alexander Augusto de Almeida, um empresário que 'ostenta' carro, dinheiro, roupas de grife e bebidas caras nas casas noturnas de São Paulo. "Gente, uma pergunta básica: vocês gastam menos que R$ 50 mil na balada? Meu boy Alexander gasta muito mais que isso", brincou uma mulher.
Freud explica
O pesquisador de comunicação em redes sociais da Universidade de São Paulo (USP) Douglas Calixto reflete, em sua dissertação de mestrado sobre memes na internet, que o humor - incluindo o digital - se relaciona com "as necessidades humanas em lidar com a tragédia e o mal-estar." Ele afirma isso com base no livro Os Chistes e suas Relações com o Inconsciente (1905), no qual Sigmund Freud analisa que as piadas permitem que o ser humano sinta o prazer de lidar com assuntos censurados pela sociedade ou pela própria pessoa, seja por vergonha, moralismo ou medo de represálias. Esses temas 'proibidos' podem ser vários: lembranças de uma infância pobre, uma demissão injusta, crises com a sexualidade, uma adolescência marcada por humilhações etc. Assim, é a partir dessas memórias negativas da vida que o humor torna-se uma arma poderosa para atacar as diferenças que uma pessoa tem em relação a outra. Ele permite rebaixar, igualar e, dessa forma, gerar o riso sobre aquilo que um dia foi sinônimo de tristeza. No grupo em que as pessoas fingem ser 'empreendedoras emocionadas' do LinkedIn, por exemplo, a exploração no mercado de trabalho abre precedente para discussões sobre o dia a dia em tom de deboche. Os internautas desabafam sobre assédios que sofrem no emprego, ridicularizam as exigências de alta produtividade e expressam revoltas com a vida profissional:
O mesmo ocorre no grupo das 'patricinhas mimadas'. O preconceito contra a pobreza e o constrangimento que pessoas pobres podem enfrentam em ambientes elitizados são alvos de chacota e de reflexão social ao mesmo tempo. Fora isso, as pessoas discutem sobre os 'hábitos de rico' que levam para a vida, despertando ora a raiva, ora o riso.
"É por meio das narrativas cômicas, as provocações e as sátiras sobre a realidade social que os internautas constroem a visão de mundo. Os memes são uma porta para eles interferirem e participarem do dia a dia", explica Calixto. "[Além disso], as interações nas redes sociais com potencial de narrar o cotidiano pelo humor permitem que as pessoas deem significado à realidade e, consequentemente, ocupem lugar no mundo."
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*Estagiário sob a supervisão de Charlise Morais