Dez anos após a morte do escritor Rubem Alves (1933-2014), seu livro Reverência Pela Vida: A Sedução de Gandhi ganha uma nova edição, que será lançada pela editora Papirus em outubro. Uma das novidades é o prefácio inédito, escrito por sua filha, Raquel Alves.
No livro, Rubem Alves se confunde com Gandhi, contando em primeira pessoa a vida desse personagem histórico. O texto explora o conceito de “reverência pela vida”, um pilar central na ética de Gandhi que guiou tanto sua prática de não-violência quanto seu ativismo por justiça social e independência.
Alves usa sua narrativa envolvente para levar os leitores em uma jornada pelas várias fases da vida de Gandhi, destacando suas experiências pessoais e espirituais que moldaram sua filosofia. O conceito de reverência pela vida é apresentado também como uma força ativa que impulsionou Gandhi a desafiar injustiças e promover a paz em meio a conflitos.
No novo prefácio, a filha de Rubem Alves compartilha a lembrança de ver seu pai com o livro. “Lembro-me quando esta obra foi publicada pela primeira vez. Eu era meninota ainda e observava meu pai alisando a capa do livro, com semblante de muita satisfação”, diz o texto que pode ser lido com exclusividade abaixo.
“Este livro mexeu com minhas entranhas emocionais”, escreve ela, em outro momento.
Raquel diz que ao ler o livro tinha em mente, além da qualidade do texto escrito, a percepção de que quem o tinha feito era o homem a quem ela chamava pai. “Ao mesmo tempo em que eu me emocionava com a leitura, pensava: ‘Sou filha desse homem, e acho que nunca vou conseguir compreender o tamanho de sua riqueza interior, mesmo tendo convivido com ele por tantos anos’”, diz ela no prefácio.
A nova edição chegará às livrarias em outubro e, além de trazer de volta as palavras de Rubem Alves apresenta uma demonstração de afeto.
Confira abaixo o novo prefácio de Reverência pela Vida: A sedução de Gandhi e um trecho do primeiro capítulo do livro.
Prefácio inédito
Recebi o convite para escrever este prefácio com muita alegria, porém, depois de ler Reverência pela vida, fiquei apreensiva: será que consigo produzir um texto que faça jus à tamanha beleza e sensibilidade?
Lembro-me quando esta obra foi publicada pela primeira vez. Eu era meninota ainda e observava meu pai alisando a capa do livro, com semblante de muita satisfação, que só pude entender agora, adulta, depois de os anos terem feito seu trabalho de amadurecimento.
Este livro mexeu com minhas entranhas emocionais. Primeiro, pelo fato de ser uma obra incrível, que reúne todas as nossas questões mais profundas ligadas à vida e ao nosso viver em um único lugar. Segundo, pelo fato de ter sido escrito em primeira pessoa, o que quer dizer que o autor vestiu a pele de Gandhi, como se sentisse e pensasse em seu lugar, e isso, por si só, já é um ato de coragem e ousadia que somente uma alma muito boa e sensível se arriscaria a fazê-lo com responsabilidade e sabedoria. Por fim, vem aqui o fato de eu ser filha de Rubem Alves. É claro que eu sei e sempre soube que meu pai foi uma figura diferente, capaz de curar dores por meio de suas palavras e encantar ambientes pela sua presença. Mas esse saber não me parece finito e esgotável, como se pudesse ser guardado e organizado em uma pasta de memórias relativas a meu pai. Ao mesmo tempo em que eu me emocionava com a leitura, pensava: “Sou filha desse homem, e acho que nunca vou conseguir compreender o tamanho de sua riqueza interior, mesmo tendo convivido com ele por tantos anos”. Só me resta valer desse sentimento de êxtase e gratidão que esta obra me provocou para agradecer e reverenciar por sua vida.
A Papirus me contou que, em algum evento, meu pai chegou com um livro chamado Gandhi: A magia dos gestos poéticos em mãos. Apontando para a capa, disse que a editora tinha que publicar aquela obra. Afinal, se tratava de uma produção muito importante para meu pai, e seu conteúdo não poderia ficar guardado em um lugar qualquer. Assim nasceu Reverência pela vida, que agora, por ocasião dos dez anos de encantamento de meu pai - tempos de pensar sobre a vida que é finita e infinita ao mesmo tempo -, renasce para que Rubem Alves continue nos tocando com seu eterno convite para uma vida mais bela e sensível.
Falar sobre Gandhi não é apenas falar sobre o homem brilhante que levou a Índia à sua independência. É refletir sobre escolhas, sobre a força da verdade e da não agressão, sobre o respeito por todos - homens e todas as formas de vida. É refletir sobre nossa relação com a vida e com o planeta. É pensar sobre a vida com que sonhamos e o quanto estamos contribuindo (ou não) para isso. Esta obra nos coloca diante de um espelho, que nos questiona inexoravelmente: “Você se orgulha da pessoa que está sendo, tanto para si quanto para o mundo?”.
Meu pai sempre afirmou que a morte anda ao nosso lado, bem ao alcance de nossas mãos. Um dia, ela irá nos tocar... Portanto, como um lembrete de uma consciência privilegiada, não esqueçamos que a morte não nos fala sobre o fim da vida, mas sobre o quanto estamos fazendo nosso viver valer a pena.
Eu garanto que este livro, por meio de dois grandes homens - Mahatma Gandhi e Rubem Alves - o levará às reflexões essenciais do viver consciente, bem como apontará o caminho da beleza, da verdade e do amor como uma direção para quem deseja viver de forma que contribua para a sociedade justa, mansa e cooperativa com que tanto sonhamos.
Desejo, do fundo do meu coração, que a obra mexa e remexa com suas entranhas emocionais, assim como fez comigo. Ao final, aposto que você se sentirá uma pessoa melhor só por ter se entregue a esta leitura tão fascinante!
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Capítulo 1: Gestos poéticos
Escute só... Cessaram os ruídos comuns e as vozes que aqui havia quando cada dia era como o outro. Tudo parou para ver, para dizer adeus... Não é silêncio. É um mistério que está no ar, misturado com esse perfume de sândalo que sai da madeira que se contorce e chia nas chamas. É o cheiro de incenso que diz que o momento é sagrado. A morte foi sempre misteriosa, e é por isso que os homens se aproximam dela com o nome de Deus nas suas bocas. Nome que se pronuncia para exorcizar o medo: Rami Ram!
Ouve-se o crepitar do fogo, luminoso e quente, esplendor da divindade. Ao lado do fogo, corre o rio Yamuna. Penso que suas águas nascidas nas distâncias do Himalaia devem estar se preparando para receber as minhas cinzas. Dizem as estórias contadas de geração em geração que esse rio é mulher, irmã gêmea de Yama, deus da morte. Poderia haver lugar mais belo para uma pira funerária, entre o fogo divino e as águas que carregam em si os segredos do além, mãe que acolhe no colo um filho que retorna? Como é bom saber que, no retorno, há uma mãe à espera... Com suas águas, irei lentamente até o Ganges. Issome conforta, porque todas as vezes que vi o rio sagrado, e sempre que dele me lembrei, tive pensamentos de harmonia e de tranquilidade. Há também o discreto murmurar das palavras que se dizem ao ouvido, e o choro da separação.
O nome de Deus, o rio da morte, colo materno que acolhe, as vozes do amor... Tudo isso junto fia e tece um tapete que convida a alma...
Olho, ouço, e isso me faz bem. Meu coração se aquece, porque amei intensamente este povo comum e pobre da Índia, minha mãe...
É bom saber que me amara. Eu não queria deixá-los ainda, muito embora os acontecimentos me estivessem dizendo que já bastava, que era hora de partir. Mas o meu tempo interior dizia outras coisas. Queria continuar a viver, para continuar a lutar com um espírito equânime e tranquilo. Não existe coisa alguma mais doce que essa. E foi por isso que disciplinei o meu corpo, para ter vida longa, e cheguei a sonhar que viveria 125 anos...
Cada pessoa tem uma estória para contar. Elas trocam entre si pequenos fragmentos de memória, para que os outros saibam que, a despeito da distância, vivemos juntos momentos de verdade, respiramos o mesmo ar, conspiramos. As agonias compartilhadas dos jejuns, a solidariedade das prisões, a coragem da resistência mansa e tenaz, a percepção da voz interior, surgida do fundo da alma, as alegrias das vitórias: tudo isso selou nossa fraternidade. A ternura com que falam a meu respeito me leva para muitos anos atrás, naquela terra de humilhação para os indianos pobres e indefesos, a África do Sul. Foi lá que começaram a me chamar de bhai, irmão. Como era doce esse nome na boca dos que o pronunciavam. Hoje, sinto coisa parecida. Pena que eles não possam ver minhas mãos unidas e o meu sorriso, abençoando-os.
Como se cada um desejasse afirmar sua presença, em amor, na pira incendiada:
- Eu também o vi...
- Sim, me lembro muito bem...
Pensam que estão falando a meu respeito. Mas se enganam. Não percebem que, quando se fala com amor, cada palavra que se diz é uma revelação daquele que fala. Confissões. Se eles se lembram é porque este corpo, que o fogo vai transformando, de alguma forma conseguiu despertar neles algo de bom que ali se encontrava esquecido. Falam sobre eles mesmos ao dizer o meu nome. Sentiram-se mais dignos e mais livres. O que fiz? Quase nada. Só uns poucos gestos mansos e obstinados. E as coisas boas adormecidas acordaram, como que por magia...
Lembro-me de uma longa viagem de trem, naqueles anos em que vivi na África do Sul. Seriam 24 horas. Eu tinha um amigo íntimo, a quem confidenciava tudo o que me ia na alma. Acompanhou-me até a estação e, na despedida, deu-me um livro de presente. Garantiu-me que a leitura seria do meu agrado, talvez para certificar-se de que eu não o deixaria fechado, absorvido por minhas preocupações de ordem prática. Ele sabia muito bem a vida que eu levava, ação o tempo todo, o que não me deixava sobras para o estudo. Comecei a ler. Coisa estranha me aconteceu. Sentia como se o autor estivesse simplesmente dando nomes a sentimentos que já existiam dentro de mim. Não, não eram palavras que enunciavam verdades acerca das coisas de fora e que nos deixam convencidos e impassíveis. Eram palavras encantadas, que invocavam partes do meu próprio ser que eu já sentia, mas ainda não conhecia. Nunca mais pude me esquecer.