No dia 12 de outubro é costume darmos às crianças algum presente, geralmente um brinquedo. Tal objeto representa uma miniatura de um certo ideal da nossa cultura, de forma que elas possam experimentar brincando modos possíveis de se colocar no mundo.
Brincar é a possibilidade de apoiar o fantasiar em um objeto concreto, diz Freud no texto o Escritores criativos e o devaneio (1908). Junto com a extensão dessa fantasia, a criança relança possibilidades. "E se... e se...", diz ela, brincando, e assim produz diferentes respostas à família, à escola e à sociedade, enquanto vai inventando possíveis e impossíveis modos de lançar-se no futuro.
Nesse sentido, brincar está muito menos do lado de sacolejar objetos de uma determinada marca ou de ficar como espectador de bonecos que se mexem sozinhos, acendem luzes ou tocam músicas por conta, e muito mais do lado de ser ativamente o autor da brincadeira (servindo-se às vezes de pedrinhas ou pauzinhos, não só de brinquedos comprados em lojas) . Isso vai autorizando a criança a se colocar.
O interessante é que, ao brincar, essas respostas se produzem de forma ficcional e, portanto, de forma protegida, porque as crianças ainda não precisam se responsabilizar pelas consequências de um ato, já que tudo se passa no faz-de-conta.
No entanto, se enganam aqueles que pensam que brincar seria algo inútil, na medida em que não é um desempenho aplicado diretamente à realidade. Aqueles que brincaram muito certamente chegam à vida adulta com uma maior possibilidade de extensão imaginativa e discursiva e, se bem isso não blinde ninguém das contingências da vida, certamente estarão em melhores condições os que tiveram a possibilidade de exercer a criatividade, testando e tencionando as bordas da liberdade de expressão que a invenção coloca no encontro com a lei.
Também se enganam aqueles que pensam que brincar é só algo suave, leve e alegre. O brincar está atravessado por todos os conflitos que a criança precisa elaborar e, portanto, por todos os conflitos que fazem parte do tempo em que vivemos. Se um homem é um homem em seu contexto, uma criança brinca no faz de conta tendo como pano de fundo a sua sociedade, e o que nela se passa atravessa o seu brincar e, portanto, sua constituição psíquica.
Adoramos pensar que protegemos as crianças. Ainda que tentemos suavizar e amortecer para elas os duros golpes da realidade, até que progressivamente possam ter condições de encarar o mundo, elas não estão dissociadas dos conflitos que vivemos, e é melhor que não o estejam, porque se, por um lado, deixar uma criança sem proteção seja uma crueldade à qual muitas estão duramente expostas (pela miséria, pela segregação étnica, pelo exílio político), sofrendo de uma exclusão de direitos da cidadania, há outras que, pelo excesso de proteção e satisfação, também ficarão absolutamente despreparadas, porque autocentradas e, portanto, não só psiquicamente frágeis diante de qualquer frustração, mas também profundamente egoístas e, consequentemente, futuros cidadãos que não estarão dispostos a abrir mão de nada em nome do coletivo.
Escutar as crianças nesse momento revela o achatamento discursivo que está se vivendo, em que o outro vira o inimigo, em que o diferente se torna insuportável. A violência invade o brincar, encenando atos cruéis em que se encurta o dizer. As lutas deixam de ter a extensão narrativa e a elucubração de princípios éticos que sustentam o valor da cena e passam a ser um tintinar de armas em que um é do bem e outro é do mal, sem elaboração.
Lembro de um menininho que insistia em brincar de um jogo de percurso, mas cada vez que o meu pino passava à frente do seu, atirava tudo pelos ares dizendo "você está me ultrapasseando!" Nessa afirmação equiparava ser ultrapassado a uma trapaça. Só havia lugar para um (ele, no caso) nesse jogo. Ou ele ganhava, ou era trapaça.
Trata-se aí da lógica do um, de um exercício autoritário em que pretendia fazer valer uma lei posta a seu serviço. Não tinha ainda, portanto, alcançado a elaboração de uma lei que protege, que dá lugar a diferenças e na qual ganhar e perder faz parte do jogo, ainda que frustre, mas na qual os lugares circulam, dando chance e zelando pela justiça e pelo direito de todos.
Podemos entender que uma criança de quatro anos precise atravessar esses conflitos. Mas, como clínico, fica muito mais difícil ajudá-la a avançar nisso tendo como pano de fundo um mundo no qual os supostos adultos pretendem magicamente salvaguardar-se das duras dificuldades de uma crise econômica, das frustrações que encaramos na democracia, da constatação do fisiologismo político da corrupção,por meio de uma sedução totalitária, imaginando que pondo-se a serviço de um que se coloca acima da lei que rege o jogo (do debate, do resultado das eleições) se salvaguardariam das dúvidas e imperfeições em meio às quais dura, mas legitimamente, tentamos avançar.
Cuidado, o moralismo é a mais perigosa máscara da perversidade, em que se apedreja o semelhante para encobrir suas próprias faltas e dúvidas. Nesse jogo de servidão voluntária, o pior cego é o que voluntariamente venda seus olhos e não quer escutar o que as histórias da humanidade nos contam. A apologia ao ódio, a autorização do extermínio ao diferente, é o fim do pacto civilizatório. Estamos vivendo um momento de perda de respeito com o outro, em que se corre o risco de legitimar no poder um discurso que prega a perda de direitos da maioria dos seres humanos (mulheres, negros, índios, comunidade LGBTQ) como se não fossem semelhantes. Nos linchamentos virtuais, agora tornados reais, retorna o pior, retorna o que não foi elaborado. Testemunhamos isso pelas inúmeras narrativas de pessoas chegam apavoradas aos consultórios e serviços de saúde mental porque foram ameaçadas de morte nas ruas, por suas escolhas sexuais, cor de pele ou estampa na camiseta, enquanto se acha graça no fato de fazerem as pequenas crianças reproduzirem o gesto de apontar o dedo como um revólver contra os outros.
Fico com a afirmação de Jurandir Freire Costa em recente congresso da SPCRJ (Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro) quando este, citando os direitos humanos, disse que o melhor horizonte ético que podemos ter como utopia de futuro é o de quea palavra "nós" possa abarcar o maior leque possível da diversidade humana.
Podemos até nos iludir achando que estamos fazendo uma entrega abnegada quando damos um presente na mão de uma criança, mas junto com esse presente que lhe damos, ao entregar-lhe a miniatura de um ideal, estamos lhe fazendo um pedido: que venha a triunfar onde nós fracassamos, como afirma Freud no texto Introdução ao narcisismo, de 1914. Mas atenção, porque o tamanho de nosso fracasso certamente aumenta o peso que colocamos sobre seus ombros quando entregamos o presente em suas pequenas mãozinhas. Que presente daremos em suas mãos? De que presente terão que partir para ter chance de um futuro?