Carolina tinha apenas três anos quando se escondia no quarto com medo de apanhar por se identificar com o sexo feminino. Ela nasceu num corpo de menino, mas nunca se enxergou assim. Já nessa idade, ela gostava de boneca e usava um pano na cabeça, simulando um cabelo longo para negar o gênero biológico.
O pai Anderson de Almeida não aceitava o comportamento da criança: "que loucura é essa? Você é o Murilo, o meninão do papai", dizia. O homem, de 44 anos, sujava a filha de graxa - na tentativa de impor um estereótipo de masculinidade sobre a pequena - e a agredia para mudar a realidade. "Bati muito nela, xinguei e a levei para a igreja por recomendação dos meus pais. Acreditávamos que ela estava com um demônio no corpo. Aquilo não era normal para mim", afirma.
Anderson chegou a ficar três dias fora de casa, enquanto a mãe cuidava sozinha da filha. "A garota cuspia nos outros e não conversava com ninguém. Estava ficando louca, vivia brava e trancada em casa", recorda o pai. No entanto, ele decidiu voltar atrás após conversar com um amigo cuja filha tem paralisia cerebral. "Percebi o privilégio de ter uma família unida e com saúde", conta.
Foi a partir disso que Almeida se reaproximou e aceitou Carol do jeito que é. Na volta, ele perguntou porque a garota sempre dorme com um pano cobrindo a cabeça, e ela respondeu com apenas três anos: "porque quero acordar menina, eu sou assim. Tenho pipiu, mas sou menina".
Assim, os pais a levaram ao Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual, do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (IPq - USP). "Eu queria um laudo que constatasse que o meu Murilo fosse menina mesmo e bastasse operar o pênis", diz. Entretanto, Anderson e a esposa perceberam que não se tratava de um procedimento cirúrgico, mas de um acompanhamento psicológico semanal da criança e um encontro mensal dos pais.
Segundo o psiquiatra e coordenador do projeto, Alexandre Saadeh, existe uma ampla análise até se provar que o jovem é transgênero. Quando se percebe essa característica, os médicos fazem o bloqueio hormonal da puberdade, com a autorização dos pais, para que a pessoa possa fazer a transição de sexo ao atingir a maioridade. "Às vezes, percebemos que a criança não é trans e não vai se beneficiar do nosso trabalho. Portanto, a orientamos de acordo com o que ela está revelando sobre si mesma", explica.
De acordo com Saadeh, o ambulatório ajuda, em média, 40 famílias e acompanha, hoje, 55 crianças e 130 adolescentes. Além disso, há 180 menores de idade na fila de espera.
Uma minoria vai ao centro de excelência escondida dos pais, o que torna o trabalho mais difícil. "A gente chama os responsáveis para conversar, explicamos que não é um trabalho demoníaco e que não queremos converter ninguém. Nossa intenção é acompanhar. Sempre tem um pai mais sensível à questão", relata.
Caso o diálogo não funcione, o ambulatório pode acionar a Justiça se o jovem tiver mais de 16 anos de idade.
'Já me chamaram de estuprador'
Anderson afirma já ter sido criticado por ter aceitado a incongruência de gênero de sua filha. "Disseram que eu era estuprador, louco, mas ninguém está na minha situação [como pai de uma criança trans]", desabafa.
"Vou acolher minha pequena, pois não quero vê-la se suicidando por questão de gênero ou sexualidade. Já vi casos de transgêneros que se envolvem com droga, fogem de casa ou se prostituem. Quero minha filha viva, recebendo amor dentro de casa", expõe.
A preocupação de Anderson se justifica na medida em que nove a cada dez transexuais entram para a prostituição no Brasil, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Além disso, a ONG Transgender Europe (TGEu) registrou 868 assassinatos dessas pessoas entre 2008 e 2016 no País.
Pesquisadores da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, entrevistaram 120 mil transgêneros norte-americanos de 11 a 19 anos e constataram que 50,8% dos jovens que nasceram meninas e se identificam com o sexo masculino tentaram se suicidar.
Assim, o psiquiatra Alexandre Saadeh orienta que os cuidados devem acontecer desde a infância. "Quanto menor a criança, mais dependente do amor e do reconhecimento dos pais ela é. Dessa forma, quando ela perde o amparo familiar, passa a se sentir uma aberração, um monstro", afirma. "Têm menores que param de estudar, outros que tiram a vida ou se mutilam por não poderem ser quem são", complementa.
'Os pais estão cada vez mais conscientes'
Apesar dos dados alarmantes de violência e preconceito, Saadeh declara que a relação entre os pais e filhos melhorou com o passar do tempo. "No começo a gente via muitos pais revoltados, relutantes, querendo que isso não fosse verdade. Os de atualmente estão mais sensíveis com essas variações de gênero e não nos procuram para reverter compulsoriamente a postura do filho, mas para ajudá-lo", revela.
O médico acredita que a abordagem da imprensa e das novelas sobre o tema ajudam a romper a discriminação. "Muitos julgam os pais que nos procuram, dizem que eles não têm Deus no coração, mas é justamente o contrário. São pessoas preocupadas, carinhosas, apreensivas, que sofrem muito, porque sabem que seus filhos podem ter grandes dificuldades na vida", conta.
Anderson é um exemplo disso. Ele afirma que sempre foi homofóbico, mas se tornou uma pessoa a favor da diversidade e do amor depois de conhecer o ambulatório de identidade de gênero da USP. "Aos pais que rejeitam seus filhos transgêneros, eu peço compreensão e amor. Se a família não apoia, eles vão embora e se suicidam", desabafa. "Eu não respeitei e quase perdi meu casamento. Hoje, eu tenho uma família maravilhosa e cheia de amor. Amor que transborda", conclui.
Ele e outros dois pais fundaram a Associação de Famílias de Transgêneros. A organização está sendo regulamentada e realiza um encontro por mês entre as crianças e seus responsáveis.
*Estagiário sob a supervisão de Charlise Morais