"Bola com Tostão, que toca para Pelé, bota no Rivelino, que abre para Carlos Alberto, que enfia para Gerson, que dá um passe fenomenal para Jairzinho e… gol!". A jogada dos craques da seleção brasileira da Copa do Mundo de 1970 levou Oder Nunes Torres a dar ao filho, nascido um ano depois, o nome de Tospericagerja da Silva Torres - iniciais de cada um dos jogadores na ordem da sequência de passes.
Esta não é a única homenagem bizarra da qual se tem notícia. O pequeno Corinthienzo Samuel de Jesus Soares foi registrado assim em outubro do ano passado, e se chamaria Corinthievellyn se fosse menina. Apesar de engraçados e com significados fáceis de encontrar pela internet, esses nomes e os comuns trazem consigo um assunto pouco discutido no Brasil: todos são seguidos de sobrenomes que atravessam gerações sem nunca terem tido suas raízes históricas reveladas. E por que isso?
A doutora em linguística e professora da Universidade de São Paulo (USP), Patrícia Carvalhinhos, afirma que é difícil definir uma linha do tempo específica para as certidões, pois cada uma obedece uma série de períodos históricos, construções étnicas e visões religiosas diferentes.
Segundo ela, que é especialista em Toponímia, é possível tomar algumas análises como ponto de partida. Uma delas é o registro de sesmarias [lotes de terra] - disponíveis no arquivo público de São Paulo -, que pode mostrar como a concessão de terrenos influenciou na formação dos sobrenomes no Brasil.
"Era normal pessoas adotarem sobrenomes em referência ao lugar onde moravam. Isso se dava bastante na Idade Média, em que a família recebia o nome da terra e os outros nomes podiam ir se apagando por causa da propriedade", afirma. "O nome referente à propriedade ou à terra de origem, como nome de família, é uma das formações mais constantes. Há, ainda, alcunhas de profissão, circunstâncias de nascimento, patronímicos [baseado no nome do pai, avô ou antepassado masculino], etc. Todos esses podem ser motivos iniciais para a criação de um apelido de família.
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A professora diz ainda que havia a doação de nomes por diversas influências até o começo do século 19, em Portugal e no Brasil, antes da imposição de leis voltadas para o tema. Um exemplo disso são os casos em que uma família tinha inúmeros filhos e nem todos possuíam os sobrenomes dos pais. "Não havia uma proibição legal que vetasse esses casos, então tinha muita liberdade na formação das identidades", explica.
As situações são tão variadas que Patrícia recorda de quando recebeu um e-mail de um português que suspeitou de um suposto grau de parentesco com ela. Depois de investigar melhor, o homem descobriu que o "Carvalhinhos" dele vinha do nome de uma ótica do país.
Assim, a especialista orienta que não se deve confiar em sites que tomam como verdade uma história para os sobrenomes - com brasões, nomes de fundadores e afins - sobretudo quando se trata de grupos miscigenados ao longo de séculos. "É difícil encontrar a origem dos nomes. No caso dos de origem portuguesa, você vai achar descendentes que vieram para cá no século 17, 18, 19...", afirma. "Em alguns lugares é mais fácil demarcar de onde veio, como nas colônias de alemães do Rio Grande do Sul", pondera.
De Jesus, dos Santos, dos Anjos… de onde vêm?
Patrícia Carvalhinhos explica que era muito comum haver o abandono de crianças nos orfanatos e instituições religiosas. Assim, os bastardos eram identificados por sobrenomes que remetiam ao divino: "dos Anjos", "dos Santos", "de Jesus", entre outros. "O batistério era o que valia. Até mesmo os registros de casamento eram feitos apenas pela Igreja", explica. Segundo alguns autores, existe ainda a possibilidade de eles terem sido incorporados por cristãos-novos (judeus convertidos que viviam na Península Ibérica), que tentavam fugir da inquisição.
Um outro ponto a se considerar era a colonização jesuíta no Brasil, que tinha como estratégia dar nomes católicos aos nativos indígenas. Havia também os que eram dados em referência às vegetações de Portugal ou a uma profissão. Ferreira, por exemplo, poderia estar relacionado ao ofício de ferreiro, enquanto Silva e Silveira às plantas de mesmo nome.
Patrícia, no entanto, ressalta que esses fatores não são únicos, haja vista que os antepassados podem ter adotados os sobrenomes ao acaso. "Seria necessário fazer um mega projeto, pois cada caso é um caso", explica.
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Um caso mais atual que mostra isso, segundo Patrícia, é o auge da popularidade que o nome Cícero teve em Alagoas no começo da década de 1970. Apesar de ser relacionado com a variante Chiccero, do Italiano, a pesquisadora conta que o apogeu da palavra pode estar ligado à fé no padre Cícero durante a forte seca do sertão na época. "O sacerdote conquistou um grande número de devotos no nordeste. Então, esse fenômeno pode ter vindo de devoção ou homenagem em um período difícil da vida", diz ela, com base em informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Apagamento de nomes africanos
Patrícia Carvalhinhos explica que o apagamento histórico já começa na África, quando os traficantes de escravos registravam os raptados com outros nomes. "Parte disso se deve à cultura que membros das etnias tinham de adotar um 'nome de viagem' e omitir as identidades verdadeiras para grupos externos aos seus", conta. Esse costume era comum também entre os indígenas, o que dificulta o mapeamento de registros étnicos até hoje.
Somado a isso, os escravizados que chegaram ao Brasil e outros lugares, como os Estados Unidos, vinham de duas macroculturas: os sudaneses (Nigéria, Sudão e Benim) e os bantus (localizados principalmente na África Subsaariana). Ambas tinham centenas de subgrupos étnicos com línguas diferentes, que, ao chegarem ao Brasil, se massificaram ao entrar em contato com o português e as línguas indígenas.
Patrícia analisa ainda que a forma de comunicação no território, até 1750, era a língua indígena, falada até mesmo pelos portugueses. "Os colonizadores usavam o português só em cartas administrativas, e os africanos aprenderam o tupi", expõe. Com o tempo, a interação entre os povos gerou novas estruturas linguísticas.
"Essa mistura influenciou no apagamento dos nomes das famílias. Lembrando, lógico, que existe a questão de esquecimento do nome de lugares por uma situação traumática, devido à situação inumana da escravização", afirma.
E o que fica?
Tospericagerja da Silva Torres e Corinthienzo Samuel de Jesus Soares seguem sendo alvo de surpresa e histórias para contar nas próximas gerações de suas famílias devido aos nomes incomuns e ligados ao futebol. Contudo, como ficam os Silvas, Torres, Soares e de Jesus? Os motivos para eles existirem são inúmeros, e não se pode explicá-los com base nas análises prontas que aparecem em sites ou pelo simples "ouvi dizer" dos parentes.
"Podemos ter parâmetros, como devoção, efemérides, homenagens, tradições ou o acaso. Mas sempre vai variar: é uma família mais humilde? Rica? O sobrenome é mais comum no nordeste? No sudeste? Envolve questão política? Tudo precisa ser levar em conta", conclui a pesquisadora.
*Estagiário sob a supervisão de Charlise Morais