O saber dos pais, as invenções dos filhos e o conhecimento dos especialistas

Qual é o lugar para os pequenos na rede SUS?


Impasses diante das epidemias de autismo e microcefalia

Por Julieta Jerusalinsky

 

Por Julieta Jerusalinsky

Aqueles que nos dedicamos à clínica com bebês temos, durante anos, batalhado pela transmissão de critérios que permitam a precoce detecção de sofrimento psíquico e risco para o desenvolvimento infantil junto a aqueles que intervêm com toda e qualquer criança, ou seja, pediatras do acompanhamento do desenvolvimento no campo da saúde e profissionais do ensino infantil. (Veja a esse respeito a pesquisa IRDI - que, se bem seja uma pesquisa feita aqui no Brasil com financiamento do Ministério da Saúde e de domínio público, seus indicadores entraram e foram retirados da caderneta da criança. Na última consulta pública, foi preciso batalhar novamente por isso! O que revela que, às vezes, se anda um passo para a frente e dois para trás).

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Ainda há muito por ser feito nesse sentido e, mais ainda, diante da atual epidemia de diagnósticos de autismo que tem assolado a primeira infância (0 a 3 anos) com a mesma virulência que os diagnósticos de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) têm assolado as crianças em idade escolar.

Estamos em tempos nos quais a detecção precoce de sofrimento psíquico com o intuito de produzir intervenções que favoreçam a constituição tem sido atropelada por uma psicopatologização precoce.

Nos últimos quinze dias, recebi no consultório três casos (dois por supervisão e outro por atendimento direto) nos quais se impõem condições que lamentavelmente são das mais recorrentes na atualidade.

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Três meninos que, por volta dos três anos, passaram por consultas com neurologistas de menos de 15 minutos nas quais foram diagnosticados como autistas - sendo indicada a eles (sem pedido dos pais e sem que os pais concordassem em dar a medicação) a administração de psicofármacos (risperidona ou neuleptil) e pacote de atendimento multidisciplinar com fisio, fono, terapeuta orientacional e psicóloga.

Note-se que, nos três casos, as mães levaram desde o ano ou o ano e meio questões aos pediatras ou coordenadores escolares, dizendo que seus filhos não iam bem, que eram pouco responsivos e pouco sonoros. Diante de tais questões, ouviram respostas como: "menino é assim mesmo", "você está comparando com a sua filha mais velha que é muito adiantada", "ele só é um pouco preguiçoso", "ele está bem, a senhora é que está excessivamente preocupada".

Se essas histórias clínicas fossem uma exceção, já seria motivo suficiente para que nos preocupássemos. A questão é que são cenas clínicas extremamente recorrentes, revelando o tamanho do problema que temos ainda na atualidade sobre a detecção precoce de dificuldades na constituição psíquica e desenvolvimento. Os casos acima, para além de dizer respeito a uma dificuldade das crianças, revelam é um grave sintoma do campo da saúde. 

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Passa-se de uma conduta expectante sem intervenção alguma para escutar as angústias e preocupações dos pais diante das dificuldades surgidas com os filhos na vida cotidiana e para favorecer a constituição do bebê a uma patologização da criança: passou-se sem intervalo do "tudo está bem" a um diagnóstico fechado e definitivo.

1) Emprimeiro lugar, temos o desafio da difusão de critérios de risco para o desenvolvimento infantil e sofrimento psíquico:

Certamente quando algo não vai bem é preciso verificar se os órgãos que suportam as funções são ou não são hígidos. Uma pergunta central é: a criança ouve? Há alguma questão orgânica implicada em seu quadro e que impeça ou dificulte suas aquisições?

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Mas tão importante quanto isso é verificar o modo em que a função é posta em funcionamento na relação com os outros e, portanto interrogar clinicamente se: Falam com ela? Tomam as produções (olhares, endereçamento corporal, gestos) e vocalizações como um dizer? E, se falam, como falam com a criança? Que modo de estrutura linguística predomina em sua vida: bilinguismos ou trilinguismos antes dos três anos em aulinhas em que se etiqueta o nome das coisas? Tablets que dão instruções a serem executadas ou que emitem o nome e as cores dos objetos? Porque isso faz toda a diferença, tanto para a linguagem quanto para a constituição psíquica.

A leitura clínica de como a função é posta em funcionamento na relação da criança com os outros muitas vezes fica de fora dos critérios de detecção precoce pela concepção, que ainda prevalece no âmbito do desenvolvimento, de que as aquisições seriam uma consequência do cruzamento entre a passagem do tempo e seus efeitos sobre um organismo.

Contrariamente a isso, a experiência clínica em um contexto interdisciplinar dos problemas do desenvolvimento infantil atravessada pela psicanálise torna inquestionável que, para o desenvolvimento, tão importante quanto as possibilidades orgânicas é o circuito de desejo e demandas no qual se sustenta os cuidados de uma criança.

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2) Em segundo lugar, isso nos leva à importância de uma formação interdisciplinar dos profissionais, pois, para poder detectar dificuldades, é preciso antes de mais nada entender que o crescimento, a maturação orgânica, as aquisições de linguagem, psicomotricidade e aprendizagem implicadas no desenvolvimento, assim como a constituição psíquica, se bem sejam aspectos irredutíveis uns aos outros, estão entremeados na infância e, portanto, para intervir com bebês é preciso que possamos estender nossa formação, especializando-nos no que é próprio da clínica com a primeira infância dos 0 aos 3 anos.

Esta mesma questão que se coloca no atendimento ao autismo se relança também na atual epidemia de microcefalia em nosso país, diante da qual novamente o modelo proposto de intervenção incorre no mesmo problema recorrente do atendimento de bebês:

a) Cria-se um protocolo específico por patologia - quando é preciso que a formação dos profissionais para atendimento da primeira infância esteja acima e venha em primeiro lugar

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b) Parte-se de um modelo das estimulações parciais (visuais, auditivas, motoras), por áreas e dos múltiplos profissionais, assim como do aconselhamento em grupo a pais

Há anos recolhemos os efeitos iatrogênicos desse modelo de intervenção que não é próprio para a primeira infância, em que se lança os pequenos pacientes e seus pais a uma lógica multidisciplinar fragmentária do área por área - que dificulta enormemente as possibilidades de identificação do bebê com o semelhante, sendo esta uma operação primordial para a constituição. São modelos em que se busca uma eficácia parcial de cada aspecto, descuidando da constituição do bebê como um sujeito capaz de vir a se apropriar de tais produções em nome de um desejo, Nesses modelos se deixa de lado a radical importância de intervir junto aos pais, não simplesmente lhes dizendo o que deveriam fazer com conselhos, mas escutando-os em suas reflexões, para que lhes seja possível sustentar o exercício da função materna e paterna com seu filho, já que a angústia surgida das dificuldades experimentadas cotidianamente nos cuidados do mesmo e o impacto dos diagnósticos tendem a produzir-lhes uma destituição de saber desde a qual já não sabem mais o que esperar e, portanto, o que propor ao filho. É aí que as lesões fantasmáticas produzem efeitos muito mais limitantes que os impostos pela patologia em si.

A filiação é operação central a ser considerada na clínica com bebês. Quando o efeito de identificação e o endereçamento do bebê aos ideais do eu que fazem parte de uma família e uma cultura fracassam na primeira infância, as posteriores medidas de inclusão que buscam se estabelecer são tentativas de reparar uma pertença que pode ter claudicado em seu argumento central. Esta é uma contribuição decisiva da psicanálise ao campo da Clínica em Estimulação Precoce.

3) Em terceiro lugar se faz importante testemunhar que esse modo de atendimento sim opera na rede pública. Em Londrina, temos a experiência de uma parceria do Centro Lydia Coriat com o Espaço Escuta há aproximadamente 15 anos, produzido a especialização de profissionais para intervir em Estimulação Precoce

Atende-se com a concepção de que as aquisições instrumentais só fazem sentido em nome de um desejo desde o qual diversos bebês e seus familiares têm tratamento no consórcio intermunicipal de saúde CISMEPAR dentro do projeto Mãe Paranaense (há três anos) que integra a Rede Cegonha (desde o ano 2013 foram atendidos 2.386 bebês e gestantes de risco).

Desde esta parceria, há alguns anos, conseguiu-se fazer valer dentro da folha de pagamento do SUS a Estimulação Precoce como especialidade clínica realizada por um ou por uma dupla de terapeutas especializados, em lugar da fragmentação de fisio, fono, terapeuta ocupacional, psicóloga - que é o protocolo habitual.

Nesse modo de intervenção, o atendimento do bebê ocorre junto a seus familiares, considerando que este é o primeiro "grupo" de pertença e inclusão de um bebê. E, além disso, recentemente instaurou-se o espaço de convívio Amarelinhas, de acordo ao proposto na Maison Vert de Doltó - entendendo que a instituição pode oferecer um suporte para famílias que muitas vezes estão solitárias e sem sustentação da rede social

Nesse sentido é preciso que possamos refletir que os dispositivos que priorizam os atendimentos em grupos ou as assembleias, pensados para o atendimento em CAPS-i com crianças a partir de 6 anos e com os jovens até 18 - ou "moçada" como tem sido recorrente dizer - não são plenamente aplicáveis à primeira infância, já que esta é uma época da vida que exige em primeiro lugar um suporte terapêutico que singularize o laço pais-bebê.

Por isso torna-se decisivo discutir: qual é o lugar para os pequenos na rede?

Certamente é preciso priorizar, como no exemplo acima, um atendimento em estimulação precoce dos bebês com problemas do desenvolvimento e constituição psíquica,mas em que âmbito?

O âmbito da atenção básica resulta interessante, pois nos tira da dicotomia deficiência-saúde mental, sendo por isso muito favorável, ao colocar o fato de serem bebês acima da patologia (autismo, microcefalia, entre outras). Mas, para tanto, é preciso a ampliar a formação interdisciplinar dos profissionais e sua especialização em primeira infância.

Nessa inversão epistemológica se retira os bebês e seus pais de atendimentos fragmentados (e, aliás, rompe-se com a lógica das medidas emergenciais por epidemias, pois um profissional preparado para favorecer a constituição pode fazê-lo sob o fundo de diversos riscos ou patologias em curso).

Caso contrário, os pais vão continuar a ter a falsa ilusão de que serviços segregados por patologia seriam melhores, pois isso se embasa em uma demanda legítima de solicitar serviços preparados para receber seus bebês. Justamente a questão é que a especialização em relevo precisa ser a de profissionais que saibam do crescimento, maturação, desenvolvimento e constituição psíquica na primeira infância!

Ao realizar essa formação, os profissionais estão preparados para atender as diferentes patologias que acometem a primeira infância.

4) Em quarto lugar, isso faz cair por terra a ultrapassada noção de que é preciso um diagnóstico fechado para intervir. Pois, ao passar de uma conduta expectante à indicação de um tratamento sob o fundo de um diagnóstico fechado configurado em diferentes sintomatologias características e reconhecíveis como um quadro patológico específico, já se perdeu um tempo precioso para a constituição e, portanto, para a intervenção.

Ao proceder desse modo, ainda procura-se fazer a primeira infância encaixar no ranço de concepções de patologia adultomorfas que partem da concepção de um organismo e de um psiquismo já estabelecidos. Isso é antinômico da infância!

Como já foi situado, desde o ponto de vista orgânico, nós não nascemos prontos. A infância, e mais ainda a primeira infância, se caracterizam pela plasticidade neuronal (apontada por Kandel) desde a qual se revela que, se bem nasçamos com a maioria dos neurônios que teremos para o resto da vida, a interconexão neuronal não está feita e a mesma depende dos estímulos que uma criança receba. A questão é qual o tipo de estímulo, pois não basta estímulos sensoriais fragmentários (uma luz, uma textura ou um som fora de contexto). Kandel afirma que o modo como os pais costumam falar espontaneamente com seus bebês é central para a interconexão neuronal, pois liga a experiência sensorial à sua significação!

Se a plasticidade neuronal torna inquestionável a importância das experiências de vida para a formação do cérebro, as investigações mais recentes sobre genética apontam que é decisivo para a manifestação do código genético que herdamos os chamados fatores epigenéticos, ou seja, como os diversos fatores ambientais- que vão desde a água que bebemos até a relação que uma criança tem com os outros - são decisivos para a ativação de certos genes ou outros do nosso código herdado.

Por sua vez, a respeito do psiquismo, Freud aponta que temos bons motivos para acreditar que a capacidade de receber e reproduzir impressões nunca é maior do que precisamente nos anos de infância, e que as experiências de prazer e desprazer que uma criança tem serão decisivas para a sua constituição psíquica.

Portanto nós não nascemos prontos: a estrutura não está decidida na infância nem orgânica nem psiquicamente. Daí que seja central considerar a dimensão da infância acima de qualquer diagnóstico e centrar a intervenção clínica na aposta em uma constituição possível em lugar de em uma patologização precoce. Pois isso pode mudar o rumo de uma história!

Para avançar nisso, não podemos incorrer nem em reducionismos organicistas nem em reducionismos psicologizantes. Por isso resultam centrais esses autores que, em ambos os campos, sustentam a lógica da complexidade.

Desse modo, nosso ponto de partida para intervir é:ir fazendo o estabelecimento dos fatores orgânicos implicados, mas também ir intervindo por meio de situações do brincar e dos cuidados na vida cotidiana - ambos sustentados na relação com os outros - que sejam favorecedores da constituição da criança.

Basta detectar que algo não vai bem para intervir, a fim de poder contar com a plasticidade neuronal e a permeabilidade a inscrições psíquicas com as quais pode se mudar o rumo de uma história. Não precisamos fechar diagnósticos em um tempo em que muitas vezes isso não é possível, dado que a pequena criança está em constituição, ou esperando que o quadro esteja plenamente configurado para fechar um diagnóstico, perdendo desse modo um tempo precioso para a intervenção.

5) Isso nos leva a um quinto ponto, relativo aos efeitos iatrogênicos de diagnósticos que induzem o mecanismo das profecias autorrealizáveis, desde as quais, diante de um risco dessa ou daquela patologia, os pais passam a buscar na internet o que esperar desse quadro, e é desde esse espectro que passam a olhar para o filho.

Se há um problema em jogo, é preciso saber qual é para intervir. Não se trata de defender uma posição de ignorância em relação a uma dificuldade. Isso seria obscurantista. Mas igualmente obscurantista é negar a possibilidade de resolução de um quadro - o que tantas vezes testemunhamos ao intervir com a primeira infância.

É preciso considerar a diferença entre ser e estar que é própria da infância e que é decisiva para que o diagnóstico não se introduza como um destino nefasto em que o saber médico atua como uma espécie de spoiler de destinos.

Na atualidade estão disponíveis na internet questionários ao estilo check-lists de pelo menos das duas grandes epidemias diagnósticas que assolam a infância - o TDAH e TEA (para crianças de três anos). Nesse último aparecem quesitos como: "a criança olha para os seus olhos por mais de três segundos?". Diante disso tenho encontrado pais que dizem para os filhos "olhe para mim", e contam "1,2,3". Ou quesitos como "seu filho responde quando chamado pelo nome?", diante dos qual os pais passam a chamar o filho insistentemente sem propósito algum, a não ser para verificar se ele responde.

Aqui temos claros efeitos da introdução de efeitos iatrogênicos na relação dos pais com os filhos, que rompem a espontaneidade e que os levam a relacionar-se com a criança pela busca e fixação de signos patologizantes, em lugar de produzir intervenções propiciadoras da constituição.

Além do mais, é preciso fazer notar que nesses check-lists os comportamentos tomados como signos e não lidos em um contexto. Por exemplo: seu filho responde quando chamado pelo nome para dar um beijo na tia velha que acabou de chegar de visita? Isso não tem lugar nessa grade psicopatológica. Quando sabemos desde os tempos de Saussure que o contexto é decisivo para o sentido que uma produção humana pode vir a assumir.

Por isso, o diagnóstico na infância exige uma leitura clínica que parta do contexto simbólico das produções de linguagem, brincar, imagem corporal, posição diante da lei. Caso contrário, em lugar de produzir uma detecção precoce de sofrimento que possibilite a constituição (questão à qual a tantos anos nos dedicamos) estará se incorrendo socialmente em uma patologização precoce.

Gostaria de fazer notar que essas questões são mundiais. Na França, há pouco tempo, procurou-se fazer valer um protocolo que propunha-se registrar na caderneta escolar de bebês de três anos se batiam ou mordiam, para detectar "tendências agressivas". Isso despertou um movimento chamado "contra o zero de conduta em bebês de 36 meses". No Brasil, o relator da proposta de lei de diminuição da idade penal afirmou que, no futuro, seremos capazes de detectar tendências criminosas intraútero!

São princípios para lidar com a infância que instauram não só uma patologogização precoce, mas uma criminalização precoce, que vão na direção de fixar do lado da criança o que ainda não está fixado, atribuindo suas dificuldades apenas a heranças genéticas ou falhas orgânicas, o que nos exime de pensar o lugar ocupado socialmente pela infância na atualidade.

Nesse sentido, preciso fazer notar que tem sido crescente o número de pequenas crianças hígidas que recebo no consultório com falas ecolálicas extraídas de aplicativos virtuais. Crianças que estabelecem a relação com os outros em uma era na qual são necessárias placas que indiquem "não temos wi-fi, conversem entre vocês". Isso também não é sem consequências...

Então, para diagnosticar o sofrimento na infância e as epidemias diagnósticas da atualidade, é preciso que possamos interrogar o que se passa com as crianças, sem reducionismos organicistas ou psicologizantes.

Depois desse percurso, a questão insiste e creio que o que precisamos interrogar é: qual é o lugar que daremos para os pequenos em sofrimento na rede? Quando ocorrerá de modo contundente a aposta na formação de profissionais especializados para a intervenção clínica em Estimulação Precoce?

Essas perguntas são centrais para considerarmos a dimensão da infância acima de qualquer patologia. Caso contrário, continuará a corrida desesperada e sem rumo atrás de protocolos para atendimentos específicos diante de cada nova epidemia.

 

 

Por Julieta Jerusalinsky

Aqueles que nos dedicamos à clínica com bebês temos, durante anos, batalhado pela transmissão de critérios que permitam a precoce detecção de sofrimento psíquico e risco para o desenvolvimento infantil junto a aqueles que intervêm com toda e qualquer criança, ou seja, pediatras do acompanhamento do desenvolvimento no campo da saúde e profissionais do ensino infantil. (Veja a esse respeito a pesquisa IRDI - que, se bem seja uma pesquisa feita aqui no Brasil com financiamento do Ministério da Saúde e de domínio público, seus indicadores entraram e foram retirados da caderneta da criança. Na última consulta pública, foi preciso batalhar novamente por isso! O que revela que, às vezes, se anda um passo para a frente e dois para trás).

Ainda há muito por ser feito nesse sentido e, mais ainda, diante da atual epidemia de diagnósticos de autismo que tem assolado a primeira infância (0 a 3 anos) com a mesma virulência que os diagnósticos de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) têm assolado as crianças em idade escolar.

Estamos em tempos nos quais a detecção precoce de sofrimento psíquico com o intuito de produzir intervenções que favoreçam a constituição tem sido atropelada por uma psicopatologização precoce.

Nos últimos quinze dias, recebi no consultório três casos (dois por supervisão e outro por atendimento direto) nos quais se impõem condições que lamentavelmente são das mais recorrentes na atualidade.

Três meninos que, por volta dos três anos, passaram por consultas com neurologistas de menos de 15 minutos nas quais foram diagnosticados como autistas - sendo indicada a eles (sem pedido dos pais e sem que os pais concordassem em dar a medicação) a administração de psicofármacos (risperidona ou neuleptil) e pacote de atendimento multidisciplinar com fisio, fono, terapeuta orientacional e psicóloga.

Note-se que, nos três casos, as mães levaram desde o ano ou o ano e meio questões aos pediatras ou coordenadores escolares, dizendo que seus filhos não iam bem, que eram pouco responsivos e pouco sonoros. Diante de tais questões, ouviram respostas como: "menino é assim mesmo", "você está comparando com a sua filha mais velha que é muito adiantada", "ele só é um pouco preguiçoso", "ele está bem, a senhora é que está excessivamente preocupada".

Se essas histórias clínicas fossem uma exceção, já seria motivo suficiente para que nos preocupássemos. A questão é que são cenas clínicas extremamente recorrentes, revelando o tamanho do problema que temos ainda na atualidade sobre a detecção precoce de dificuldades na constituição psíquica e desenvolvimento. Os casos acima, para além de dizer respeito a uma dificuldade das crianças, revelam é um grave sintoma do campo da saúde. 

Passa-se de uma conduta expectante sem intervenção alguma para escutar as angústias e preocupações dos pais diante das dificuldades surgidas com os filhos na vida cotidiana e para favorecer a constituição do bebê a uma patologização da criança: passou-se sem intervalo do "tudo está bem" a um diagnóstico fechado e definitivo.

1) Emprimeiro lugar, temos o desafio da difusão de critérios de risco para o desenvolvimento infantil e sofrimento psíquico:

Certamente quando algo não vai bem é preciso verificar se os órgãos que suportam as funções são ou não são hígidos. Uma pergunta central é: a criança ouve? Há alguma questão orgânica implicada em seu quadro e que impeça ou dificulte suas aquisições?

Mas tão importante quanto isso é verificar o modo em que a função é posta em funcionamento na relação com os outros e, portanto interrogar clinicamente se: Falam com ela? Tomam as produções (olhares, endereçamento corporal, gestos) e vocalizações como um dizer? E, se falam, como falam com a criança? Que modo de estrutura linguística predomina em sua vida: bilinguismos ou trilinguismos antes dos três anos em aulinhas em que se etiqueta o nome das coisas? Tablets que dão instruções a serem executadas ou que emitem o nome e as cores dos objetos? Porque isso faz toda a diferença, tanto para a linguagem quanto para a constituição psíquica.

A leitura clínica de como a função é posta em funcionamento na relação da criança com os outros muitas vezes fica de fora dos critérios de detecção precoce pela concepção, que ainda prevalece no âmbito do desenvolvimento, de que as aquisições seriam uma consequência do cruzamento entre a passagem do tempo e seus efeitos sobre um organismo.

Contrariamente a isso, a experiência clínica em um contexto interdisciplinar dos problemas do desenvolvimento infantil atravessada pela psicanálise torna inquestionável que, para o desenvolvimento, tão importante quanto as possibilidades orgânicas é o circuito de desejo e demandas no qual se sustenta os cuidados de uma criança.

2) Em segundo lugar, isso nos leva à importância de uma formação interdisciplinar dos profissionais, pois, para poder detectar dificuldades, é preciso antes de mais nada entender que o crescimento, a maturação orgânica, as aquisições de linguagem, psicomotricidade e aprendizagem implicadas no desenvolvimento, assim como a constituição psíquica, se bem sejam aspectos irredutíveis uns aos outros, estão entremeados na infância e, portanto, para intervir com bebês é preciso que possamos estender nossa formação, especializando-nos no que é próprio da clínica com a primeira infância dos 0 aos 3 anos.

Esta mesma questão que se coloca no atendimento ao autismo se relança também na atual epidemia de microcefalia em nosso país, diante da qual novamente o modelo proposto de intervenção incorre no mesmo problema recorrente do atendimento de bebês:

a) Cria-se um protocolo específico por patologia - quando é preciso que a formação dos profissionais para atendimento da primeira infância esteja acima e venha em primeiro lugar

b) Parte-se de um modelo das estimulações parciais (visuais, auditivas, motoras), por áreas e dos múltiplos profissionais, assim como do aconselhamento em grupo a pais

Há anos recolhemos os efeitos iatrogênicos desse modelo de intervenção que não é próprio para a primeira infância, em que se lança os pequenos pacientes e seus pais a uma lógica multidisciplinar fragmentária do área por área - que dificulta enormemente as possibilidades de identificação do bebê com o semelhante, sendo esta uma operação primordial para a constituição. São modelos em que se busca uma eficácia parcial de cada aspecto, descuidando da constituição do bebê como um sujeito capaz de vir a se apropriar de tais produções em nome de um desejo, Nesses modelos se deixa de lado a radical importância de intervir junto aos pais, não simplesmente lhes dizendo o que deveriam fazer com conselhos, mas escutando-os em suas reflexões, para que lhes seja possível sustentar o exercício da função materna e paterna com seu filho, já que a angústia surgida das dificuldades experimentadas cotidianamente nos cuidados do mesmo e o impacto dos diagnósticos tendem a produzir-lhes uma destituição de saber desde a qual já não sabem mais o que esperar e, portanto, o que propor ao filho. É aí que as lesões fantasmáticas produzem efeitos muito mais limitantes que os impostos pela patologia em si.

A filiação é operação central a ser considerada na clínica com bebês. Quando o efeito de identificação e o endereçamento do bebê aos ideais do eu que fazem parte de uma família e uma cultura fracassam na primeira infância, as posteriores medidas de inclusão que buscam se estabelecer são tentativas de reparar uma pertença que pode ter claudicado em seu argumento central. Esta é uma contribuição decisiva da psicanálise ao campo da Clínica em Estimulação Precoce.

3) Em terceiro lugar se faz importante testemunhar que esse modo de atendimento sim opera na rede pública. Em Londrina, temos a experiência de uma parceria do Centro Lydia Coriat com o Espaço Escuta há aproximadamente 15 anos, produzido a especialização de profissionais para intervir em Estimulação Precoce

Atende-se com a concepção de que as aquisições instrumentais só fazem sentido em nome de um desejo desde o qual diversos bebês e seus familiares têm tratamento no consórcio intermunicipal de saúde CISMEPAR dentro do projeto Mãe Paranaense (há três anos) que integra a Rede Cegonha (desde o ano 2013 foram atendidos 2.386 bebês e gestantes de risco).

Desde esta parceria, há alguns anos, conseguiu-se fazer valer dentro da folha de pagamento do SUS a Estimulação Precoce como especialidade clínica realizada por um ou por uma dupla de terapeutas especializados, em lugar da fragmentação de fisio, fono, terapeuta ocupacional, psicóloga - que é o protocolo habitual.

Nesse modo de intervenção, o atendimento do bebê ocorre junto a seus familiares, considerando que este é o primeiro "grupo" de pertença e inclusão de um bebê. E, além disso, recentemente instaurou-se o espaço de convívio Amarelinhas, de acordo ao proposto na Maison Vert de Doltó - entendendo que a instituição pode oferecer um suporte para famílias que muitas vezes estão solitárias e sem sustentação da rede social

Nesse sentido é preciso que possamos refletir que os dispositivos que priorizam os atendimentos em grupos ou as assembleias, pensados para o atendimento em CAPS-i com crianças a partir de 6 anos e com os jovens até 18 - ou "moçada" como tem sido recorrente dizer - não são plenamente aplicáveis à primeira infância, já que esta é uma época da vida que exige em primeiro lugar um suporte terapêutico que singularize o laço pais-bebê.

Por isso torna-se decisivo discutir: qual é o lugar para os pequenos na rede?

Certamente é preciso priorizar, como no exemplo acima, um atendimento em estimulação precoce dos bebês com problemas do desenvolvimento e constituição psíquica,mas em que âmbito?

O âmbito da atenção básica resulta interessante, pois nos tira da dicotomia deficiência-saúde mental, sendo por isso muito favorável, ao colocar o fato de serem bebês acima da patologia (autismo, microcefalia, entre outras). Mas, para tanto, é preciso a ampliar a formação interdisciplinar dos profissionais e sua especialização em primeira infância.

Nessa inversão epistemológica se retira os bebês e seus pais de atendimentos fragmentados (e, aliás, rompe-se com a lógica das medidas emergenciais por epidemias, pois um profissional preparado para favorecer a constituição pode fazê-lo sob o fundo de diversos riscos ou patologias em curso).

Caso contrário, os pais vão continuar a ter a falsa ilusão de que serviços segregados por patologia seriam melhores, pois isso se embasa em uma demanda legítima de solicitar serviços preparados para receber seus bebês. Justamente a questão é que a especialização em relevo precisa ser a de profissionais que saibam do crescimento, maturação, desenvolvimento e constituição psíquica na primeira infância!

Ao realizar essa formação, os profissionais estão preparados para atender as diferentes patologias que acometem a primeira infância.

4) Em quarto lugar, isso faz cair por terra a ultrapassada noção de que é preciso um diagnóstico fechado para intervir. Pois, ao passar de uma conduta expectante à indicação de um tratamento sob o fundo de um diagnóstico fechado configurado em diferentes sintomatologias características e reconhecíveis como um quadro patológico específico, já se perdeu um tempo precioso para a constituição e, portanto, para a intervenção.

Ao proceder desse modo, ainda procura-se fazer a primeira infância encaixar no ranço de concepções de patologia adultomorfas que partem da concepção de um organismo e de um psiquismo já estabelecidos. Isso é antinômico da infância!

Como já foi situado, desde o ponto de vista orgânico, nós não nascemos prontos. A infância, e mais ainda a primeira infância, se caracterizam pela plasticidade neuronal (apontada por Kandel) desde a qual se revela que, se bem nasçamos com a maioria dos neurônios que teremos para o resto da vida, a interconexão neuronal não está feita e a mesma depende dos estímulos que uma criança receba. A questão é qual o tipo de estímulo, pois não basta estímulos sensoriais fragmentários (uma luz, uma textura ou um som fora de contexto). Kandel afirma que o modo como os pais costumam falar espontaneamente com seus bebês é central para a interconexão neuronal, pois liga a experiência sensorial à sua significação!

Se a plasticidade neuronal torna inquestionável a importância das experiências de vida para a formação do cérebro, as investigações mais recentes sobre genética apontam que é decisivo para a manifestação do código genético que herdamos os chamados fatores epigenéticos, ou seja, como os diversos fatores ambientais- que vão desde a água que bebemos até a relação que uma criança tem com os outros - são decisivos para a ativação de certos genes ou outros do nosso código herdado.

Por sua vez, a respeito do psiquismo, Freud aponta que temos bons motivos para acreditar que a capacidade de receber e reproduzir impressões nunca é maior do que precisamente nos anos de infância, e que as experiências de prazer e desprazer que uma criança tem serão decisivas para a sua constituição psíquica.

Portanto nós não nascemos prontos: a estrutura não está decidida na infância nem orgânica nem psiquicamente. Daí que seja central considerar a dimensão da infância acima de qualquer diagnóstico e centrar a intervenção clínica na aposta em uma constituição possível em lugar de em uma patologização precoce. Pois isso pode mudar o rumo de uma história!

Para avançar nisso, não podemos incorrer nem em reducionismos organicistas nem em reducionismos psicologizantes. Por isso resultam centrais esses autores que, em ambos os campos, sustentam a lógica da complexidade.

Desse modo, nosso ponto de partida para intervir é:ir fazendo o estabelecimento dos fatores orgânicos implicados, mas também ir intervindo por meio de situações do brincar e dos cuidados na vida cotidiana - ambos sustentados na relação com os outros - que sejam favorecedores da constituição da criança.

Basta detectar que algo não vai bem para intervir, a fim de poder contar com a plasticidade neuronal e a permeabilidade a inscrições psíquicas com as quais pode se mudar o rumo de uma história. Não precisamos fechar diagnósticos em um tempo em que muitas vezes isso não é possível, dado que a pequena criança está em constituição, ou esperando que o quadro esteja plenamente configurado para fechar um diagnóstico, perdendo desse modo um tempo precioso para a intervenção.

5) Isso nos leva a um quinto ponto, relativo aos efeitos iatrogênicos de diagnósticos que induzem o mecanismo das profecias autorrealizáveis, desde as quais, diante de um risco dessa ou daquela patologia, os pais passam a buscar na internet o que esperar desse quadro, e é desde esse espectro que passam a olhar para o filho.

Se há um problema em jogo, é preciso saber qual é para intervir. Não se trata de defender uma posição de ignorância em relação a uma dificuldade. Isso seria obscurantista. Mas igualmente obscurantista é negar a possibilidade de resolução de um quadro - o que tantas vezes testemunhamos ao intervir com a primeira infância.

É preciso considerar a diferença entre ser e estar que é própria da infância e que é decisiva para que o diagnóstico não se introduza como um destino nefasto em que o saber médico atua como uma espécie de spoiler de destinos.

Na atualidade estão disponíveis na internet questionários ao estilo check-lists de pelo menos das duas grandes epidemias diagnósticas que assolam a infância - o TDAH e TEA (para crianças de três anos). Nesse último aparecem quesitos como: "a criança olha para os seus olhos por mais de três segundos?". Diante disso tenho encontrado pais que dizem para os filhos "olhe para mim", e contam "1,2,3". Ou quesitos como "seu filho responde quando chamado pelo nome?", diante dos qual os pais passam a chamar o filho insistentemente sem propósito algum, a não ser para verificar se ele responde.

Aqui temos claros efeitos da introdução de efeitos iatrogênicos na relação dos pais com os filhos, que rompem a espontaneidade e que os levam a relacionar-se com a criança pela busca e fixação de signos patologizantes, em lugar de produzir intervenções propiciadoras da constituição.

Além do mais, é preciso fazer notar que nesses check-lists os comportamentos tomados como signos e não lidos em um contexto. Por exemplo: seu filho responde quando chamado pelo nome para dar um beijo na tia velha que acabou de chegar de visita? Isso não tem lugar nessa grade psicopatológica. Quando sabemos desde os tempos de Saussure que o contexto é decisivo para o sentido que uma produção humana pode vir a assumir.

Por isso, o diagnóstico na infância exige uma leitura clínica que parta do contexto simbólico das produções de linguagem, brincar, imagem corporal, posição diante da lei. Caso contrário, em lugar de produzir uma detecção precoce de sofrimento que possibilite a constituição (questão à qual a tantos anos nos dedicamos) estará se incorrendo socialmente em uma patologização precoce.

Gostaria de fazer notar que essas questões são mundiais. Na França, há pouco tempo, procurou-se fazer valer um protocolo que propunha-se registrar na caderneta escolar de bebês de três anos se batiam ou mordiam, para detectar "tendências agressivas". Isso despertou um movimento chamado "contra o zero de conduta em bebês de 36 meses". No Brasil, o relator da proposta de lei de diminuição da idade penal afirmou que, no futuro, seremos capazes de detectar tendências criminosas intraútero!

São princípios para lidar com a infância que instauram não só uma patologogização precoce, mas uma criminalização precoce, que vão na direção de fixar do lado da criança o que ainda não está fixado, atribuindo suas dificuldades apenas a heranças genéticas ou falhas orgânicas, o que nos exime de pensar o lugar ocupado socialmente pela infância na atualidade.

Nesse sentido, preciso fazer notar que tem sido crescente o número de pequenas crianças hígidas que recebo no consultório com falas ecolálicas extraídas de aplicativos virtuais. Crianças que estabelecem a relação com os outros em uma era na qual são necessárias placas que indiquem "não temos wi-fi, conversem entre vocês". Isso também não é sem consequências...

Então, para diagnosticar o sofrimento na infância e as epidemias diagnósticas da atualidade, é preciso que possamos interrogar o que se passa com as crianças, sem reducionismos organicistas ou psicologizantes.

Depois desse percurso, a questão insiste e creio que o que precisamos interrogar é: qual é o lugar que daremos para os pequenos em sofrimento na rede? Quando ocorrerá de modo contundente a aposta na formação de profissionais especializados para a intervenção clínica em Estimulação Precoce?

Essas perguntas são centrais para considerarmos a dimensão da infância acima de qualquer patologia. Caso contrário, continuará a corrida desesperada e sem rumo atrás de protocolos para atendimentos específicos diante de cada nova epidemia.

 

 

Por Julieta Jerusalinsky

Aqueles que nos dedicamos à clínica com bebês temos, durante anos, batalhado pela transmissão de critérios que permitam a precoce detecção de sofrimento psíquico e risco para o desenvolvimento infantil junto a aqueles que intervêm com toda e qualquer criança, ou seja, pediatras do acompanhamento do desenvolvimento no campo da saúde e profissionais do ensino infantil. (Veja a esse respeito a pesquisa IRDI - que, se bem seja uma pesquisa feita aqui no Brasil com financiamento do Ministério da Saúde e de domínio público, seus indicadores entraram e foram retirados da caderneta da criança. Na última consulta pública, foi preciso batalhar novamente por isso! O que revela que, às vezes, se anda um passo para a frente e dois para trás).

Ainda há muito por ser feito nesse sentido e, mais ainda, diante da atual epidemia de diagnósticos de autismo que tem assolado a primeira infância (0 a 3 anos) com a mesma virulência que os diagnósticos de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) têm assolado as crianças em idade escolar.

Estamos em tempos nos quais a detecção precoce de sofrimento psíquico com o intuito de produzir intervenções que favoreçam a constituição tem sido atropelada por uma psicopatologização precoce.

Nos últimos quinze dias, recebi no consultório três casos (dois por supervisão e outro por atendimento direto) nos quais se impõem condições que lamentavelmente são das mais recorrentes na atualidade.

Três meninos que, por volta dos três anos, passaram por consultas com neurologistas de menos de 15 minutos nas quais foram diagnosticados como autistas - sendo indicada a eles (sem pedido dos pais e sem que os pais concordassem em dar a medicação) a administração de psicofármacos (risperidona ou neuleptil) e pacote de atendimento multidisciplinar com fisio, fono, terapeuta orientacional e psicóloga.

Note-se que, nos três casos, as mães levaram desde o ano ou o ano e meio questões aos pediatras ou coordenadores escolares, dizendo que seus filhos não iam bem, que eram pouco responsivos e pouco sonoros. Diante de tais questões, ouviram respostas como: "menino é assim mesmo", "você está comparando com a sua filha mais velha que é muito adiantada", "ele só é um pouco preguiçoso", "ele está bem, a senhora é que está excessivamente preocupada".

Se essas histórias clínicas fossem uma exceção, já seria motivo suficiente para que nos preocupássemos. A questão é que são cenas clínicas extremamente recorrentes, revelando o tamanho do problema que temos ainda na atualidade sobre a detecção precoce de dificuldades na constituição psíquica e desenvolvimento. Os casos acima, para além de dizer respeito a uma dificuldade das crianças, revelam é um grave sintoma do campo da saúde. 

Passa-se de uma conduta expectante sem intervenção alguma para escutar as angústias e preocupações dos pais diante das dificuldades surgidas com os filhos na vida cotidiana e para favorecer a constituição do bebê a uma patologização da criança: passou-se sem intervalo do "tudo está bem" a um diagnóstico fechado e definitivo.

1) Emprimeiro lugar, temos o desafio da difusão de critérios de risco para o desenvolvimento infantil e sofrimento psíquico:

Certamente quando algo não vai bem é preciso verificar se os órgãos que suportam as funções são ou não são hígidos. Uma pergunta central é: a criança ouve? Há alguma questão orgânica implicada em seu quadro e que impeça ou dificulte suas aquisições?

Mas tão importante quanto isso é verificar o modo em que a função é posta em funcionamento na relação com os outros e, portanto interrogar clinicamente se: Falam com ela? Tomam as produções (olhares, endereçamento corporal, gestos) e vocalizações como um dizer? E, se falam, como falam com a criança? Que modo de estrutura linguística predomina em sua vida: bilinguismos ou trilinguismos antes dos três anos em aulinhas em que se etiqueta o nome das coisas? Tablets que dão instruções a serem executadas ou que emitem o nome e as cores dos objetos? Porque isso faz toda a diferença, tanto para a linguagem quanto para a constituição psíquica.

A leitura clínica de como a função é posta em funcionamento na relação da criança com os outros muitas vezes fica de fora dos critérios de detecção precoce pela concepção, que ainda prevalece no âmbito do desenvolvimento, de que as aquisições seriam uma consequência do cruzamento entre a passagem do tempo e seus efeitos sobre um organismo.

Contrariamente a isso, a experiência clínica em um contexto interdisciplinar dos problemas do desenvolvimento infantil atravessada pela psicanálise torna inquestionável que, para o desenvolvimento, tão importante quanto as possibilidades orgânicas é o circuito de desejo e demandas no qual se sustenta os cuidados de uma criança.

2) Em segundo lugar, isso nos leva à importância de uma formação interdisciplinar dos profissionais, pois, para poder detectar dificuldades, é preciso antes de mais nada entender que o crescimento, a maturação orgânica, as aquisições de linguagem, psicomotricidade e aprendizagem implicadas no desenvolvimento, assim como a constituição psíquica, se bem sejam aspectos irredutíveis uns aos outros, estão entremeados na infância e, portanto, para intervir com bebês é preciso que possamos estender nossa formação, especializando-nos no que é próprio da clínica com a primeira infância dos 0 aos 3 anos.

Esta mesma questão que se coloca no atendimento ao autismo se relança também na atual epidemia de microcefalia em nosso país, diante da qual novamente o modelo proposto de intervenção incorre no mesmo problema recorrente do atendimento de bebês:

a) Cria-se um protocolo específico por patologia - quando é preciso que a formação dos profissionais para atendimento da primeira infância esteja acima e venha em primeiro lugar

b) Parte-se de um modelo das estimulações parciais (visuais, auditivas, motoras), por áreas e dos múltiplos profissionais, assim como do aconselhamento em grupo a pais

Há anos recolhemos os efeitos iatrogênicos desse modelo de intervenção que não é próprio para a primeira infância, em que se lança os pequenos pacientes e seus pais a uma lógica multidisciplinar fragmentária do área por área - que dificulta enormemente as possibilidades de identificação do bebê com o semelhante, sendo esta uma operação primordial para a constituição. São modelos em que se busca uma eficácia parcial de cada aspecto, descuidando da constituição do bebê como um sujeito capaz de vir a se apropriar de tais produções em nome de um desejo, Nesses modelos se deixa de lado a radical importância de intervir junto aos pais, não simplesmente lhes dizendo o que deveriam fazer com conselhos, mas escutando-os em suas reflexões, para que lhes seja possível sustentar o exercício da função materna e paterna com seu filho, já que a angústia surgida das dificuldades experimentadas cotidianamente nos cuidados do mesmo e o impacto dos diagnósticos tendem a produzir-lhes uma destituição de saber desde a qual já não sabem mais o que esperar e, portanto, o que propor ao filho. É aí que as lesões fantasmáticas produzem efeitos muito mais limitantes que os impostos pela patologia em si.

A filiação é operação central a ser considerada na clínica com bebês. Quando o efeito de identificação e o endereçamento do bebê aos ideais do eu que fazem parte de uma família e uma cultura fracassam na primeira infância, as posteriores medidas de inclusão que buscam se estabelecer são tentativas de reparar uma pertença que pode ter claudicado em seu argumento central. Esta é uma contribuição decisiva da psicanálise ao campo da Clínica em Estimulação Precoce.

3) Em terceiro lugar se faz importante testemunhar que esse modo de atendimento sim opera na rede pública. Em Londrina, temos a experiência de uma parceria do Centro Lydia Coriat com o Espaço Escuta há aproximadamente 15 anos, produzido a especialização de profissionais para intervir em Estimulação Precoce

Atende-se com a concepção de que as aquisições instrumentais só fazem sentido em nome de um desejo desde o qual diversos bebês e seus familiares têm tratamento no consórcio intermunicipal de saúde CISMEPAR dentro do projeto Mãe Paranaense (há três anos) que integra a Rede Cegonha (desde o ano 2013 foram atendidos 2.386 bebês e gestantes de risco).

Desde esta parceria, há alguns anos, conseguiu-se fazer valer dentro da folha de pagamento do SUS a Estimulação Precoce como especialidade clínica realizada por um ou por uma dupla de terapeutas especializados, em lugar da fragmentação de fisio, fono, terapeuta ocupacional, psicóloga - que é o protocolo habitual.

Nesse modo de intervenção, o atendimento do bebê ocorre junto a seus familiares, considerando que este é o primeiro "grupo" de pertença e inclusão de um bebê. E, além disso, recentemente instaurou-se o espaço de convívio Amarelinhas, de acordo ao proposto na Maison Vert de Doltó - entendendo que a instituição pode oferecer um suporte para famílias que muitas vezes estão solitárias e sem sustentação da rede social

Nesse sentido é preciso que possamos refletir que os dispositivos que priorizam os atendimentos em grupos ou as assembleias, pensados para o atendimento em CAPS-i com crianças a partir de 6 anos e com os jovens até 18 - ou "moçada" como tem sido recorrente dizer - não são plenamente aplicáveis à primeira infância, já que esta é uma época da vida que exige em primeiro lugar um suporte terapêutico que singularize o laço pais-bebê.

Por isso torna-se decisivo discutir: qual é o lugar para os pequenos na rede?

Certamente é preciso priorizar, como no exemplo acima, um atendimento em estimulação precoce dos bebês com problemas do desenvolvimento e constituição psíquica,mas em que âmbito?

O âmbito da atenção básica resulta interessante, pois nos tira da dicotomia deficiência-saúde mental, sendo por isso muito favorável, ao colocar o fato de serem bebês acima da patologia (autismo, microcefalia, entre outras). Mas, para tanto, é preciso a ampliar a formação interdisciplinar dos profissionais e sua especialização em primeira infância.

Nessa inversão epistemológica se retira os bebês e seus pais de atendimentos fragmentados (e, aliás, rompe-se com a lógica das medidas emergenciais por epidemias, pois um profissional preparado para favorecer a constituição pode fazê-lo sob o fundo de diversos riscos ou patologias em curso).

Caso contrário, os pais vão continuar a ter a falsa ilusão de que serviços segregados por patologia seriam melhores, pois isso se embasa em uma demanda legítima de solicitar serviços preparados para receber seus bebês. Justamente a questão é que a especialização em relevo precisa ser a de profissionais que saibam do crescimento, maturação, desenvolvimento e constituição psíquica na primeira infância!

Ao realizar essa formação, os profissionais estão preparados para atender as diferentes patologias que acometem a primeira infância.

4) Em quarto lugar, isso faz cair por terra a ultrapassada noção de que é preciso um diagnóstico fechado para intervir. Pois, ao passar de uma conduta expectante à indicação de um tratamento sob o fundo de um diagnóstico fechado configurado em diferentes sintomatologias características e reconhecíveis como um quadro patológico específico, já se perdeu um tempo precioso para a constituição e, portanto, para a intervenção.

Ao proceder desse modo, ainda procura-se fazer a primeira infância encaixar no ranço de concepções de patologia adultomorfas que partem da concepção de um organismo e de um psiquismo já estabelecidos. Isso é antinômico da infância!

Como já foi situado, desde o ponto de vista orgânico, nós não nascemos prontos. A infância, e mais ainda a primeira infância, se caracterizam pela plasticidade neuronal (apontada por Kandel) desde a qual se revela que, se bem nasçamos com a maioria dos neurônios que teremos para o resto da vida, a interconexão neuronal não está feita e a mesma depende dos estímulos que uma criança receba. A questão é qual o tipo de estímulo, pois não basta estímulos sensoriais fragmentários (uma luz, uma textura ou um som fora de contexto). Kandel afirma que o modo como os pais costumam falar espontaneamente com seus bebês é central para a interconexão neuronal, pois liga a experiência sensorial à sua significação!

Se a plasticidade neuronal torna inquestionável a importância das experiências de vida para a formação do cérebro, as investigações mais recentes sobre genética apontam que é decisivo para a manifestação do código genético que herdamos os chamados fatores epigenéticos, ou seja, como os diversos fatores ambientais- que vão desde a água que bebemos até a relação que uma criança tem com os outros - são decisivos para a ativação de certos genes ou outros do nosso código herdado.

Por sua vez, a respeito do psiquismo, Freud aponta que temos bons motivos para acreditar que a capacidade de receber e reproduzir impressões nunca é maior do que precisamente nos anos de infância, e que as experiências de prazer e desprazer que uma criança tem serão decisivas para a sua constituição psíquica.

Portanto nós não nascemos prontos: a estrutura não está decidida na infância nem orgânica nem psiquicamente. Daí que seja central considerar a dimensão da infância acima de qualquer diagnóstico e centrar a intervenção clínica na aposta em uma constituição possível em lugar de em uma patologização precoce. Pois isso pode mudar o rumo de uma história!

Para avançar nisso, não podemos incorrer nem em reducionismos organicistas nem em reducionismos psicologizantes. Por isso resultam centrais esses autores que, em ambos os campos, sustentam a lógica da complexidade.

Desse modo, nosso ponto de partida para intervir é:ir fazendo o estabelecimento dos fatores orgânicos implicados, mas também ir intervindo por meio de situações do brincar e dos cuidados na vida cotidiana - ambos sustentados na relação com os outros - que sejam favorecedores da constituição da criança.

Basta detectar que algo não vai bem para intervir, a fim de poder contar com a plasticidade neuronal e a permeabilidade a inscrições psíquicas com as quais pode se mudar o rumo de uma história. Não precisamos fechar diagnósticos em um tempo em que muitas vezes isso não é possível, dado que a pequena criança está em constituição, ou esperando que o quadro esteja plenamente configurado para fechar um diagnóstico, perdendo desse modo um tempo precioso para a intervenção.

5) Isso nos leva a um quinto ponto, relativo aos efeitos iatrogênicos de diagnósticos que induzem o mecanismo das profecias autorrealizáveis, desde as quais, diante de um risco dessa ou daquela patologia, os pais passam a buscar na internet o que esperar desse quadro, e é desde esse espectro que passam a olhar para o filho.

Se há um problema em jogo, é preciso saber qual é para intervir. Não se trata de defender uma posição de ignorância em relação a uma dificuldade. Isso seria obscurantista. Mas igualmente obscurantista é negar a possibilidade de resolução de um quadro - o que tantas vezes testemunhamos ao intervir com a primeira infância.

É preciso considerar a diferença entre ser e estar que é própria da infância e que é decisiva para que o diagnóstico não se introduza como um destino nefasto em que o saber médico atua como uma espécie de spoiler de destinos.

Na atualidade estão disponíveis na internet questionários ao estilo check-lists de pelo menos das duas grandes epidemias diagnósticas que assolam a infância - o TDAH e TEA (para crianças de três anos). Nesse último aparecem quesitos como: "a criança olha para os seus olhos por mais de três segundos?". Diante disso tenho encontrado pais que dizem para os filhos "olhe para mim", e contam "1,2,3". Ou quesitos como "seu filho responde quando chamado pelo nome?", diante dos qual os pais passam a chamar o filho insistentemente sem propósito algum, a não ser para verificar se ele responde.

Aqui temos claros efeitos da introdução de efeitos iatrogênicos na relação dos pais com os filhos, que rompem a espontaneidade e que os levam a relacionar-se com a criança pela busca e fixação de signos patologizantes, em lugar de produzir intervenções propiciadoras da constituição.

Além do mais, é preciso fazer notar que nesses check-lists os comportamentos tomados como signos e não lidos em um contexto. Por exemplo: seu filho responde quando chamado pelo nome para dar um beijo na tia velha que acabou de chegar de visita? Isso não tem lugar nessa grade psicopatológica. Quando sabemos desde os tempos de Saussure que o contexto é decisivo para o sentido que uma produção humana pode vir a assumir.

Por isso, o diagnóstico na infância exige uma leitura clínica que parta do contexto simbólico das produções de linguagem, brincar, imagem corporal, posição diante da lei. Caso contrário, em lugar de produzir uma detecção precoce de sofrimento que possibilite a constituição (questão à qual a tantos anos nos dedicamos) estará se incorrendo socialmente em uma patologização precoce.

Gostaria de fazer notar que essas questões são mundiais. Na França, há pouco tempo, procurou-se fazer valer um protocolo que propunha-se registrar na caderneta escolar de bebês de três anos se batiam ou mordiam, para detectar "tendências agressivas". Isso despertou um movimento chamado "contra o zero de conduta em bebês de 36 meses". No Brasil, o relator da proposta de lei de diminuição da idade penal afirmou que, no futuro, seremos capazes de detectar tendências criminosas intraútero!

São princípios para lidar com a infância que instauram não só uma patologogização precoce, mas uma criminalização precoce, que vão na direção de fixar do lado da criança o que ainda não está fixado, atribuindo suas dificuldades apenas a heranças genéticas ou falhas orgânicas, o que nos exime de pensar o lugar ocupado socialmente pela infância na atualidade.

Nesse sentido, preciso fazer notar que tem sido crescente o número de pequenas crianças hígidas que recebo no consultório com falas ecolálicas extraídas de aplicativos virtuais. Crianças que estabelecem a relação com os outros em uma era na qual são necessárias placas que indiquem "não temos wi-fi, conversem entre vocês". Isso também não é sem consequências...

Então, para diagnosticar o sofrimento na infância e as epidemias diagnósticas da atualidade, é preciso que possamos interrogar o que se passa com as crianças, sem reducionismos organicistas ou psicologizantes.

Depois desse percurso, a questão insiste e creio que o que precisamos interrogar é: qual é o lugar que daremos para os pequenos em sofrimento na rede? Quando ocorrerá de modo contundente a aposta na formação de profissionais especializados para a intervenção clínica em Estimulação Precoce?

Essas perguntas são centrais para considerarmos a dimensão da infância acima de qualquer patologia. Caso contrário, continuará a corrida desesperada e sem rumo atrás de protocolos para atendimentos específicos diante de cada nova epidemia.

 

 

Por Julieta Jerusalinsky

Aqueles que nos dedicamos à clínica com bebês temos, durante anos, batalhado pela transmissão de critérios que permitam a precoce detecção de sofrimento psíquico e risco para o desenvolvimento infantil junto a aqueles que intervêm com toda e qualquer criança, ou seja, pediatras do acompanhamento do desenvolvimento no campo da saúde e profissionais do ensino infantil. (Veja a esse respeito a pesquisa IRDI - que, se bem seja uma pesquisa feita aqui no Brasil com financiamento do Ministério da Saúde e de domínio público, seus indicadores entraram e foram retirados da caderneta da criança. Na última consulta pública, foi preciso batalhar novamente por isso! O que revela que, às vezes, se anda um passo para a frente e dois para trás).

Ainda há muito por ser feito nesse sentido e, mais ainda, diante da atual epidemia de diagnósticos de autismo que tem assolado a primeira infância (0 a 3 anos) com a mesma virulência que os diagnósticos de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) têm assolado as crianças em idade escolar.

Estamos em tempos nos quais a detecção precoce de sofrimento psíquico com o intuito de produzir intervenções que favoreçam a constituição tem sido atropelada por uma psicopatologização precoce.

Nos últimos quinze dias, recebi no consultório três casos (dois por supervisão e outro por atendimento direto) nos quais se impõem condições que lamentavelmente são das mais recorrentes na atualidade.

Três meninos que, por volta dos três anos, passaram por consultas com neurologistas de menos de 15 minutos nas quais foram diagnosticados como autistas - sendo indicada a eles (sem pedido dos pais e sem que os pais concordassem em dar a medicação) a administração de psicofármacos (risperidona ou neuleptil) e pacote de atendimento multidisciplinar com fisio, fono, terapeuta orientacional e psicóloga.

Note-se que, nos três casos, as mães levaram desde o ano ou o ano e meio questões aos pediatras ou coordenadores escolares, dizendo que seus filhos não iam bem, que eram pouco responsivos e pouco sonoros. Diante de tais questões, ouviram respostas como: "menino é assim mesmo", "você está comparando com a sua filha mais velha que é muito adiantada", "ele só é um pouco preguiçoso", "ele está bem, a senhora é que está excessivamente preocupada".

Se essas histórias clínicas fossem uma exceção, já seria motivo suficiente para que nos preocupássemos. A questão é que são cenas clínicas extremamente recorrentes, revelando o tamanho do problema que temos ainda na atualidade sobre a detecção precoce de dificuldades na constituição psíquica e desenvolvimento. Os casos acima, para além de dizer respeito a uma dificuldade das crianças, revelam é um grave sintoma do campo da saúde. 

Passa-se de uma conduta expectante sem intervenção alguma para escutar as angústias e preocupações dos pais diante das dificuldades surgidas com os filhos na vida cotidiana e para favorecer a constituição do bebê a uma patologização da criança: passou-se sem intervalo do "tudo está bem" a um diagnóstico fechado e definitivo.

1) Emprimeiro lugar, temos o desafio da difusão de critérios de risco para o desenvolvimento infantil e sofrimento psíquico:

Certamente quando algo não vai bem é preciso verificar se os órgãos que suportam as funções são ou não são hígidos. Uma pergunta central é: a criança ouve? Há alguma questão orgânica implicada em seu quadro e que impeça ou dificulte suas aquisições?

Mas tão importante quanto isso é verificar o modo em que a função é posta em funcionamento na relação com os outros e, portanto interrogar clinicamente se: Falam com ela? Tomam as produções (olhares, endereçamento corporal, gestos) e vocalizações como um dizer? E, se falam, como falam com a criança? Que modo de estrutura linguística predomina em sua vida: bilinguismos ou trilinguismos antes dos três anos em aulinhas em que se etiqueta o nome das coisas? Tablets que dão instruções a serem executadas ou que emitem o nome e as cores dos objetos? Porque isso faz toda a diferença, tanto para a linguagem quanto para a constituição psíquica.

A leitura clínica de como a função é posta em funcionamento na relação da criança com os outros muitas vezes fica de fora dos critérios de detecção precoce pela concepção, que ainda prevalece no âmbito do desenvolvimento, de que as aquisições seriam uma consequência do cruzamento entre a passagem do tempo e seus efeitos sobre um organismo.

Contrariamente a isso, a experiência clínica em um contexto interdisciplinar dos problemas do desenvolvimento infantil atravessada pela psicanálise torna inquestionável que, para o desenvolvimento, tão importante quanto as possibilidades orgânicas é o circuito de desejo e demandas no qual se sustenta os cuidados de uma criança.

2) Em segundo lugar, isso nos leva à importância de uma formação interdisciplinar dos profissionais, pois, para poder detectar dificuldades, é preciso antes de mais nada entender que o crescimento, a maturação orgânica, as aquisições de linguagem, psicomotricidade e aprendizagem implicadas no desenvolvimento, assim como a constituição psíquica, se bem sejam aspectos irredutíveis uns aos outros, estão entremeados na infância e, portanto, para intervir com bebês é preciso que possamos estender nossa formação, especializando-nos no que é próprio da clínica com a primeira infância dos 0 aos 3 anos.

Esta mesma questão que se coloca no atendimento ao autismo se relança também na atual epidemia de microcefalia em nosso país, diante da qual novamente o modelo proposto de intervenção incorre no mesmo problema recorrente do atendimento de bebês:

a) Cria-se um protocolo específico por patologia - quando é preciso que a formação dos profissionais para atendimento da primeira infância esteja acima e venha em primeiro lugar

b) Parte-se de um modelo das estimulações parciais (visuais, auditivas, motoras), por áreas e dos múltiplos profissionais, assim como do aconselhamento em grupo a pais

Há anos recolhemos os efeitos iatrogênicos desse modelo de intervenção que não é próprio para a primeira infância, em que se lança os pequenos pacientes e seus pais a uma lógica multidisciplinar fragmentária do área por área - que dificulta enormemente as possibilidades de identificação do bebê com o semelhante, sendo esta uma operação primordial para a constituição. São modelos em que se busca uma eficácia parcial de cada aspecto, descuidando da constituição do bebê como um sujeito capaz de vir a se apropriar de tais produções em nome de um desejo, Nesses modelos se deixa de lado a radical importância de intervir junto aos pais, não simplesmente lhes dizendo o que deveriam fazer com conselhos, mas escutando-os em suas reflexões, para que lhes seja possível sustentar o exercício da função materna e paterna com seu filho, já que a angústia surgida das dificuldades experimentadas cotidianamente nos cuidados do mesmo e o impacto dos diagnósticos tendem a produzir-lhes uma destituição de saber desde a qual já não sabem mais o que esperar e, portanto, o que propor ao filho. É aí que as lesões fantasmáticas produzem efeitos muito mais limitantes que os impostos pela patologia em si.

A filiação é operação central a ser considerada na clínica com bebês. Quando o efeito de identificação e o endereçamento do bebê aos ideais do eu que fazem parte de uma família e uma cultura fracassam na primeira infância, as posteriores medidas de inclusão que buscam se estabelecer são tentativas de reparar uma pertença que pode ter claudicado em seu argumento central. Esta é uma contribuição decisiva da psicanálise ao campo da Clínica em Estimulação Precoce.

3) Em terceiro lugar se faz importante testemunhar que esse modo de atendimento sim opera na rede pública. Em Londrina, temos a experiência de uma parceria do Centro Lydia Coriat com o Espaço Escuta há aproximadamente 15 anos, produzido a especialização de profissionais para intervir em Estimulação Precoce

Atende-se com a concepção de que as aquisições instrumentais só fazem sentido em nome de um desejo desde o qual diversos bebês e seus familiares têm tratamento no consórcio intermunicipal de saúde CISMEPAR dentro do projeto Mãe Paranaense (há três anos) que integra a Rede Cegonha (desde o ano 2013 foram atendidos 2.386 bebês e gestantes de risco).

Desde esta parceria, há alguns anos, conseguiu-se fazer valer dentro da folha de pagamento do SUS a Estimulação Precoce como especialidade clínica realizada por um ou por uma dupla de terapeutas especializados, em lugar da fragmentação de fisio, fono, terapeuta ocupacional, psicóloga - que é o protocolo habitual.

Nesse modo de intervenção, o atendimento do bebê ocorre junto a seus familiares, considerando que este é o primeiro "grupo" de pertença e inclusão de um bebê. E, além disso, recentemente instaurou-se o espaço de convívio Amarelinhas, de acordo ao proposto na Maison Vert de Doltó - entendendo que a instituição pode oferecer um suporte para famílias que muitas vezes estão solitárias e sem sustentação da rede social

Nesse sentido é preciso que possamos refletir que os dispositivos que priorizam os atendimentos em grupos ou as assembleias, pensados para o atendimento em CAPS-i com crianças a partir de 6 anos e com os jovens até 18 - ou "moçada" como tem sido recorrente dizer - não são plenamente aplicáveis à primeira infância, já que esta é uma época da vida que exige em primeiro lugar um suporte terapêutico que singularize o laço pais-bebê.

Por isso torna-se decisivo discutir: qual é o lugar para os pequenos na rede?

Certamente é preciso priorizar, como no exemplo acima, um atendimento em estimulação precoce dos bebês com problemas do desenvolvimento e constituição psíquica,mas em que âmbito?

O âmbito da atenção básica resulta interessante, pois nos tira da dicotomia deficiência-saúde mental, sendo por isso muito favorável, ao colocar o fato de serem bebês acima da patologia (autismo, microcefalia, entre outras). Mas, para tanto, é preciso a ampliar a formação interdisciplinar dos profissionais e sua especialização em primeira infância.

Nessa inversão epistemológica se retira os bebês e seus pais de atendimentos fragmentados (e, aliás, rompe-se com a lógica das medidas emergenciais por epidemias, pois um profissional preparado para favorecer a constituição pode fazê-lo sob o fundo de diversos riscos ou patologias em curso).

Caso contrário, os pais vão continuar a ter a falsa ilusão de que serviços segregados por patologia seriam melhores, pois isso se embasa em uma demanda legítima de solicitar serviços preparados para receber seus bebês. Justamente a questão é que a especialização em relevo precisa ser a de profissionais que saibam do crescimento, maturação, desenvolvimento e constituição psíquica na primeira infância!

Ao realizar essa formação, os profissionais estão preparados para atender as diferentes patologias que acometem a primeira infância.

4) Em quarto lugar, isso faz cair por terra a ultrapassada noção de que é preciso um diagnóstico fechado para intervir. Pois, ao passar de uma conduta expectante à indicação de um tratamento sob o fundo de um diagnóstico fechado configurado em diferentes sintomatologias características e reconhecíveis como um quadro patológico específico, já se perdeu um tempo precioso para a constituição e, portanto, para a intervenção.

Ao proceder desse modo, ainda procura-se fazer a primeira infância encaixar no ranço de concepções de patologia adultomorfas que partem da concepção de um organismo e de um psiquismo já estabelecidos. Isso é antinômico da infância!

Como já foi situado, desde o ponto de vista orgânico, nós não nascemos prontos. A infância, e mais ainda a primeira infância, se caracterizam pela plasticidade neuronal (apontada por Kandel) desde a qual se revela que, se bem nasçamos com a maioria dos neurônios que teremos para o resto da vida, a interconexão neuronal não está feita e a mesma depende dos estímulos que uma criança receba. A questão é qual o tipo de estímulo, pois não basta estímulos sensoriais fragmentários (uma luz, uma textura ou um som fora de contexto). Kandel afirma que o modo como os pais costumam falar espontaneamente com seus bebês é central para a interconexão neuronal, pois liga a experiência sensorial à sua significação!

Se a plasticidade neuronal torna inquestionável a importância das experiências de vida para a formação do cérebro, as investigações mais recentes sobre genética apontam que é decisivo para a manifestação do código genético que herdamos os chamados fatores epigenéticos, ou seja, como os diversos fatores ambientais- que vão desde a água que bebemos até a relação que uma criança tem com os outros - são decisivos para a ativação de certos genes ou outros do nosso código herdado.

Por sua vez, a respeito do psiquismo, Freud aponta que temos bons motivos para acreditar que a capacidade de receber e reproduzir impressões nunca é maior do que precisamente nos anos de infância, e que as experiências de prazer e desprazer que uma criança tem serão decisivas para a sua constituição psíquica.

Portanto nós não nascemos prontos: a estrutura não está decidida na infância nem orgânica nem psiquicamente. Daí que seja central considerar a dimensão da infância acima de qualquer diagnóstico e centrar a intervenção clínica na aposta em uma constituição possível em lugar de em uma patologização precoce. Pois isso pode mudar o rumo de uma história!

Para avançar nisso, não podemos incorrer nem em reducionismos organicistas nem em reducionismos psicologizantes. Por isso resultam centrais esses autores que, em ambos os campos, sustentam a lógica da complexidade.

Desse modo, nosso ponto de partida para intervir é:ir fazendo o estabelecimento dos fatores orgânicos implicados, mas também ir intervindo por meio de situações do brincar e dos cuidados na vida cotidiana - ambos sustentados na relação com os outros - que sejam favorecedores da constituição da criança.

Basta detectar que algo não vai bem para intervir, a fim de poder contar com a plasticidade neuronal e a permeabilidade a inscrições psíquicas com as quais pode se mudar o rumo de uma história. Não precisamos fechar diagnósticos em um tempo em que muitas vezes isso não é possível, dado que a pequena criança está em constituição, ou esperando que o quadro esteja plenamente configurado para fechar um diagnóstico, perdendo desse modo um tempo precioso para a intervenção.

5) Isso nos leva a um quinto ponto, relativo aos efeitos iatrogênicos de diagnósticos que induzem o mecanismo das profecias autorrealizáveis, desde as quais, diante de um risco dessa ou daquela patologia, os pais passam a buscar na internet o que esperar desse quadro, e é desde esse espectro que passam a olhar para o filho.

Se há um problema em jogo, é preciso saber qual é para intervir. Não se trata de defender uma posição de ignorância em relação a uma dificuldade. Isso seria obscurantista. Mas igualmente obscurantista é negar a possibilidade de resolução de um quadro - o que tantas vezes testemunhamos ao intervir com a primeira infância.

É preciso considerar a diferença entre ser e estar que é própria da infância e que é decisiva para que o diagnóstico não se introduza como um destino nefasto em que o saber médico atua como uma espécie de spoiler de destinos.

Na atualidade estão disponíveis na internet questionários ao estilo check-lists de pelo menos das duas grandes epidemias diagnósticas que assolam a infância - o TDAH e TEA (para crianças de três anos). Nesse último aparecem quesitos como: "a criança olha para os seus olhos por mais de três segundos?". Diante disso tenho encontrado pais que dizem para os filhos "olhe para mim", e contam "1,2,3". Ou quesitos como "seu filho responde quando chamado pelo nome?", diante dos qual os pais passam a chamar o filho insistentemente sem propósito algum, a não ser para verificar se ele responde.

Aqui temos claros efeitos da introdução de efeitos iatrogênicos na relação dos pais com os filhos, que rompem a espontaneidade e que os levam a relacionar-se com a criança pela busca e fixação de signos patologizantes, em lugar de produzir intervenções propiciadoras da constituição.

Além do mais, é preciso fazer notar que nesses check-lists os comportamentos tomados como signos e não lidos em um contexto. Por exemplo: seu filho responde quando chamado pelo nome para dar um beijo na tia velha que acabou de chegar de visita? Isso não tem lugar nessa grade psicopatológica. Quando sabemos desde os tempos de Saussure que o contexto é decisivo para o sentido que uma produção humana pode vir a assumir.

Por isso, o diagnóstico na infância exige uma leitura clínica que parta do contexto simbólico das produções de linguagem, brincar, imagem corporal, posição diante da lei. Caso contrário, em lugar de produzir uma detecção precoce de sofrimento que possibilite a constituição (questão à qual a tantos anos nos dedicamos) estará se incorrendo socialmente em uma patologização precoce.

Gostaria de fazer notar que essas questões são mundiais. Na França, há pouco tempo, procurou-se fazer valer um protocolo que propunha-se registrar na caderneta escolar de bebês de três anos se batiam ou mordiam, para detectar "tendências agressivas". Isso despertou um movimento chamado "contra o zero de conduta em bebês de 36 meses". No Brasil, o relator da proposta de lei de diminuição da idade penal afirmou que, no futuro, seremos capazes de detectar tendências criminosas intraútero!

São princípios para lidar com a infância que instauram não só uma patologogização precoce, mas uma criminalização precoce, que vão na direção de fixar do lado da criança o que ainda não está fixado, atribuindo suas dificuldades apenas a heranças genéticas ou falhas orgânicas, o que nos exime de pensar o lugar ocupado socialmente pela infância na atualidade.

Nesse sentido, preciso fazer notar que tem sido crescente o número de pequenas crianças hígidas que recebo no consultório com falas ecolálicas extraídas de aplicativos virtuais. Crianças que estabelecem a relação com os outros em uma era na qual são necessárias placas que indiquem "não temos wi-fi, conversem entre vocês". Isso também não é sem consequências...

Então, para diagnosticar o sofrimento na infância e as epidemias diagnósticas da atualidade, é preciso que possamos interrogar o que se passa com as crianças, sem reducionismos organicistas ou psicologizantes.

Depois desse percurso, a questão insiste e creio que o que precisamos interrogar é: qual é o lugar que daremos para os pequenos em sofrimento na rede? Quando ocorrerá de modo contundente a aposta na formação de profissionais especializados para a intervenção clínica em Estimulação Precoce?

Essas perguntas são centrais para considerarmos a dimensão da infância acima de qualquer patologia. Caso contrário, continuará a corrida desesperada e sem rumo atrás de protocolos para atendimentos específicos diante de cada nova epidemia.

 

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