Em meados dos anos 1980, chegava ao Brasil um derivado do funk internacional, originado nos Estados Unidos a partir da mistura entre vários ritmos musicais. Por aqui, desembarcava como o funk carioca, com músicas erotizadas, batidas rápidas e melodias dançantes. As letras 'proibidonas' retratavam a vida nas periferias do Rio de Janeiro: drogas, armas e sexo eram temas recorrentes nesse gênero musical que se tornaria, nos anos 2000, o mais popular entre a juventude do País.
O funk é constantemente taxado de machista porque, além de ser usualmente cantado por um homem, também objetifica o corpo da mulher, faz apologia ao estupro e incentiva a violência. Mas será que todos são assim? Houve algum avanço nas letras de funk nos últimos anos? Há mulheres que se destacam como artistas desse gênero?
'Eu era feminista sem saber o significado'
Feminismo é um movimento que visa a igualdade social, política e econômica entre sexos. Após tanto tempo de submissão aos homens, as mulheres buscam sua própria autonomia e liberdade nos vários âmbitos da vida, entre eles a música.
Carolina de Oliveira Lourenço, a funkeira Mc Carol, é um dos maiores nomes do funk cantado por mulheres e quebra estereótipos o tempo todo. Mulher "preta, gorda e favelada", como descreve a si mesma, ela usa suas músicas como instrumento de mudança. "Eu achava que as letras do funk não me representavam nem um pouco. Eu queria fazer diferente, falar que eu era fod*, me colocar como a líder do relacionamento, da parada", expressa a artista, que começou a cantar funk por volta dos 15 anos. "Eu tenho uma música chamada Propaganda Enganosa que fala sobre um cara que foi mal na cama. Isso acontece muito, mas você não vê mulheres falando sobre isso", exemplifica.
No entanto, a mudança de pensamento para inserir o feminismo no funk não significa, necessariamente, alterar o teor da canção, mas sim mudar para o ponto de vista da mulher. "As pessoas falam 'por que cantar p***ria tem a ver com feminismo?'. Eu não considero p***ria, porque é normal, é a minha vida. Os homens falam o que eles querem, na altura que eles querem, e é super normal porque eles são homens. É uma cultura machista muito antiga que dá essa liberdade pro homem", explica Carol. Dessa forma, a cantora mostra que um funk feminista é aquele que insere a mulher no lugar de fala e lhe dá espaço para abordar o tema que quiser, livre de rótulos ou julgamentos. Ela reivindica seu direito ao prazer sexual, denuncia a opressão machista e rompe com padrões de beleza.
Em 100% Feminista, Mc Carol juntou-se a Karol Conká para expor seus medos, vivências e lições. "Me apresentaram a Karol e foi uma das melhores coisas que aconteceram na minha vida. Parece que a gente se conhecia de outras vidas. Quando ela mandou a parte dela, a parada ficou magnífica, não teve que mexer em nada", recorda.
Além de reforçar a importância da música como um mecanismo de empoderamento, a funkeira passa a se enquadrar também como inspiração para outras artistas do gênero. "Se outras mulheres, como a Tati [Quebra Barraco], a Deize [Tigrona] e a Veronica Costa não tivessem botado [sic] a cara, eu não colocaria a minha, eu não teria esse peito. Eu tive o exemplo de outras minas pretas no funk e outras minas me tem como exemplo", pondera.
Fora das músicas, a funkeira influencia outras mulheres a conquistarem sua própria liberdade, como denunciar relacionamentos abusivos ou casos de violência. No início de 2018, viveu momentos de tensão após seu ex-marido tentar assassiná-la em sua própria casa. Em entrevista concedida em novembro do ano passado, ela diz que a lei protege o agressor, principalmente homem: "Todos os dias tem feminicídio, sabe? Sinto medo porque a Justiça não protege a mulher. A única coisa que me disponibilizaram foi ir para um lugar com outras vítimas, mas aí não posso trabalhar, ter telefone, nem contato com ninguém. Alguém tenta me matar e eu é quem tenho que ficar presa?".
'Não queria ser capacho de homem'
Mc Rebecca começou sua carreira há apenas nove meses, mas já sabe qual espaço quer ocupar: "Eu sempre vi que faltava mulheres cantando p***ria, hoje vejo que dei voz para outras mulheres". Em sua música Cai de Boca, ela quebra tabus ao falar sobre homens que realizam sexo oral em mulheres. "Normalmente as mulheres que faziam nos homens. Hoje vejo que pelas minhas músicas, a proporção se tornou muito grande e as mulheres estão mais empoderadas e confiantes", comemora. Para ela, a liberdade sexual feminina é prioridade em um mundo com tantas mulheres submissas.
Em 2017, quatro anos após o lançamento do hit Beijinho no Ombro, a cantora Valesca Popozuda refez a canção com uma letra diferente: "Desejo a todas as amigas vida longa / unidas vamos conquistar ainda mais vitórias / E vamos em frente, parceria é nossa onda / Sem intriga, sem caô, amiga colabora". No trecho alterado, a funkeira exalta a força feminina e valoriza a sororidade, abandonando a rivalidade entre mulheres.
O antigo funk proibidão de Valesca começou a abrir espaço para novas vertentes dentro do gênero. "Gosto de falar da liberdade sexual e poder de escolha das mulheres. Hoje em dia procuro não trabalhar mais com isso [letras pejorativas]", comenta a cantora, que se considera feminista, mas acrescenta que ainda está "aprendendo e trabalhando isso".
O mesmo acontece com Mc Deyzerre, que começou a se aventurar no funk em 2016 para levar uma mensagem que lhe representasse. "Você está se auto afirmando na questão que você vai dançar, rebolar e descer até o chão porque seu corpo é livre e você pode fazer o que quiser com ele", explica a funkeira. Mãe de cinco filhos homens, ela se preocupa em ensiná-los a não reproduzir situações machistas: "Eu falo para eles que as mulheres são livres para fazer o que quiserem. Eles nunca serão donos de uma mulher".
De acordo com um levantamento feito pelo Estadão Dados, em média, uma mulher é vítima de feminicídio no Estado de São Paulo a cada dois dias e meio. Em 2015, a Lei do Feminicídio transformou esse tipo de homicídio em crime hediondo, com pena de 20 a 30 anos de reclusão e que pode ser aumentada em determinados casos. Mesmo com as mudanças na lei, o Brasil ainda ocupa a quinta posição na lista de países com as maiores taxas de homicídio de mulheres. Esses dados preocupam Mc Deyzerre, que pondera: "Nossa sociedade é machista, mas não tem só homens machistas, tem muitas mulheres também. A diferença é que uma mulher machista não mata a outra e os homens acham que têm esse poder nas mãos. Isso precisa ser desconstruído, porque nós estamos morrendo."
Progresso no funk
Uma das maiores polêmicas envolvendo letras de funk pejorativas é o caso de Mc Diguinho. Em 2017, o funkeiro emplacou Surubinha de Leve no topo das músicas mais tocadas no Spotify. Com teor machista e fazendo alusão à violência sexual, a música foi duramente criticada por reforçar a chamada "cultura do estupro", que silencia esse tipo de violência e transmite à vítima a culpa pelo ocorrido. O refrão usa nomes depreciativos para as mulheres e atribui a elas o significado de objeto ao sugerir que homens as embebedem, estuprem e depois as abandonem na rua.
"E se você pedir pra mim [sic] parar, não vou parar. Porque você que resolveu vir pra base transar". Nesse trecho de Vai, Faz a Fila, do funkeiro Mc Denny, a alusão ao estupro também é clara. No início de 2018, a Secretaria Nacional de Política para Mulheres (SPM) e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher divulgaram uma nota de repúdio a ambas as músicas, logo após o lançamento; os serviços do Spotify e YouTube deletaram as canções das plataformas.
Idealizadora da Frente Nacional de Mulheres no Funk, Renata Prado busca dar visibilidade dentro da esfera artística, política e social a partir do protagonismo feminino na cultura do funk. "A FNMF tem a proposta de criar espaços de reflexão sobre feminismo na sociedade a partir do olhar das funkeiras", explica. O projeto deve se expandir ainda mais com a produção de um documentário, que contará a trajetória de mulheres que construíram a história do funk no Brasil. O lançamento está previsto para o segundo semestre deste ano e representa um grande passo para a primeira organização político feminista da história do funk.
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* Estagiária sob supervisão de Charlise Morais.